O coração do Rei: o
mistério sobre a foto mais famosa de Pelé.
Durante
36 anos, a foto mais espetacular de Pelé circulou com “data de fabricação”
errada. Agora, PLACAR revela quando, onde e como essa imagem foi produzida.
A coisa é chique. Impresso
na região de Verona, berço das melhores gráficas do mundo, o livro de luxo traz
o requinte dos gols de Pelé. O papel utilizado, o GardaPat Kiara, produzido sob
encomenda por uma indústria sediada às margens do Lago de Garda, também na
Itália, é especial como as atuações do Rei em Copas do Mundo.
O acabamento,
realizado artesanalmente por um estúdio em Turim — com capa e estojo revestidos
de seda italiana e lombada de couro natural —, é delicado como o sorriso do
menino Edson.
Voltado para
colecionadores abastados, numerado e de tiragem limitada, 1283 (número de gols
da carreira do Rei) pretende ser a compilação fotográfica definitiva de Pelé.
Lançado com pompa no último dia 16 de outubro, no Museu da Imagem e do Som, em
São Paulo, pela editora Toriba, o livro custa 3 600 reais em seu formato mais
“simples” e 5 500 reais na edição “king”.
O que diferencia uma
edição da outra (a cara da muito cara) é a presença da lendária foto “O Coração
do Rei”, de Luiz Paulo Machado, ex-fotógrafo da PLACAR, encartada de forma
avulsa, numerada, impressa com pigmentos minerais em papel Canson Infinity 100%
algodão e assinada tanto por Pelé como pelo fotógrafo.
Trata-se de uma das
imagens mais clássicas de Pelé e uma de suas fotos mais conhecidas no mundo.
Para Pelé, “é um registro que só Deus pode explicar”. Para Machado, é sua
obra-prima. “É uma foto reconhecida mundialmente. Sem dúvida, é minha foto mais
importante.”
Embora inacessível para a
imensa maioria dos amantes do futebol, a iniciativa merece aplausos. Só que tem
um probleminha: traz informações erradas sobre sua peça mais importante. O
livro diz que “O Coração do Rei”, cujo encarte em formato especial faz com que
o livro custe quase 2 000 reais a mais, foi tirada no dia 18 de julho de 1971,
durante o empate em 2 x 2 entre Brasil e Iugoslávia, no Maracanã, na despedida
do Rei com a camisa da seleção brasileira. Um erro de vários anos.
FOTO CERTA, DIA ERRADO
Ao pesquisar a história da
foto, os editores do livro acabaram deparando com uma série de dúvidas.
Oficialmente, a foto não tinha uma data certa, já que o slide original,
arquivado no Dedoc (onde estão os arquivos da Editora Abril, que publica a
PLACAR), estava em branco, sem qualquer informação que pudesse esclarecer a
questão. Ok, culpa nossa...
A data da primeira
publicação da imagem em revistas da editora também era incerta.
Extraoficialmente, porém, circulava a informação de que a foto teria sido feita
em 30 setembro de 1970, durante o amistoso Brasil 2 x 1 México, conhecido como
“Jogo da Amizade”.
Os editores do livro não
perguntaram à redação da PLACAR sobre a data da foto. Foram direto ao autor,
que disse ter certeza absoluta de que a partida em questão era Brasil 2 x 2
Iugoslávia. E assim ficou.
Mas, descobrimos agora, as
duas hipóteses estão erradas. No jogo Brasil x México, o uniforme da seleção
ainda não possuía as três estrelas — seriam usadas pela primeira vez no
amistoso contra a Áustria, no Morumbi, em 1971. Quanto ao jogo Brasil x
Iugoslávia, seria impossível que a foto tivesse sido captada nesse jogo, pois a
partida foi realizada durante o dia e Pelé atuou apenas no primeiro tempo. E “O
Coração do Rei” é uma foto noturna. Mais: o nome de Luiz Paulo Machado nem ao
menos consta no expediente da edição 71 da PLACAR, que noticia a despedida do
Rei. O telefonema do então chefe de reportagem da PLACAR Juca Kfouri, eufórico
com o slide em mãos, ao fotógrafo, pouco depois da revelação da foto, também
não poderia ter ocorrido em 1971, já que Kfouri passou a atuar na revista somente
em 1974.
A verdade é que a foto “O
Coração do Rei” foi feita no dia 6 de outubro de 1976, no amistoso beneficente
Brasil 0 x 2 Flamengo, em memória ao craque flamenguista Geraldo “Assoviador”,
falecido tragicamente após uma malsucedida operação de retirada de amídalas. Um
jogo que entraria para a história do futebol brasileiro, apesar de poucos se
lembrarem dele (veja abaixo).
MEMÓRIAS DA REDAÇÃO
Fotógrafo freelancer da
PLACAR no Rio de Janeiro, Luiz Paulo Machado foi escalado para cobrir o
amistoso e, em um instante fortuito, fez o clique antológico. “Eu não vi de
imediato o coração, vi que tinha feito uma boa foto. Mas a gente não sabia, até
o momento da revelação, se teve algum problema, se correu tudo bem”, diz
Machado, que atualmente trabalha na Justiça Federal, no Rio de Janeiro.
A foto original, sem
cortes, é a prova incontestável de que Pelé ganhou o registro de Machado
naquele jogo, já que mostra um jogador do Flamengo no canto esquerdo da imagem.
Luiz Paulo Machado só veria a fotografia publicada na revista, cortada, sem o
atleta flamenguista em quadro, tempos depois.
Juca Kfouri recorda como se
deu a chegada do slide à redação da PLACAR. “Chegou esse material em uma
sexta-feira para mim. De repente, me vi diante dessa foto, que é uma foto de
prêmio, uma coisa de outro mundo, sobrenatural.” Nos anos que se passaram,
muitos tiveram a mesma reação ao deparar com o registro, embora a fotografia
jamais tenha recebido qualquer premiação. Juca conta que, no cargo que ocupava
na revista naqueles idos de 1976, não tinha
poder para decidir a publicação imediata ou não da foto.
“Eu teria inventado
uma capa”, diverte-se, antes de ressaltar que era típico dos hábitos
jornalísticos de Jairo Régis, então diretor de redação da PLACAR, o cuidado de
guardar fotografias especiais para matérias especiais. “Era típico dele, uma
coisa absolutamente adequada ao perfil do Jairo”, diz Juca.
As fotos que Régis
separava para usar em ocasiões especiais eram guardadas em um arquivo chamado
de “Carsugão”, levado à redação da PLACAR pelo jornalista Claudio Carsughi.
“Essa foto ficou como um slide em branco no ‘Carsugão’ para um aproveitamento
posterior”, diz.
De fato, a primeira
oportunidade especial que surgiu para que a célebre foto fosse publicada se deu
na ocasião da despedida definitiva de Pelé do futebol, quando este atuava pelo
Cosmos, em outubro de 1977. Era a edição número 389 da revista, que trazia um
encarte especial, em cores. O “Documento histórico: 22 anos de Pelé” estampava
na capa o registro feito por Luiz Paulo Machado. “Quem editou o encarte fui eu.
Eu me lembro perfeitamente”, conta Juca.
O corte vertical da
imagem, a ausência de uma legenda que fizesse referência à data do jogo e o
fato de o slide original ter sido guardado em branco, sem qualquer anotação,
foram definitivos para que o mistério sobre a data em que a foto foi feita se
prolongasse por todos esses anos.
Sempre que foi publicada pela PLACAR em
ocasiões posteriores, a fotografia trouxe legendas “poéticas”, pouco objetivas,
como “quando jogava pela seleção, ele o fazia com incrível talento e muito
coração” (“Placar – As 100 maiores fotos da seleção brasileira”, de julho de
2002).
A cidade natal de Pelé é
sempre citada por ele quando questionado sobre a foto. À reportagem da PLACAR,
não foi diferente: “Eu sempre brinco que sou um homem de três corações. Então
aquele coração da foto é um desses corações, o coração da seleção brasileira”.
Juca Kfouri também lembra que, certo dia, ao apreciarem juntos a foto, disse a
ele: “Você não é de Três Corações, você é de Cinco Corações. Além do que bate
aí dentro, tem esse outro, de suor”. Um coração que se forma, por um instante
fugaz, no peito do maior jogador de todos os tempos, que envergava como atleta
profissional, pela última vez, o uniforme da seleção mais vitoriosa do futebol
mundial.
UM JOGO PARA GERALDO
No dia 26 de agosto de
1976, uma tragédia se abateu sobre o futebol brasileiro, especialmente para os
torcedores flamenguistas. Morria, naquele dia, aos 22 anos, em decorrência de
um choque anafilático quando realizava uma operação para retirada das amídalas,
uma das grandes promessas do clube carioca, o meia Geraldo, que já despontava
inclusive na seleção brasileira.
Traumatizados, jogadores
do Flamengo organizaram uma partida beneficente, no Maracanã, contra a seleção
brasileira, com a renda — 2,3 milhões de cruzeiros (cerca de 2,7 milhões de
reais, em valores corrigidos pelo índice IGP-DI) — destinada à família do
“Assoviador”, como era conhecido o atleta graças à mania de assoviar em campo
quando realizava suas jogadas mais ousadas.
No dia 6 de outubro, com a
presença de 142 404 torcedores, Pelé, que atuava no Cosmos, voltaria a vestir a
amarelinha depois de cinco anos, fazendo ali, de fato, sua última partida pela
seleção como profissional. Saiu de campo derrotado — 2 x 0 para o Flamengo,
gols de Paulinho e Luís Paulo — e ofuscado pelo jovem Zico, que já se preparava
para assumir a 10 do escrete nacional.
Aproveitando a presença do
Rei em campo, a CBF, alinhada com a ditadura, promoveu um ato político após a
partida, com Pelé, Carlos Alberto e Leão oferecendo ao presidente Geisel uma
placa em agradecimento à regulamentação da profissão de jogador de futebol.
fonte: Revista Placar
post: Marcelo Ferla
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