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quinta-feira, 29 de março de 2018

Homens admiráveis.


Obituário: Johan van Hulst, o professor que salvou crianças judias
Por Roland Hughes
BBC News


Decidir quem salvar e quem sair foi "a coisa mais difícil" que Johan van Hulst teve que fazer, disse ele

Algumas das crianças que Johan van Hulst ajudou a resgatar eram tão jovens que não mais se lembram dos atos ousados ​​que salvaram suas vidas.
Van Hulst, que morreu em 22 de março aos 107 anos, foi uma parte fundamental da rede que ajudou pelo menos 600 bebês e crianças holandesas a escapar dos nazistas.
Essas crianças sobreviveram graças a operações cuidadosamente orquestradas que as levaram diretamente para os nazistas, procurando enviá-las aos campos de concentração.
Em 1942, dois anos após a invasão alemã dos Países Baixos, Johan van Hulst - filho de um estofador de móveis - estava trabalhando como palestrante em uma faculdade de formação de professores calvinista em Amsterdã.
A escola ficava no bairro predominantemente judeu de Plantage, a leste do centro da cidade.
No verão de 1942, a escola enfrentou o fechamento quando o governo retirou o financiamento.
Van Hulst, diferentemente da administração da escola, insistiu que poderia permanecer aberto sem subsídios do governo e bateu nas portas dos pais dos alunos para ajudar a financiá-lo.
Ficou aberto, e os professores restantes e Van Hulst - agora o diretor, com dois filhos pequenos - continuaram trabalhando por duas vezes o salário mínimo.
Do outro lado da rua da escola de Van Hulst ficava o Hollandsche Schouwburg, um antigo teatro tomado pelos nazistas em 1941 para ser usado como centro de deportação.
Embora os registros dos detidos não estejam mais disponíveis, os historiadores acreditam que cerca de 46 mil pessoas foram deportadas do antigo teatro por cerca de 18 meses até o final de 1943.
A maioria acabou em campos de concentração em Westerbork, na Holanda, ou em Auschwitz e Sobibor, na Polônia ocupada.

O chefe da creche, Henriëtte Pimentel, convenceu Van Hulst a juntar-se ao esforço de salvamento
O administrador do centro de deportação era um judeu alemão chamado Walter Süskind, encarregado de administrar o centro por nazistas que desconsideravam sua herança judaica por causa de suas ligações com a SS.
Logo depois de iniciar seu trabalho, no entanto, ele percebeu que era fácil ajudar as pessoas a escapar. 
Ele falsificou os números de chegada, alegando, por exemplo, que 60 pessoas, em vez de 75, haviam chegado em um determinado dia e depois deixado 15 pessoas escaparem.
Sua tarefa tornou-se mais fácil quando, no início de 1943, os nazistas assumiram uma creche do outro lado da rua - e ao lado da escola de Van Hulst - para colocar crianças judias antes de deportá-las para campos de concentração.
Süskind uniu forças com a cabeça da creche, Henriëtte Pimentel, levando as crianças para a segurança quando um bonde passou em frente à creche.
Foi só quando Pimentel persuadiu Van Hulst a se juntar a eles que seus esforços de resgate aumentaram a velocidade.
Seus edifícios foram separados nas costas por uma sebe. 
Os enfermeiros da creche passavam as crianças por cima da cerca para Van Hulst, que por sua vez as passaria para grupos de Resistência que ajudariam a escondê-las. 



Nenhum dos fugitivos - cujas saídas foram todas acordadas pelos pais - havia sido registrado como recém-chegados, portanto seus desaparecimentos não foram detectados.
Apenas um punhado foi levado embora de uma vez - o suficiente para não despertar suspeitas. 
Mas ajudar alguns, embora conhecer os outros não pudessem ser poupados, provou ser doloroso para os salvadores.
"Todos entenderam que se 30 crianças fossem trazidas, não poderíamos salvar 30 crianças", disse Van Hulst à emissora holandesa NOS no ano passado
"Tivemos que fazer uma escolha, e uma das coisas mais horríveis foi fazer uma escolha."

A escola do Sr. Van Hulst (à esquerda) ao lado da creche (com caixilhos de janelas brancos, à direita)
Uma das crianças que Van Hulst ajudou a resgatar foi Lies Caransa, que foi contrabandeada para fora da creche aos quatro anos, escondida em uma sacola. 
A maioria de sua família foi posteriormente morta em Sobibor, mas mais tarde ela se reuniu com a mãe.
"Não me foi permitido despedir-me nem abraçar a minha mãe e a minha avó, porque isso pode fazer uma cena", disse Lies à NOS.
"Eu só tinha permissão para acenar. Eu me senti sozinho e solitário."
Para que o bairro de Plantage escondesse seus esforços de resgate, eles precisavam manter um relacionamento desconfortável com os nazistas.
A Süskind e outros funcionários da creche e do antigo teatro ainda tinham que continuar seus trabalhos diários. 
E Van Hulst tinha um truque para convencer os nazistas de que ele estava do lado deles.
"Johan tinha uma anedota", disse à BBC Annemiek Gringold, curadora do Bairro Cultural Judaico de Amsterdã. 
"Seus alunos estariam observando os guardas da SS e ele gritaria para os alunos" 
Deixe essas pessoas fazerem o seu trabalho, não é da sua conta", enquanto piscam para os guardas da SS, tentando ganhar sua confiança.
"Ele realizou um ato regularmente, a fim de obter sua confiança."
Tudo isso aconteceu sem que ele dissesse uma vez a sua esposa Anna o que ele estava fazendo, já que ele não queria que ela possuísse informações comprometedoras.
Não está claro quantas crianças foram contrabandeados para fora da creche - mas pelo menos 600 Acredita-se ter sido salvas
Os socorristas precisaram de um pouco de sorte também.
Quando o governo enviou um inspetor para a escola de Van Hulst sem aviso, ela ouviu bebês chorando lá dentro. 
Por acaso, o inspetor era membro da Resistência e se juntou aos esforços de Van Hulst para levar as crianças a um lugar seguro.
O fim da operação, quando chegou, foi repentino.
Henriëtte Pimentel foi preso em julho de 1943 e foi morto em Auschwitz em setembro daquele ano.
Naquele mesmo mês, foi anunciado repentinamente que a creche deveria ser esvaziada. 
Muitas crianças permaneciam dentro, e nem todas podiam ser resgatadas.
"Tente imaginar 80, 90, talvez 70 ou 100 crianças ali, e você tem que decidir que filhos levar com você", disse Van Hulst uma vez. 
"Esse foi o dia mais difícil da minha vida."
O fato de ele não ter conseguido salvar mais crianças o assombrou até o fim, disse Annemiek Gringold.
"Só penso no que não consegui fazer, naqueles milhares de crianças que não consegui salvar", disse Van Hulst ao jornal Het Parool em 2015.
O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, homenageou Johan van Hulst em 2015
Van Hulst conseguiu manter sua escola aberta durante toda a guerra, desafiando as tentativas nazistas de recrutar seus alunos e continuou seu trabalho na Resistência.
Ele passou as últimas semanas da guerra se escondendo, tendo sido alertado de que os nazistas estavam chegando para prendê-lo apenas alguns minutos antes de eles chegarem.
Em sua vida posterior, ele passou 25 anos como senador holandês e foi membro do Parlamento Europeu de 1961 a 1968.
Ele permaneceu ativo na política e na educação, escrevendo centenas de publicações à mão e vencendo um torneio de xadrez aos 99 anos. 
Sua antiga escola agora abriga o Museu Nacional do Holocausto.
Enquanto Van Hulst raramente falava do que ele fez na Segunda Guerra Mundial, muitos outros destacaram a importância de sua contribuição.
Em 1972, ele foi premiado com os Justos Entre as Nações, um título dado pelo Estado de Israel aos não-judeus que ajudaram os judeus na guerra.
"Nós dizemos: aqueles que salvam uma vida salvam um universo", disse o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu a Van Hulst em 2015. 
"Você salvou centenas de universos".

*grifos nossos
post: Marcelo Ferla
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Sabia dessa.



'Monstro, prostituta, bichinha': como a Justiça condenou a 1ª cirurgia de mudança de sexo do Brasil e sentenciou médico à prisão
Em 1971, Roberto Farina operou a transexual Waldirene em São Paulo; cinco anos depois, o Ministério Público descobriu o caso e denunciou o cirurgião por lesão corporal gravíssima, expondo a paciente a traumas que ela carrega até hoje.
Por Amanda Rossi, BBC

Fotografia de Waldirene em laudo do IML, feita em 1976; ela teve negado o pedido do habeas corpus preventivo para não ser submetida ao exame (a marca protegendo os seios foi feita pela BBC Brasil) (Foto: BBC Brasil)
Waldirene estava constrangida e acuada. 
Na noite anterior, dois homens haviam entrado na escola onde ela estudava inglês, no interior de São Paulo, para levá-la coercitivamente para o Instituto Médico Legal da capital, a mais de 400 quilômetros. 
Ao chegar lá, foi obrigada a se despir, mantendo apenas as sandálias de salto plataforma baixo. 
Era 1976, em plena ditadura militar – o diretor do IML, Harry Shibata, seria posteriormente considerado conivente com a repressão.
Nua, Waldirene passou a ser fotografada. 
Primeiro, de frente. 
A jovem loira, de 30 anos, 1,72 metro de altura, olhava para o chão, evitando o homem por trás das câmeras. 
Seus lábios estavam cerrados. 
Os braços, colados ao lado do corpo, enquanto as pernas apertavam-se uma contra a outra, em uma tentativa de se proteger da exposição. 
Pediram a ela que se virasse de um lado, de outro e depois se sentasse. 
Em cada posição, uma nova foto.
Waldirene foi ainda submetida a um exame ginecológico. 
Um espéculo de metal foi introduzido em seu corpo e, dentro dele, uma fita métrica. 
A cena foi fotografada para registrar o comprimento e a largura do canal vaginal. 
A jovem, que trabalhava como manicure no interior, havia pedido um habeas corpus preventivo para não ser submetida a tudo isso. 
Mas a Justiça paulista negou.
O objetivo do IML era extremamente peculiar: verificar se Waldirene era mulher. 
O nome que constava em sua ficha era outro, Waldir Nogueira.
Cinco anos antes, em dezembro de 1971, Waldirene havia sido submetida a uma cirurgia para mudança de sexo genital – de masculino para feminino. 
Ou melhor, "para a fixação do seu verdadeiro sexo, que sempre foi feminino", segundo ela mesma. 
Essa é considerada a primeira operação do tipo feita no Brasil.
A cirurgia foi realizada no Hospital Oswaldo Cruz, em São Paulo, por Roberto Farina, naquele momento um dos mais importantes cirurgiões plásticos do país
Antes disso, Waldirene foi acompanhada durante dois anos por uma equipe interdisciplinar do Hospital das Clínicas, que a identificou como transexual, condição em que o gênero é diferente do sexo físico.
Em outras palavras, é como ser mulher, tendo nascido em um corpo masculino – ou o contrário. 
A cirurgia é, assim, uma forma de adequar o corpo ao verdadeiro gênero – quando assim desejado pelo indivíduo.
"Minha vida antes da operação era um martírio insuportável por ter que carregar uma genitália que nunca me pertenceu. 

Depois da operação fiquei livre para sempre – graças a Deus e ao dr. Roberto Farina – dos órgãos execráveis que me infernizavam a vida, e senti-me tão aliviada que me pareceu ter criado asas novas para a vida", escreveu Waldirene na época.
Tudo correu bem. 
Até que, em 1976, o Ministério Público de São Paulo descobriu a intervenção médica e denunciou Farina por lesão corporal gravíssima, sujeita a pena de dois a oito anos de prisão.
Waldirene foi considerada vítima, a sua própria revelia. 
Os órgãos masculinos retirados na operação foram tidos como um "bem físico" tutelado pelo Estado, "inalienável e irrenunciável"
"Dizer-se que a vítima deu consentimento é irrelevante", afirmou relatório policial sobre o caso.
"Não há nem pode haver, com essas operações, qualquer mudança de sexo. 
O que consegue é a criação de eunucos estilizados, para melhor aprazimento de suas lastimáveis perversões sexuais e, também, dos devassos que neles se satisfazem. 
Tais indivíduos, portanto, não são transformados em mulheres, e sim em verdadeiros monstros", denunciou o procurador Luiz de Mello Kujawski em pedido de instauração de inquérito policial.
"Eu não tinha lei a meu favor, era tudo contra mim. 
Eu era tida como puta. 
Não consigo me desvencilhar dessas coisas até hoje", diz Waldirene, agora uma senhora de 71 anos, ainda manicure no interior de São Paulo.
"Eu fui pioneira. 

Segurei bandeira até para quem não me conhece." 
Ela não quis ser fotografada hoje por medo do retorno do "pesadelo" que viveu no passado. 

Para preservá-la, a BBC Brasil omitiu o nome da cidade onde vive. 
Já Roberto Farina faleceu em 2001, aos 86 anos.

Waldirene no Carnaval, na década de 1970 (Foto: Arquivo Pessoal)
A garota brasileira
Waldirene nasceu em 1945, no interior de São Paulo. 
O pai, caminhoneiro, e a mãe, dona de casa, tiveram nove filhos: "quatro meninos, quatro meninas e eu", diz ela.
Os meninos dormiam em um quarto, as meninas em outro. 

Já para Wal (seu apelido), o pai construiu um dormitório separado, onde antes ficava a dispensa da casa. 

É ali que ela dorme até hoje – agora, a única moradora da residência.
"Eu sempre fui Waldirene", fala ela. 

Na infância, preferia as brincadeiras de menina. 

Enquanto os irmãos fingiam que eram cowboys, ela era a mocinha. 

"Queria ser igual às minhas irmãs. 

Por que eu nasci como eu era?"
Na adolescência, a feminilidade foi se acentuando. 

Não tinha pelos no rosto, sua voz não engrossou, sua cintura era levemente marcada. 

Além disso, passou a se interessar por homens.

Os problemas com a família também foram aumentando. 

O pai, inclusive, tentou tratar o filho "meio-termo" com hormônios masculinos. 

Até que Wal decidiu se afastar da família e foi viver em uma cidade próxima, também no interior de São Paulo, ganhando a vida como manicure.
Era apaixonada pelo mundo do cinema. 

Um dos seus passatempos era recortar fotos de atores e atrizes estrangeiros em revistas da época. 

Foi assim que conheceu a história de Coccinelle, dançarina de cabaré francesa que nasceu homem e foi operada. 

Wal passou a desejar para si a mesma metamorfose.

Sua transformação começou quando um médico do interior lhe orientou a procurar a endocrinologista Dorina Epps no Hospital das Clínicas de São Paulo, em 1969. 

"Logo que ela me viu, quis me ajudar. 

Foi muito minha amiga, muito atenciosa, devo muito a ela", lembra Waldirene.

Dorina Epps, hoje com 94 anos e impedida de falar por problemas de saúde, foi pioneira nos estudos de gênero no Brasil

Nas Clínicas, sob direcionamento dela, Waldirene foi extensivamente examinada. 

Também passou a frequentar sessões de terapia semanais. 

Logo, veio o laudo: 

"Trata-se de paciente que demonstra possuir personalidade com características claramente femininas, estruturadas desde a infância".
Em um primeiro momento, foi aventada a possibilidade de levar Waldirene para ser operada nos Estados Unidos – naquela época, a cirurgia só estava disponível no exterior. 

Foi então que o caso chegou a Roberto Farina, professor da Escola Paulista de Medicina

O médico já era pioneiro em cirurgias urogenitais, mas nunca tinha feito operações de mudança de sexo.
"Diante do caso, adquiri literatura especializada e realizei em cadáveres várias operações plásticas com a finalidade de alcançar conhecimento necessário para realizar a operação em Waldir", disse o médico em depoimento judicial. 

A cirurgia consiste na retirada dos órgãos sexuais masculinos e na construção de uma vagina.
Waldirene não temeu o pioneirismo. 

"Eu não tinha medo da operação, só queria resolver o meu problema", conta.

A cirurgia, feita sem nenhum custo para a paciente, ocorreu cerca de vinte anos depois do primeiro caso bem-sucedido conhecido no mundo, o da americana Christine Jorgensen, operada na Dinamarca em 1952

Ainda antes, na década de 1930, Lili Elba passou pela primeira tentativa de cirurgia transgênero, mas morreu em uma das operações – sua história inspirou o filme A Garota Dinamarquesa (2015).
Já recuperada, Waldirene voltou para sua cidade natal como uma nova mulher, os cabelos loiros crescidos, o corpo feminino e uma alegria inédita. 

Um dos motivos do retorno foi uma paixão por um estudante universitário que era a cara do personagem do ator Robert Redford no filme Proposta Indecente (1993), lembra ela. 

O romance ocorreu às escondidas. 

"Ninguém poderia saber, seria um escândalo para ele."
Mas, quando o rapaz terminou a faculdade, a história acabou. 

Waldirene ficou desolada. 

Seria só o começo de uma história de infortúnios.

Cirurgião plástico Roberto Farina foi o primeiro a realizar cirurgias em transexuais femininos e masculinos no Brasil (Foto: ARQUIVO DA FAMÍLIA DE ROBERTO FARINA)
O pioneiro
No final de 1975, Farina anunciou em um congresso científico que vinha realizando cirurgias de mudança de sexo no Brasil. 
Além de Waldirene, tinha feito cerca de uma dezena de operações – outros pacientes estavam na espera, entre eles um índigena da tribo carajás. 
A princípio, o caso foi visto pela comunidade médica como uma inovação. Porém, logo chegou à esfera judicial.
Ciente do caso, o Ministério Público pediu que Farina fosse investigado por lesão corporal, por estar "mutilando" homens
A polícia, então, intimou o médico a fornecer o nome completo e o endereço de todos os pacientes que tinha operado – o que ele se recusou a fazer.
A história poderia ter sido encerrada aí, não fosse por outro processo judicial. 
Waldirene tinha entrado na Justiça para mudar o nome nos documentos – oficialmente, ela ainda era Waldir. 
Assim, o Ministério Público descobriu sua identidade. 
Era o que bastava para começar o cerco judicial.
O laudo do IML foi uma das primeiras providências. 
Apesar do constrangimento sofrido por Waldirene, os médicos-legistas concluíram que ela era mulher. 
Além disso, apoiaram Farina: 
"Acreditamos ter sido a intervenção terapeuticamente necessária".
O resultado, embora surpreendente, não freou o ímpeto do novo promotor do caso, Messias Piva: 
"Não deve o jurista impressionar-se com as atitudes sentimentais expressas por Waldir e afirmadas, com certo sensacionalismo pelos médicos, mediante alusões ao 'seu sonho de ser mulher'. 
A realidade é outra (...) Waldir Nogueira é um doente mental". 
Piva já é falecido. 
O Ministério Público de São Paulo não quis comentar.
O processo provocou comoção na comunidade científica internacional. 
Quase duas dezenas de pesquisadores de diversos países enviaram cartas de apoio a Farina – já no Brasil, foram poucos os que o apoiaram além da equipe que participou do caso de Waldirene no Hospital das Clínicas.
"Seria um erro das autoridades judiciais no Brasil de processar o Dr. Farina por seguir um procedimento médico e cirúrgico internacionalmente respeitado e aceito", escreveu, em 1976, o cirurgião plástico John Money, da Escola de Medicina da Universidade Johns Hopkins, considerado autoridade mundial em assuntos de identidade de gênero.
"Em nenhum dos outros países do mundo onde esse tipo de tratamento médico foi praticado, um médico foi acusado de conduta criminosa pelo Estado. 
É um retrocesso muito danoso para a imagem do Brasil", apontou o psiquiatra Robert Rubin, da Escola de Medicina da Universidade da Califórnia em Los Angeles, também em 1976.
Nada disso bastou para convencer o juiz Adalberto Spagnuolo. 
Em 6 de setembro de 1978, o magistrado condenou Roberto Farina a dois anos de reclusão por lesão corporal de natureza gravíssima em Waldir Nogueira.
Na sentença, sugeriu que o paciente deveria ter sido "submetido a tratamento psicanalítico de longa duração como tentativa de cura"
Spagnuolo tem hoje 80 anos e está aposentado
A BBC Brasil não conseguiu contato com o juiz. 
O Tribunal de Justiça não quis se manifestar.

"Foi um caso de manipulação da ciência em nome dos costumes", resume Angela Caniato, coordenadora de gestão documental do Tribunal de Justiça de São Paulo, que encontrou o processo.

'Monstro', 'prostituta', 'doente mental', 'mutilado', 'eunuco', 'bichinha' foram algumas das palavras usadas pelo Ministério Público paulista para se referir a Waldirene no processo contra Farina (Foto: BBC Brasil)
Pessoa idônea
A condenação de Farina alarmou seus pacientes. 
Entre eles, João W. Nery. 
Quando ele leu a notícia nos jornais, "foi como se tivesse levado um soco no estômago. 
O coração parecia sair pela boca. 
O corpo todo tremia pedindo mais ar". 
"O meu médico foi condenado, não pode mais operar", disse ele.
Um ano antes, em 1977, João fora operado por Farina, deixando para trás o corpo de Joana – sua cirurgia é considerada a primeira operação em um transexual masculino no Brasil. 
O relato está no livro de memórias Viagem Solitária, no qual João agradece o médico "pelo pioneirismo cirúrgico em nos fazer renascer".
Tanto a defesa quanto a acusação recorreram da sentença, e o caso foi para a segunda instância. 
Farina pôde esperar pelo julgamento em liberdade.
O Ministério Público pediu o aumento da pena: 
"Admitindo-se que ele (Waldir) possa oferecer sua neovagina a homens, então somos forçados a concluir que agora ele é uma prostituta", afirmou o promotor Piva, em 1978. 
"Embora mutilado, Waldir continuará sendo o que sempre foi, ou seja, um homem que mantém relações sexuais com outros homens. 
Mas a prática de relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo será sempre uma aberração, tanto à natureza como à lei."
E continuou: 
"Farina quer que os portadores de distúrbios mentais possam autorizar a realização em seus próprios corpos de cirurgias mutiladoras; que os homossexuais – 'bichinhas' – entrem em fila para conseguirem a cirurgia; que os pais de família sejam obrigados a suportar, em seus lares, filhos homossexuais – do que ninguém está livre – e ainda mutilados".
A defesa ficou indignada com o palavreado e acusou a Promotoria de "pura demagogia, preconceito e paixão, incompatíveis com um julgamento sério"
Já Waldirene partiu em defesa de Farina, a quem considerava seu "herói" e seu "segundo pai", recolhendo cartas de apoio na sua cidade natal, em 1978.
"Waldirene Nogueira é pessoa de bom caráter, de princípios morais e comportamento exemplar, tratando-se pois de pessoa equilibrada e socialmente adequada", escreveu o então prefeito da cidade.
"Trata-se de pessoa idônea, de boa formação moral, intelectual e profissional, nada me constando, até a presente data, que possa vir em desabono a sua conduta no seio dessa comunidade", declarou o delegado local de polícia.
Advogados, ex-prefeitos, presidentes de associações também emitiram suas cartas, todas registradas em cartório. 
O próprio cartorário, comovido, resolveu aderir à causa. 
Além disso, um abaixo-assinado reuniu cerca de 350 assinaturas.
A última declaração de apoio juntada ao processo foi de Espiridião, um homem de idade, que a princípio rejeitou a transformação de Waldir: 
"Declaro que minha filha Waldirene Nogueira sempre viveu em nossa casa, com seus pais, achando-se depois da cirurgia realizada em 1971 em condições ótimas de saúde e com comportamento normal, relacionando-se bem com todas as pessoas de suas relações sociais".

Em novembro de 1979, os desembargadores que julgaram o caso em segunda instância anularam a condenação de Farina.

'Monstro', 'prostituta', 'doente mental', 'mutilado', 'eunuco', 'bichinha' foram algumas das palavras usadas pelo Ministério Público paulista para se referir a Waldirene no processo contra Farina (Foto: BBC Brasil)
Pênis no nariz
"Farina foi ridicularizado por causa do processo. 
Teve uma grande perda de clientela. 
Faziam piada, diziam que quem fosse operar o nariz com ele sairia com um pênis implantado no rosto. 
Mesmo assim, continuou a fazer as operações (de mudança de sexo). 
Dizia que não podia virar as costas para os transexuais", recorda Glaucio Farina, sobrinho do médico e também cirurgião plástico.
Depois da vitória na segunda instância, o pioneirismo de Farina acabou produzindo um legado positivo. 
Ainda em 1979, uma emenda a um projeto de lei abriu brecha para realizar esse tipo de cirurgia no Brasil. 
Ficou estabelecido que a retirada de órgãos não era punível quando considerada necessária em parecer médico unânime e com consentimento do paciente. 
O texto não fazia menção direta à mudança de sexo, mas era uma forma de proteger médicos como Farina de futuros processos.
Porém, foi apenas em 1997 que o Conselho Federal de Medicina (CFM) autorizou a realização de cirurgias de mudanças de sexo em transexuais – inicialmente, em caráter experimental. 
A partir de 2008, a cirurgia foi incluída no Sistema Único de Saúde (SUS) – os nomes utilizados atualmente são cirurgia de redesignação sexual, processo transexualizador ou cirurgia de afirmação de gênero. 
Desde então, mais de 400 procedimentos hospitalares foram realizados na rede pública.
"Farina foi um grande pioneiro, mas seu trabalho é pouco divulgado até hoje. 
O processo judicial contribuiu muito para o afastamento da academia e até do CFM em relação a ele. 
É preciso desfazer isso historicamente", fala o endocrinologista Magnus Regios Dias da Silva, coordenador do Núcleo de Ensino, Pesquisa, Extensão e Assistência à Pessoa Trans da Universidade Federal de São Paulo, batizado em homenagem a Roberto Farina.
Criado há um ano, com participação da população trans, o núcleo conta com um ambulatório de atendimento de saúde. 
"Hoje, em 2018, é difícil trabalhar com esse ambulatório. 
Sofro todos os tipos de pressões transfóbicas – religiosas, políticas e até da academia. 
Imagina então naquela época, quarenta anos atrás. 
Farina foi um guerreiro, um visionário", compara Magnus. 
Segundo ele, o cirurgião antecipou a concepção de atendimento à pessoa trans que o Brasil implementa hoje.
Em 1982, Farina publicou o livro "Transexualismo" e escreveu: 
"Lamentavelmente, as nossas leis, costumes e tradições não têm um mínimo de compreensão, tolerância e consideração para os transexuais (...) 
A investigação científica, paralelamente ao avanço da tecnologia, aos poucos vai vencendo os seus maiores inimigos que são a ignorância e a superstição".
Apesar da absolvição de Farina, a Justiça condenou Waldirene a viver com o nome de Waldir. 
A manicure perdeu o processo em que lutava para mudar os documentos. 
Isso inviabilizou, por exemplo, que pudesse exercer a carreira de contabilidade, na qual tinha se formado antes da cirurgia. 
Afinal, como se apresentar como mulher, mas assinar os documentos dos clientes como homem? 
Para evitar esse mesmo constrangimento, ela nunca tirou carteira de motorista.
Sua certidão de nascimento só foi alterada quando tinha 65 anos, em outubro de 2010. 
O RG, em janeiro de 2011. 
A conquista veio depois de uma nova batalha judicial, com um advogado que não cobrou nada pelo serviço, indicado por Dorina Epps, a médica que a recebeu nas Clínicas em 1969. 
"Meu pai e minha mãe morreram e eu ainda não tinha o nome correto", lamenta.
Agora, mais nenhuma pessoa trans precisará passar por isso. 
Em primeiro de março deste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) liberou a mudança do nome e do sexo diretamente em cartório, sem necessidade de autorização judicial. 
Também não é necessário ter passado por cirurgia de redesignação sexual ou terapia hormonal, nem apresentar pareceres ou laudos médicos – muito menos do IML, como ocorreu com Waldirene na década de 1970.

Carta de Waldirene para os advogados do médico Roberto Farina, em 1978, após a condenação em primeira instância (Foto: BBC Brasil)
Uma mulher fantástica
A vida de Waldirene mudou completamente depois do processo contra Farina. 
Humilhada na Justiça, na imprensa e na cidade, a garota extrovertida começou a ter medo de sair de casa. 
Ainda hoje, quarenta anos depois, quando está em local público, ela tem a sensação de que está sendo observada e que as pessoas estão comentando sobre ela. 
O resultado é que passa a maior parte do tempo sozinha. 
A única exceção é o Carnaval, "uma oportunidade de sair da ostra".
Waldirene continua a trabalhar como manicure, para complementar a aposentadoria de um salário mínimo. 
A clientela é esporádica – no dia da visita da BBC Brasil, atendeu apenas uma pessoa. 
Cobra 30 reais pelo pé e mão.
O salão fica na antessala da casa onde vive. 
Os móveis, os objetos e parte dos eletrodomésticos parecem brotar dos anos 1980, intocáveis desde que os pais de Wal morreram.
"Tenho uma vidinha boa. 
Mas é uma vidinha. 
Não posso ter grandes sonhos", diz ela
"Falar que a vida é bela? 
Não dá." 
Os problemas de saúde estão se acumulando e é difícil encontrar médicos que entendam – e aceitem – suas cirurgias do passado. 
Um médico urologista com quem se consultou disse que "não acreditava" na sua vagina. 
Um oftalmologista quase caiu da cadeira quando ela contou que nasceu Waldir.
A garota do interior nunca se casou nem teve um relacionamento duradouro. 
Os homens da cidade falavam para ela: 
"Se eu posso ter uma mulher normal, por que vou ficar com uma imitação?"
Ela reclama que eles só queriam sexo, nunca amizade, companheirismo, romance. 
"Hoje eu sou solitária porque eu não quero ninguém se divertindo a minha custa." 
Ainda hoje é uma mulher bonita, loira, curvilínea, quase sem rugas – embora custe a acreditar nisso.
Entre solidões e amarguras, Waldirene faz uma pausa na conversa com a BBC Brasil por causa de uma lembrança. 
Na juventude, ela cantava em serenatas, mas parou porque o pai achava que estavam tirando sarro dela. 
Agora, se recordou de uma interpretação de Nora Ney para um samba de Nelson Cavaquinho e sentiu vontade de cantar outra vez. 
Ela abre os braços e solta a voz:

"Sei que amanhã Quando eu morrer, Os meus amigos vão dizer Que eu tinha um bom coração / Alguns até hão de chorar E querer me homenagear, Fazendo de ouro um violão / Mas depois que o tempo passar, Sei que ninguém vai se lembrar Que eu fui embora / Por isso é que eu penso assim, Se alguém quiser fazer por mim, Que faça agora / Me dê as flores em vida, O carinho, a mão amiga, Para aliviar meus ais / Depois que eu me chamar saudade, Não preciso de vaidade, Quero preces e nada mais." 
Waldirene foi manicure durante toda a vida; formada em contabilidade, ela não pôde trabalhar na área por ter sido proibida de alterar o nome de nascimento (Foto: BBC Brasil)
*grifos nossos
post: Marcelo Ferla

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Sabia dessa.



Esta postagem que farei aqui, poderia ser imaginada, talvez, na Finlândia, Dinamarca, Suécia, Canadá, enfim, em países de primeiro mundo e com uma população, a princípio, mais para a frente.
Mas não se engane, você vai se surpreender onde isto ocorreu.
Uma vitória muito importante e pouco esperada.

Paquistão terá primeira âncora de telejornal transgênero
Marvia Malik começou a apresentar as notícias do canal Kohinoor News na sexta-feira e deseja ser uma inspiração para outros transgêneros do país
Por Da redação

Marvia Malik, a paquistanesa de 21 anos que estreou como a primeira âncora transexual no canal de televisão Kohinoor News (Twitter/Reprodução)
Na última sexta-feira, o Paquistão assistiu pela primeira vez uma transgênero apresentar um telejornal. 
Depois de três meses de treinamento no canal privado Kohinoor News, Marvia Malik realizou a sua estreia como âncora e afirmou que deseja ser uma inspiração para outros transgêneros.
Em entrevista à rede americana CNN, Marvia, de 21 anos, contou que não é aceita pela família e desde os 15 teve de aprender a viver por conta própria. 
Já realizou trabalhos como modelo e se formou jornalista na Punjab University.
A sua decisão de concorrer à vaga de âncora veio da vontade de provar à comunidade transgênero que eles “são capazes de realizar qualquer trabalho e fazer o que quiserem”. 
“Eu quero mostra ao país que somos mais que objetos de chacota… que somos seres humanos”, afirmou.
O diretor do canal, Bilal Ashraf, chefe de Marvia, contou à rede americana que no dia do teste não percebeu que ela era transgênero. 
“Nós não vamos discriminar, todo mundo tem sonhos e objetivos”, disse.
Este mês, o senado paquistanês aprovou por unanimidade um projeto de lei que protege os direitos da comunidade transgênero e estimula que as pessoas determinem seu próprio gênero. 
Em 2016, uma ativista trans morreu depois que demorou para receber tratamento médico porque o hospital não soube se a colocava numa ala feminina ou masculina.
De acordo com o senso de 2017, que pela primeira vez incluiu a comunidade trans nas pesquisas, há aproximadamente 10.000 pessoas que se identificam como transgênero no país sul-asiático.
Marvia conta que se identificou como trans quando era bem jovem e sofreu a rejeição da família. 
Eu quero que a próxima geração de jovens transgêneros olhe para mim como uma inspiração para que eles possam ser aceitos e que possa haver oportunidades para eles”, disse à CNN.

*grifos nossos

post: Marcelo Ferla

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