Volta ao passado
autoritário do czarismo e do comunismo na Rússia.
O mundo tenta entender
o porquê de ataques às liberdades de expressão e civis no país
Ex-oficial da KGB, Vladimir Putin endureceu repressão aos
protestos
A Rússia tem legislação
que em tese protege os direitos humanos, e seu sistema judiciário,
teoricamente, respeita o princípio basilar da separação entre os poderes.
Tudo, aparentemente,
perfeito. Os fatos, porém, têm arranhado a imagem de incipiente democracia do
país que deixou o czarismo e depois o stalinismo na poeira da História. E o
mais recente deles é a prisão dos 30 tripulantes do navio Arctic Sunrise, do
Greenpeace, por pirataria — ao protestar em uma plataforma contra a exploração
de petróleo no Ártico.
Em tese, o sistema
jurídico russo se ocidentalizou depois do fim da União Soviética, com a adoção
de institutos parecidos, em especial, com o direito francês. O juiz mineiro
Luiz Guilherme Marques, porém, um raro brasileiro que se debruçou para estudar
a Justiça russa, conta que alguns vícios da vida prática desvirtuam tais
progressos. Exemplos: acusações de confissões extorquidas sob tortura que levam
a um índice extremamente alto de condenações, tribunais sobrecarregados de
processos e, sobretudo, baixos vencimentos da magistratura, que levam os juízes
a ser dependentes de autoridades locais.
Especificamente em relação
aos direitos humanos, desde 1993 a Constituição conta com um capítulo, o
segundo, dedicado aos direitos e liberdades individuais. O país é signatário da
Declaração Universal dos Direitos Humanos e de outros documentos que estão
acima da Constituição, incluindo o Pacto Internacional dos Direitos Civis e
Políticos, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e
a Convenção Europeia dos Direitos Humanos.
A realidade, porém, é
preocupante. Relatório de 2004 do comissariado para Conselho de Direitos
Humanos da Europa chegou a festejar a democracia russa, mas ponderou que era
"incipiente" e estava "longe de ser perfeita". Vladimir
Lukin, atual comissário de Direitos Humanos na Rússia, define a situação dos
direitos humanos no país, nos últimos anos, como insatisfatória. Atribui isso à
construção do estado de direito em um país complexo.
Em 2006, a revista The
Economist publicou ranking de democracia entre 162 nações. A Rússia ficou em
102º lugar, classificada como "regime híbrido, que controla os meios de
comunicação e outras liberdades civis." No relatório Freedom in the World
de 2013, a organização americana Freedom House considerou a Rússia um país
"não livre", com falhas nos direitos políticos e nas liberdades
civis.
— A democracia se
desenvolve e não é linear. A Rússia vem de uma tradição autoritária e
centralizadora. Quando Putin surgiu com seu estilo centralizador e
nacionalista, conseguiu recuperar a identidade do país e mostrá-lo ainda como
potência. Mas, ao se reeleger, perdeu o norte. Precisava ter se dado conta de
que a situação mudou. Surgiram protestos, e ele, tendo maioria no Legislativo,
fez questão de mostrar que é quem manda — diz o analista Giorgio Romano
Schutte, membro do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais.
O cientista político
alemão Kai Enno Lehman, especialista em Europa e professor na Universidade de
São Paulo (USP), diz que há "uma tendência histórica de a Rússia ser
autoritária" e que Putin "age contra quem o critica",
manipulando o sistema para centralizá-lo. E isso inclui a Justiça.
Jose Ignacio Torreblanca,
cientista político e integrante do Conselho Europeu de Relações Internacionais,
não atribui o sistema russo a resquícios do autoritarismo czarista ou
stalinista:
— É um caso muito claro de
"neoautoritarismo". Putin quer manter o poder controlando a oposição
e se servindo dos meios de comunicação. Utiliza todos os recursos do Estado
para amedrontar a oposição. Putin enfrenta a rebelião da classe média.
Lei da mordaça
O caso exemplar da
intransigência russa ocorreu em março de 2012. Durante uma performanece não
autorizada na catedral de Moscou, três mulheres da banda punk Pussy Riot foram
presas, acusadas de vandalismo e ódio religioso por cantarem uma "oração
punk" contra Vladimir Putin.
Em 17 de agosto de 2012,
foram condenadas a dois anos de prisão. Uma das jovens obteve liberdade
condicional, mas as outras duas permanecem detidas.
O episódio envolvendo as
Pussy Riot trouxe críticas fortes ao regime russo, com defensores dos direitos
humanos lembrando a herança de regimes autoritários como o czarista e o
stalinista — uma das garotas chegou a fazer greve de fome e o acesso a ela foi
proibido pelas autoridades prisionais russas. Putin nega qualquer tipo de
comparação à era de Joseph Stalin.
A prisão das Pussy Riot
faz parte de uma virada para o autoritarismo registrada desde as eleições da
Duma, em 2011, e para a presidência, em 2012, diz William Pomeranz, diretor do
Instituto Kennan de Estudos Avançados em Rússia do Wilson Center, em
Washington:
— Todas essas ações
apontam para um medo de protestos, para um desejo de assustar os manifestantes
antes que eles saíssem às ruas.
Outra preocupação dos
organismos de direitos humanos é a homofobia. Os LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Travestis, Transexuais e Transgêneros) têm direitos restritos e não há leis que
os proteja contra a discriminação. Em 2012, o Tribunal Superior de Moscou
determinou que nenhuma parada gay pode ser realizada na cidade pelos próximos
cem anos.
Em 2013, o governo russo
aprovou a proibição de distribuição de "propaganda de relações sexuais não
tradicionais" a menores. A lei impõe multas para o uso de qualquer mídia
para promover "relações não tradicionais". O episódio é emblemático
da situação russa em termos de costumes.
Adversários políticos de
Putin também são atingidos pela nova onda de czarismo. O advogado e blogueiro
Alexei Navalny, que denunciava a corrupção do governo russo na internet e
ganhou grande apoio para concorrer às eleições municipais de Moscou (às quais,
por pouco, não participou do segundo turno), foi acusado de fraude e desvio de
mais de 16 milhões de rublos (US$ 1,09 milhão). Condenado a cinco anos de
trabalho forçado, espera a revisão do caso em liberdade — um tiro que saiu pela
culatra, segundo Pomeranz:
— Eles ainda permitiram
que ele concorresse para prefeito de Moscou, para legitimar as eleições com um
opositor genuíno. Mas acho que esse tiro foi pela culatra, considerando que ele
quase levou as eleições municipais de Moscou ao segundo turno.
post: Marcelo Ferla
fonte: ZERO HORA
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