O
campo de testes onde soviéticos explodiram quase 500 bombas atômicas.
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Vista aérea do
'Polígono', em que mais de 400 bombas nucleares foram detonadas.
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"O Polígono" do
Cazaquistão é um lugar com um passado aterrador.
Durante a Guerra Fria,
mais precisamente entre 1949 e 1989, o local, conhecido oficialmente como Campo
de Testes de Semipalatinsk, esteve no coração do programa nuclear da União
Soviética - nada menos que 456 bombas foram detonadas nos 18 mil quilômetros
quadrados do espaço.
E as consequências são
sentidas até hoje.
Situado em uma região de
estepe na Ásia Central, o Polígono era o maior campo de testes do mundo e sua
extensão equivalia ao território da Bélgica.
Os testes eram coordenados
a partir da cidade planejada de Kurchatov, que recebeu este nome em homenagem
ao físico Igor Kurchatov, um dos pais do programa nuclear soviético.
A região foi escolhida
tanto pelas suas características geográficas quanto por sua relativa
proximidade de Moscou e, de acordo com o chefe do programa nuclear soviético,
Lavrenti Beria, por ser um local "praticamente desabitado".
Foi justamente a desolação
do terreno que fez com que, em meados do século 19, o czar russo Nicolau 1º
enviasse para um campo de trabalhos forçados da região o escritor e dissidente
russo Fiódor Dostoiévski.
Desabitado?
Porém, quando as
autoridades russas decidiram criar ali o campo de testes, em 1947, cerca de 700
mil pessoas viviam nos arredores.
Karipbek Kuyukov é uma
vítima dos testes.
"Nasci sem braços.
Minha mãe ficou chocada, foi tudo
muito difícil para ela.
Ficou dias sem olhar para mim", conta ele à BBC.
Nascido em 1968, Kuyukov é
filho de um casal que pertencia a um grupo de pastores nômades evacuado pelo
Exército soviético apenas horas antes de um teste nuclear.
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O icônico
'cogumelo' de explosões nucleares.
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"Os médicos disseram
à minha mãe que, se ela não me quisesse, poderiam me dar uma injeção para
acabar com meu sofrimento e o dela", explica.
Seu pai, porém, disse não.
"Ele me deu o
presente da vida. Creio que desde então minha missão na Terra é assegurar que
seja uma das últimas vítimas dos testes nucleares", completa Kuyukov.
'Espetáculo bonito'
As detonações foram
realizadas em segredo absoluto pelo regime soviético.
E muitos detalhes sobre o
programa nuclear da URSS permaneceram desconhecidos porque o governo da Rússia
ainda mantém os documentos sob sigilo.
"Minha mãe contava
que subia as colinas para observar as explosões", diz Kuyukov.
"Ela dizia que era um
espetáculo bonito, que começava com um flash e terminava com a subida ao céu de
uma espécie de cogumelo.
Segundos depois, tudo ficava escuro".
Durante muitos anos, os
habitantes do "Polígono" eram examinados periodicamente por médicos
do Exército.
A região registrou o surgimento de doenças, incluindo inúmeros
casos de câncer.
Famílias inteiras se suicidaram, segundo contam moradores.
No final da década de 80,
surgiu o Movimento Antinuclear Nevada-Semipalatinsk, que pedia o fim dos
testes.
Dois de seus principais líderes foram o poeta Olzhas Suleimenov e
Kuyukov, convertido em ativista.
O movimento teve
repercussão internacional e, consequentemente, a URSS cancelou 11 de 18 testes
programados para 1990.
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Karipbek
Kuyukov tornou-se ativista.
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Material abandonado
Em 29 de agosto de 1991, o
presidente do Cazaquistão, Nursultan Nazarbayev, ordenou o fechamento de
Semipalatinsk.
A república soviética declarou sua independência em dezembro
daquele ano e renunciou de forma voluntária ao arsenal nuclear herdado após o
colapso da URSS.
O dia 29 de agosto foi
escolhido pelo ONU o Dia Internacional contra os Testes Nucleares, a pedido do
governo cazaque.
O representante permanente
do Cazaquistão na ONU, Kairat Abdrakhmanov, disse que o país tinha, então, mais
de 110 mísseis e cerca de 1,2 mil ogivas nucleares - que foram devolvidas à
Rússia até 1995.
A retirada das tropas
soviéticas trouxe consequências socioeconômicas terríveis para Semipalatinsk.
Um contingente de apenas 500 soldados cazaques ficou a cargo da segurança das
instalações.
Habitantes da região
começaram a desmantelar a estrutura abandonada para vender como sucata,
expondo-se ainda mais à radiação.
O próprio diretor do "Polígono" foi
despedido em 1993, depois de vir à tona que traficava equipamento militar.
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Semipalatinsk nos
dias de hoje.
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'Impacto crônico'
E os problemas de saúde
continuaram depois do fim dos testes nucleares.
O Instituto de Medicina
Radioativa e Ecologia do Cazaquistão estima que, entre 1949 e 1962, uma
população de entre 500 mil a 1 milhão de pessoas tenha sido exposta à radiação.
Hoje, investigadores como
o médico Talgat Muldagaliev estudam os efeitos da contaminação.
"O que aconteceu no
'Polígono' é diferente de outras catástrofes radiotivas como Chernobil e
Hiroshima", contou Muldagaliev à BBC Mundo (o serviço em espanhol da BBC).
"Naqueles locais
houve apenas uma explosão, mas no Cazaquistão as pessoas estiveram expostas por
muito tempo ao impacto crônico da radiação."
Outros 'cemitérios'
O "Polígono" não
é a única região do mundo afetada pelos testes nucleares.
Durante a Guerra Fria,
URSS, Estados Unidos, França e Reino Unido realizaram testes nucleares em
vários pontos do planeta.
Apesar de a maioria das
detonações ter sido realizada em regiões remotas - como atóis desabitados -, o
governo americano durante muitos anos explodiu bombas no Campo de Nevada, a
apenas 105 km de Las Vegas, o maior que os EUA já tiveram.
Em uma superfície de 3,5 mil
quilômetros quadrados, o Exército americano realizou 928 testes entre 1951 e
1992 - mais de 800 detonações foram subterrâneas.
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As Ilhas Marshall,
no Oceano Pacífico, também foram palco de testes nucleares.
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Muitas explosões se
converteram em espetáculos midiáticos, pois podiam ser vistas a mais de 150 km
de distância.
Mas em cidades como St.
George, no Estado de Utah, moradores sofreram os efeitos da radiação arrastada
pelo vento.
Autoridades sanitárias dizem que casos de leucemia e cânceres de
tireoide, seio e tumores cerebrais aumentaram consideravelmente entre as
décadas de 1950 e 1980.
Especialistas como Carl J.
Johnson criticaram abertamente o governo americano e alertaram sobre os riscos
dos testes nucleares.
Em um estudo, Johnson
assegurou que as detonações provocariam aumento de casos de câncer em Utah.
O mesmo estudo já trazia
um indicador preocupante: as mortes de crianças por leucemia no condado de
Jefferson, no Estado do Colorado - vizinho a Nevada -, eram o dobro da média
nacional entre 1957 e 1962.
Fim dos testes
Além de Semipalatinsk e
Nevada, a maioria dos testes nucleares realizados durante a Guerra Fria teve
lugar em ilhas do Pacífico.
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Estados Unidos
fizeram explosões nucleares nas Ilhas Marshall.
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A URSS usou a região
ártica de Nova Zembla para realizar 224 testes entre 1955 e 1990. Um deles
produziu a mais potente explosão humana da história, com a detonação, em 20 de
outubro de 1961, de uma Bomba Tsar com potência de mais de 57 megatons - o
equivalente a 57 milhões de toneladas de dinamite.
Cientistas calculam que a
explosão foi 3 mil vezes mais potente que a provocada pela "Little
Boy", a bomba lançada em 6 de agosto de 1945 em Hiroshima.
A Polinésia, por sua vez,
foi campo de provas do exército francês.
Nos atóis de Fangataufa e Mururoa, foi
lançado um total de quase 190 bombas nucleares.
Os EUA levaram a cabo mais
de 40 detonações nas Ilhas Marshall - uma delas foi tão forte que destruiu por
completo a ilhota de Elugelab.
post: Marcelo Ferla
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