Como armas compradas pelos
EUA acabaram nas mãos do Estado Islâmico
Gordon
Corera
Da BBC News no norte do
Iraque
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Munições
geralmente têm marcas que ajudam a identificar a sua origem.
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Armas que deveriam estar
nas mãos dos combatentes apoiados pelas forças ocidentais na Síria estão indo
para o autodenominado grupo Estado Islâmico (EI) no vizinho Iraque.
Mas como
isso está acontecendo?
James Bevan e sua pequena
equipe entram pisando cuidadosamente em uma casa na cidade de Qaraqosh, não
muito distante de Mossul, no norte do Iraque.
Um rastro de sangue logo
na porta de entrada e roupas próprias para um ataque suicida confirmam a
informação recebida da milícia local - o local era usado por combatentes do EI.
O grupo de Bevan faz parte
do setor de Investigação de Armamentos em Conflitos (CAR, na sigla em inglês),
organização britânica financiada em parte pela União Europeia que rastreia e
levanta informações sobre suprimento de armas em zonas de conflito.
Em busca de
evidências, os investigadores levam apenas notebooks e câmeras.
A casa tem ainda vestígios
da família que ali vivia: roupa de cama e peças de vestuário espalhadas pelos
cômodos.
Mas num quarto dos fundos, a equipe encontra o que buscava - caixas
vazias de munição.
Eles conversam enquanto
tomam notas e tiram fotos.
O objetivo é entender como as armas foram parar nas
mãos erradas.
"A comunidade
internacional tem estado cega para o fato de que armas estão sendo desviadas
para áreas de conflito", explica Bevan.
A equipe da CAR trabalha
próximo da linha de frente dos combates, em áreas recentemente retomadas do EI.
Munições podem ser examinadas, mas as caixas vazias são mais úteis porque têm
números de série e da quantidade que continham.
A numeração das caixas é
inserida pela equipe de Bevan numa base de dados para rastrear como o material
saiu da fábrica e chegou a uma zona de conflito.
'Receita' para fazer bomba
Qaraqosh, uma cidade predominantemente
cristã, se tornou cenário de uma devastação quase apocalíptica - prédios
reduzidos a escombros, crateras nas ruas, torres de igreja tombadas.
As ruas estão
estranhamente silenciosas.
Todos os moradores saíram quando o EI chegou.
E o EI
só deixou a cidade no fim do mês passado, após a ofensiva para libertar Mossul.
Durante o dia, uma milícia
cristã local patrulha a cidade, mas há relatos de que à noite combatentes do EI
às vezes voltam.
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As
forças iraquianas têm encontrado uma grande quantidade de armas em locais
retomados do Estado Islâmico.
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Visitamos uma igreja e
encontramos três fiéis.
Eles lembraram exatamente quando foi a última
celebração ali - às 16h do dia 6 de agosto de 2014.
Depois, eles fugiram para
a cidade de Erbil e só voltaram rapidamente para ver o que restara do templo.
Os quadros em torno do
altar foram rasgados e o prédio saqueado.
No salão da igreja, a equipe da CAR
encontra sinais de que o local também era usado pelo EI como uma fábrica de
armas.
Partes de foguetes estão
espalhadas pelo chão.
Ao lado de uma vasilha com produtos químicos, uma
"receita" - escrita à mão - de como misturar explosivos.
O EI tentou fazer uma
linha de produção de armas em massa nas áreas que controlava e criou fábricas
de morteiros artesanais.
Mas também há sinais de que os materiais usados vieram
de outros países.
Compras em massa
Perto dos bancos da igreja
há sacos com produtos químicos - a equipe da CAR já viu isso antes.
Eles são
vendidos no mercado interno da Turquia, mas grandes quantidades chegam ao EI.
"Ao analisarmos as
armas artesanais e os explosivos caseiros, sabemos que eles compram grandes
quantidades, principalmente no mercado turco", diz Bevan.
"A rede de
compradores do EI chega ao sul da Turquia e certamente tem relacionamentos
muito fortes com distribuidores bem grandes."
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Armamentos,
munições e explosivos chegam à Síria procedentes da vizinha Turquia.
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Em alguns casos a CAR
encontrou provas de que três mil a cinco mil sacos de produtos químicos tinham
sido comprados com um mesmo número de lote.
"Alguém foi lá (na
Turquia) e comprou metade do estoque de uma fábrica", diz.
O EI não tem problema para
se armar - e o levantamento da CAR indica que em parte isso se deve às armas
levadas para a zona de conflito pelos grupos em luta.
O papel da Turquia
O comércio de armas é um
mundo sombrio e oculto, mas a equipe de Bevan encontrou pistas da fonte da
munição usada pelo EI.
Na fase inicial do
conflito, a maior parte foi conseguida no campo de batalha, de forças
iraquianas e sírias.
Mas desde o fim de 2015, os investigadores começaram a ver
o surgimento de outra importante fonte.
Caixas de munição
encontradas foram rastreadas até fábricas no leste europeu.
A equipe de Bevan fez
contato com vários países da região.
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Em
algum ponto do caminho até as forças que combatem o EI, armas e munições acabam
sendo desviadas.
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Eles descobriram que o
material tinha sido vendido - legalmente - para os governos dos Estados Unidos
e da Arábia Saudita.
Em seguida fora embarcado pela Turquia.
O destino eram os grupos
de oposição (apoiados pelos EUA e pelos sauditas) no norte da Síria que
combatem as forças do presidente sírio Bashar al-Assad.
A intenção nunca foi fazer
a munição chegar ao EI, mas em algum ponto do caminho ela foi desviada.
Esta munição foi
encontrada nas cidades de Tikrit, Ramadi, Falluja e agora em Mossul - todos
lugares onde acabou sendo usada para combater as forças iraquianas apoiadas
pelos EUA.
A rapidez com que o EI
está conseguindo esse material é alarmante - algumas vezes apenas dois meses
depois de sair da fábrica.
"Se você fornece
armas e munição para grupos que não são estados e estão envolvidos em um conflito
muito complexo e interligado, o risco de desvio é muito, muito alto",
explica Bevan.
Mapeando o fluxo das armas
Talvez o paralelo mais
próximo para o problema do desvio de armas tenha sido o apoio que os EUA e
aliados deram aos combatentes mujahedin, que lutavam contra a antiga União
Soviética no Afeganistão, nos anos 1980.
Naquela ocasião, as armas
estavam sendo enviadas para alguns grupos aprovados pela CIA (o serviço de
inteligência americano), mas eram canalizadas para o serviço secreto do
Paquistão e, às vezes, iam para outros grupos que combatiam a União Soviética e
tinham propostas ainda mais radicais, como a rede Al-Qaeda do falecido Osama
Bin Laden.
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Os
combatentes do Estado Islâmico estão recebendo armas originalmente destinadas
aos rebeldes que lutam contra o regime do presidente Assad, na Síria.
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A situação atual é ainda
mais complexa e confusa do que a do Afeganistão nos anos 80.
Hoje, são conflitos
em dois países, Iraque e Síria, com um número bem maior de países apoiando
grupos diversos.
Bevan acredita que traçar
a rota das armas é o primeiro passo para evitar o desvio.
"Nós podemos ir ao
fabricante e dizer: essas armas são suas e sabemos que você as vendeu
legalmente, mas o seu comprador as transferiu sem autorização.
Então você tem
um problema e agora precisa fazer algo em relação a ele."
A prova da destruição
provocada pelas armas está em toda parte no Iraque e na Síria.
Tentar conter
esse fluxo não será fácil enquanto outros Estados estiverem apoiando grupos
simpatizantes locais.
E no caos deste conflito
não há garantia de quem vai terminar pondo as mãos nas armas nem de como elas
serão usadas.
post: Marcelo Ferla
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