Ato
de vandalismo destrói gravuras históricas sobre mito indígena em caverna do
Xingu
Lígia Mesquita
Da BBC News Brasil em
Londres
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Um índio Waurá
ensinando a mitologia em torno do guerreiro Kamukuwaká a crianças da aldeia
usando as gravuras da caverna no Xingu antes do local ser vandalizado
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A expedição que
visitou a caverna há alguns dias registrou as rochas sem as gravuras
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"É triste.
A caverna
era como uma escola para nossos filhos, é onde ensinamos a história (do nosso
povo), cantamos músicas e fazemos alguns rituais", diz o indígena Pirathá
Waurá à BBC News Brasil sobre a depredação sofrida na caverna Kamukuwaká, em
Paranatinga (MT), às margens do rio Tamitatoala, no Alto Xingu.
O local, sagrado para 11
etnias do Xingu e tombado pelo patrimônio histórico desde 2016, teve parte de
suas gravuras apagadas no que a Polícia Militar do Mato Grosso identificou
inicialmente como um ato intencional - as figuras estavam gravadas nas rochas
da gruta.
Segundo a perícia feita pelo
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em conjunto com
policiais, há indícios de que tenha sido usado algum tipo de ferramenta para
apagar as gravuras que, em sua maioria, representavam animais.
Nem as
autoridades, nem os índios waurá sabem dizer quando houve a ação de vandalismo,
porque já fazia algum tempo que ninguém visitava o local.
O Iphan já encaminhou ao
Ministério Público Federal e à Polícia Federal um pedido de investigação.
Por
se tratar de gravura em rocha, não há como precisar a data exata delas, mas
pesquisadores, arqueólogos e o Iphan dizem que elas podem ter centenas de anos.
Para alguns arqueólogos, os desenhos tinham semelhança com tipos de arte
rupestre.
"A caverna é muito
importante para o nosso povo.
É de lá que nascem nossas tradições, como a
música de furar a orelha que usamos quando alguém vira líder, nossas danças,
nossas pinturas", diz Pirathá, que é professor na escola municipal de sua
aldeia.
Ele explicou à BBC News Brasil o mito do guerreiro Kamukuwaká, que
teria existido antes da criação do mundo.
A Fundação Nacional do Índio
(Funai) também encaminhou às autoridades pedido de investigação.
"O que
aconteceu é muito grave.
É um patrimônio cultural, uma herança da população
indígena.
É uma perda principalmente para os Waurá", diz Kumaré Txicão,
coordenador regional da Funai no Xingu.
O incidente foi revelado há
dez dias por membros da comunidade Waurá durante uma visita à caverna com uma
equipe voluntária de assessoria arqueológica e por membros das fundações
inglesas sem fins lucrativos Factum e People's Palace Projects.
Na sequência, o
Iphan visitou o local e também constatou os danos.
Alguns dos integrantes dessa
expedição disseram à BBC News Brasil, sob condição de anonimato, que acreditam
haver motivação econômica no ato de vandalismo, já que a caverna fica numa área
de interesses agrícolas e ameaça a expansão de uma ferrovia e de uma rodovia.
Como ela é tombada, não se pode mexer no local.
Mitologia
Segundo a mitologia dos
Waurá, a caverna era o lar do guerreiro Kamukuwaká, por isso ela é sagrada.
De acordo com a tradição
indígena Waurá, o guerreiro teria defendido seu povo dos ataques do inimigo
Kamo (o Sol), que invejava a beleza de Kamukuwaká.
Com a ajuda de pássaros que
abriram um buraco no teto da sua casa transformada em pedra por Kamo, Kamukuwaká
e sua família escaparam para o céu, segundo a lenda.
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Uma das gravuras
apagadas; arqueológos dizem não ser possível precisar a data exata delas, por
estarem em rocha
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"Na história, o
Kamakuwaká é o jovem líder do seu povo.
Para ser um grande líder, ele tem que
furar orelha junto com seus colegas e pode seguir todas todas as etapas de
processos de rituais.
Até hoje esses rituais que o Kamukuwaká criou para o povo
Waurá e de mais outros povos como Kamayurá, Kuikuro, Mehinako, Aweti, Kalapalo,
Yawalapiti, Matipu e Nafukuwá, são seguidos.
Para um jovem ser líder de algum
povo do Alto Xingu, vai seguir as regras de furação de orelha que o Kamukuwaká
criou, as danças, as pinturas, as músicas, por isso que esse local é tão
importante para o nosso povo", diz Pirathá Waurá.
A antropológa Patricia
Rodrigues, que acompanhou durante quatro anos os Waurá e atualmente faz
doutorado na Universidade Notre Dame, nos Estados Unidos, diz que o local
também era visitado pela tribo para pedir abundância de peixes no rio, por
exemplo.
"É um local de narração
de histórias sagradas para eles.
Eles fazem uma espécie de reanimação das
entidades sagradas e das gravuras.
A visita ao local faz parte de um ciclo
cosmogônico de renovação", diz ela.
A pesquisadora também diz
que a caverna é considerada um local sagrado de entidades míticas também para
os povos Aweti, Bakairi, Kalapalo, Kamaiurá, Kuikuro, Matipu, Mehinako,
Nahukuá, Naruvotu, Trumai e Yawalapiti.
A caverna fica dentro de uma
propriedade privada e está fora da área de demarcação de território indígena.
Para visitar o local, os Waurá precisam fazer viagens de barco que duram de
duas a quatro horas, a depender de como está o rio.
Por isso, não conseguem ir
com muita frequência, diz Pirathá.
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Os waurá costumam
fazer o ritual de furar a orelha para se tornar cacique na caverna Kamukuwaká
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Perto do local, há
cachoeiras que são visitadas frequentemente e é comum também ver pescadores.
"Existe essa visitação comum no entorno da caverna, mas até então nunca
havia sido identificado um impacto dessa maneira.
Como ainda não fizemos
análise técnica específica, não sabemos se foi uma ação propositada ou
decorrente de turismo, de vandalismo.", diz Flavio Rizzi Claippo, diretor
do Centro Nacional de Arqueologia do Iphan.
Calippo diz que algumas
gravuras foram preservadas porque estavam encobertas por areia.
Segundo ele,
agora é preciso esperar um novo relatório técnico para saber quais providências
serão tomadas.
Caverna será reproduzida em
3D
A expedição que as entidades
britânicas realizaram na caverna Kamukuwaká no início de setembro faz parte de
um projeto para ajudar na preservação do local.
Esse projeto irá reproduzir
com imagens em tecnologia 3D a caverna e as gravuras que foram destruídas.
A
obra será instalada na próxima Bienal de artes de Veneza, em 2019.
post: Marcelo Ferla
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