Agressões em casa,
discriminação e risco de morte: os dramas das 'refugiadas' trans brasileiras.
Gabriela Loureiro
Da BBC Brasil em Londres
 |
Sanni
aborda sua identidade como mulher trans brasileira e imigrante em sua arte.
|
Sofia (nome fictício)
aguarda uma decisão do Departamento de Imigração dos Estados Unidos em relação
ao seu pedido de asilo feito em março deste ano.
O processo traz detalhes sobre
sua vida como mulher trans e sobre a perseguição a transexuais no Brasil.
Entre 2008 e 2016, segundo
dados compilados pela Transgender Europe, uma organização com sede na Europa,
foram registrados 900 assassinatos de pessoas trans no Brasil, quase metade de
um total global de 2.016 reportados no mundo inteiro.
Com apenas 2,8% da
população mundial, o Brasil responde por 46,7% dos homicídios registrados de
pessoas trans em todo o mundo.
Se o pedido for acatado,
Sofia pode ser mais uma entre o crescente número de pessoas que conseguem asilo
nos Estados Unidos por perseguições em seus países de origem por conta da
discriminação de gênero.
Não há dados oficiais
sobre o fenômeno, mas a Immigration Equality, organização nos EUA que dá apoio
ao público LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais) em pedidos de asilo,
trabalha hoje com 570 casos, o dobro do registrado em 2013.
"Pedimos várias vezes
ao governo para acompanhar o número de solicitações de asilo feitas pela
comunidade LGBT, mas ele não o faz, então, realmente só sabemos quantas pessoas
nos pedem ajuda", diz Jackie Yodashkin, diretora de Comunicação da
Immigration Equality.
Mudança
Segundo advogados
especialistas em direitos LGBT, a migração de brasileiras transexuais para o
exterior passou por uma mudança nas últimas décadas.
"Até os anos 1990,
muitas travestis e transexuais iam para a Europa para se prostituir e isso
acaba gerando uma associação preconceituosa porque sempre ligamos
transexualidade à prostituição", disse à BBC Brasil Henrique Rabello de
Carvalho, advogado e membro da Comissão de Direitos LGBTI (Lésbicas, Gays,
Bissexuais, Transexuais e Intersexuais) da OAB.
"Há um fundamento
histórico e social nisso por conta do preconceito que enfrentam no mercado de
trabalho e também da violência e bullying que sofrem na escola, o que as levam
para a prostituição, o mercado que absorve essa população", explica.
No
entanto, nos últimos anos, a situação começou a mudar.
"Eu acredito que
esse movimento de pessoas trans indo para fora sempre existiu, mas até meados
dos anos 2000 era mais ligado à prostituição e nos últimos anos tem sido mais
pela busca de sair do país para ter uma vida mais segura", disse à BBC
Brasil Thales Coimbra, advogado especializado em direitos LGBT.
 |
Parada
LGBT de 2016 em São Paulo teve como tema a Lei de Identidade de Gênero.
|
Coimbra já prestou
consultoria a mais de 50 pessoas trans, tanto em seu escritório em São Paulo
quanto na assessoria gratuita da USP para mudança de nome e sexo em documentos,
e, segundo ele, os relatos de agressão são muito parecidos.
"Desde a infância é
uma narrativa de sofrimento muito comum, quase um script: hostilidades dentro
de casa, de agressões verbais a espancamento para elas se tornarem alguém que
não são, bullying na escola, piadas e xingamentos, proibição de usar o banheiro
do gênero que se identificam, omissão da escola.
O resultado é o esperado:
abandono escolar", diz.
"A maioria das trans
que hoje tem 20, 30 anos enfrentou essa narrativa de sair da escola, abandonar
a casa dos pais ou serem expulsas e ir para a rua.
Sobram quais oportunidades?
Prostituição ou salão de cabeleireiro, estereótipos marcados", acrescenta
Coimbra.
Maus tratos em casa e
prostituição
A história de Sofia segue
esse script.
Ela nasceu em uma família com poucos recursos em uma cidade no
interior de São Paulo.
Quando pequena, via seu pai agredir fisicamente seu
irmão mais velho, que também é trans, denominado menina na hora do nascimento.
Sofia conta que desde os
seis anos de idade demonstrava se identificar como menina, e não menino:
brincava de boneca, queria andar com meninas e não gostava de jogar futebol.
Seu pai, que bebia muito, a chamava de "viadinho" e brigava com a mãe
por ela defender Sofia e o irmão.
Sofia relatou que, em uma dessas brigas, a
mãe teve uma parada cardíaca e morreu.
Ela tinha apenas 10 anos de idade.
O irmão mais velho saiu de
casa para valer e a vida de Sofia ficou mais difícil, com agressões físicas e
maus tratos constantes.
Quando tinha 16 anos, o
pai morreu em decorrência de uma falência no fígado e Sofia tentou buscar
emprego em sua pequena cidade natal.
Ela conta que foi rejeitada em todas as
tentativas - acabou indo morar em uma casa onde pagava o aluguel através da
prostituição.
"Foi o único meio que achei de viver minha vida pelo
preconceito de ninguém dar trabalho", disse à BBC Brasil.
Não apenas a violência
como também a impunidade impulsionaram a decisão de Sofia de pedir asilo nos
EUA.
Ela diz ter decidido ir embora depois de passar por uma série de
humilhações por parte de policiais.
"No Brasil, a gente morre e ninguém
faz nada, somos uma a menos.
Já tive casos de ter que reportar alguma coisa e o
policial dar uma risadinha cínica e dizer que só vamos perder tempo",
conta.
Ela pediu ajuda a um homem
com quem estava se relacionando havia algum tempo e ele pagou por um curso de
inglês de seis meses, visto, passagem e acomodação nos Estados Unidos.
Está desde 2014 em Nova
York e espera ter seu asilo concedido em até dois anos.
"Eu me sentia
aterrorizada, saía pra me divertir ou trabalhar e não sabia se ia voltar.
Via
minhas amigas sendo espancadas, tinha que correr de pessoas que queriam me
bater por motivo nenhum.
Já nem conseguia sair de casa de tanto medo.
Aqui eu
não vejo ninguém rindo de mim ou tentando me agredir por ser quem eu sou",
diz.
O pedido de asilo de Sofia
foi realizado através da Immigration Equality, que já ajudou outras trans
brasileiras antes, segundo o diretor da ONG, Aaron Morris.
Ele disse que até
hoje todos os casos assessorados pela organização tiveram êxito.
"Temos
uma boa taxa de sucesso porque a lei funciona a nosso favor.
Nosso maior
problema é o acúmulo, não temos juízes e advogados o suficiente.
O tempo de
espera aqui se tornou insuportável para muitos, que precisam esperar dois ou
três anos para ter uma resposta", disse Morris à BBC Brasil.
As medidas do governo
 |
Alex
hoje trabalha com turismo na região do Algarve, no sul de Portugal.
|
A Secretaria Especial de
Direitos Humanos, ligada ao Ministério da Justiça e Cidadania, disse trabalhar
com medidas preventivas e repressivas para combater a violência contra a
população LGBT.
"A secretaria dá
visibilidade à violência e, à luz desse diagnóstico, busca respostas com
políticas públicas adequadas", disse à BBC Brasil Flávia Piovesan,
secretária especial de Direitos Humanos.
Entre as medidas citadas
pela secretária estão o Disque 100 - ouvidoria nacional que atende denúncias de
violações de direitos humanos pelo telefone -, o projeto de premiação de boas
práticas de direitos humanos no sistema judiciário e o apoio à PEC 117/15, que
desvincula perícia criminal das estruturas das polícias com o objetivo de
coibir o abuso policial.
De acordo com o último
relatório do Disque 100, relativo a 2015, houve um aumento de 94% de denúncias
de violações contra a comunidade LGBT entre 2014 e 2015, um salto de 1.024 para
1.983 ligações.
Piovesan reitera, porém, que há diferentes interpretações para
o número: não se sabe se as denúncias ou os casos de violência aumentaram.
Mais
da metade das denúncias, ou 53%, são casos de discriminação, 25% de violência
psicológica, 11% de agressões físicas e 2% outros.
Sem amparo legal
Apesar de alguns avanços
na área legal, como o caso de Neon Cunha, a primeira mulher trans a conseguir
mudar nome e gênero em seus documentos sem precisar de atestado médico,
atualmente, a nível nacional não há uma lei garantindo a transexuais o direito
de mudar seus registros oficiais.
Segundo Coimbra, há apenas leis a nível
estadual ou municipal que permitem a mudança de documentos ou que criminalizem
a transfobia (discriminação contra transexuais), mas menos da metade dos
Estados brasileiros contam com uma legislação do tipo.
Geralmente, exige-se um
diagnóstico de transtorno de identidade de gênero (como a Medicina entende a
transexualidade, que é a não identificação com o gênero atribuído a alguém na
hora do nascimento), algo que pode mudar com o precedente estabelecido por
Cunha em outubro passado.
"Temos três formas de
trabalhar com diversidade sexual no Direito: reconhecimento, proteção e
criminalização.
O Brasil hoje nem reconhece nem protege, mas não criminaliza,
como alguns países da Ásia", diz Carvalho.
"A transexualidade
ainda é vista pela Organização Mundial de Saúde como uma patologia e, sendo
assim, a pessoa é vista como alguém que precisa de cuidados, não de
direitos", acrescentou.
Transexual, um sinônimo de
transgênero ou trans, é uma pessoa que não se identifica com o gênero determinado
a ela no nascimento.
Por exemplo, foi chamado de "menino" e na
verdade se identifica como mulher.
Fuga e casamento
Não há muitas organizações
como a Immigration Equality no mundo e muitas pessoas trans saem do Brasil
através de outros métodos.
Alex, por exemplo, apaixonou-se e casou com um homem
português, conquistando o direito de morar em Portugal oito anos atrás.
"Meu pai me batia, a
única pessoa que me acolhia era a minha mãe.
O resto era perseguição,
violência, piadas de todos os tipos vindo de desconhecidos, parentes, amigos.
Eu saí do Brasil para sobreviver e para ter alguma paz", disse à BBC
Brasil.
Alex, 36 anos, nasceu em
uma família humilde na periferia de Curitiba.
Seu pai, que trabalhava como
mecânico, não a aceitava, mas ela contou com a proteção da mãe, que nunca a
deixou se prostituir e trabalhou para sustentar a filha.
A proteção da mãe não
chegava às ruas, porém, onde ela foi perseguida e agredida por ser trans.
"Já corri e me escondi em farmácia, pedi para entrar em loja batendo na
porta dizendo 'pelo amor de Deus me deixa entrar que estão querendo me
matar'", lembra.
Em uma ocasião, porém, ela
não conseguiu fugir.
Estava bebendo vinho com uma amiga no centro de Curitiba
quando dois homens se aproximaram para conversar.
No meio do papo, um deles
inesperadamente deu um soco no rosto de Alex, que desmaiou na hora.
Acordou no
hospital horas depois, com o nariz quebrado e as roupas cobertas de sangue.
Passou seis meses sem sair de casa com depressão e síndrome do pânico.
"Conheço gente que
levou facada pelas costas por estar fazendo programa, tenho amigas que estão se
prostituindo e passam carros jogando pedra, urina, latas de cerveja...
Ou batem
mesmo, são massacradas em todos os sentidos, estupradas.
É um horror e é cotidianamente.
Você fica marcada, eu entrei em depressão porque eu tinha medo de apanhar na
rua", conta.
A situação de Alex mudou
quando conheceu através do Orkut um homem português que a achou bonita e a
convidou para viajar pela América Latina.
Depois de três anos de namoro, Alex
se mudou para Portugal com ele, mas teve que abdicar da nacionalidade
brasileira porque, na época, o processo de retificação de nome e gênero
demoraria muito tempo e ela precisava da cidadania portuguesa para se manter no
país.
Vive até hoje com seu marido alugando casas para turistas na região do
Algarve.
 |
"Tenho
amigas que estão se prostituindo e passam carros jogando pedra", conta
Alex.
|
Direitos e transexualidade
A falta de acesso a
direitos básicos como ter um documento de acordo com seu gênero, proteção da
lei e direito de ir e vir livremente sem sofrer agressões verbais foi o que fez
a artista Negroma a deixar o país, segundo ela.
"Eu não tenho como viver
meu gênero de forma livre e me assumir como trans se eu continuar lidando com isso
de uma forma opressora no sexo, no convívio social, profissional,
artístico", disse à BBC Brasil.
Negroma foi abandonada
pela mãe ainda pequena.
Seu pai a assumiu quando ela tinha 3 anos, mas, quando
completou 15, ele a espancou e expulsou de casa ao descobrir que o
"filho" era gay.
"Em menos de 10
minutos, eu passei de um jovem que vivia numa família de início de classe média
a ser um morador de rua", lembra.
Depois de morar algumas semanas na rua,
Negroma encontrou abrigo em um salão de beleza onde passou a trabalhar.
 |
"Se
existe um refugiado, é porque existe essa violência", diz Negroma.
|
Quando completou 18 anos,
foi cursar Artes Cênicas na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em
Florianópolis, uma oportunidade que lhe abriu portas para explorar sua
identidade de gênero mais a fundo através do teatro.
Apresentou suas
performances de música e dança pelo Brasil e, em 2014, foi contemplada com um
prêmio do Ministério da Cultura, que financiou a realização de um projeto
artístico em Berlim.
'Não penso em voltar'
Lá ela conheceu Sanni,
outra mulher trans brasileira que foi à Alemanha em busca de uma liberdade
maior de gênero.
Natural de Olinda, filha de uma mãe lésbica e introduzida à
cena gay de Pernambuco desde pequena, ainda assim, Sanni não conseguia achar o
seu lugar no Brasil.
 |
"A
minha ignorância era tanta que antes de sair do Brasil eu não conseguia nem me
conceber como mulher", diz Sanni.
|
"A minha ignorância
era tanta que antes de sair do Brasil eu não conseguia nem me conceber como
mulher.
Eu achava que ou eu nascia mulher ou seria uma travesti que ia sempre
morrer na praia e ser motivo de piada para todo mundo", conta.
Há dez anos, Sanni se
casou com um alemão e conseguiu sua cidadania.
Depois de três anos na Alemanha,
iniciou o processo de transição de gênero com terapia hormonal e cirurgia para
redesignação sexual.
Aos 28 anos, ela trabalha
hoje como música, DJ e modelo em Berlim, muitas vezes tocando projetos sobre
sua identidade como mulher trans brasileira e imigrante.
Mas não pensa em
voltar.
"Eu vejo a
possibilidade de morar como cidadã no Brasil como uma redução da minha pessoa,
sei que eu seria sempre estigmatizada, que algumas pessoas não conseguiriam ver
além disso", diz.
Privilégio
É o mesmo motivo que fez
Negroma retornar à capital alemã para ficar.
Um ano depois de terminar seu
projeto, voltou ao Brasil e em dez horas diz ter sofrido cinco agressões, desde
olhares de reprovação até xingamentos.
 |
"Existe
uma migração dentro do Brasil, de mudar de comunidade", diz Negroma.
|
"Desde que saí do
aeroporto, várias coisas aconteceram na minha cara, como xingamentos, a forma
como a pessoa te trata, como identifica sua presença no espaço, coisas que aqui
não acontecem por gênero, mas por causa da minha raça.
No Brasil, eu sei que é porque
eu sou uma criatura 'anormal' àquele espaço", diz.
No entanto, Negroma
reconhece que seu "refúgio" - ela não pediu refúgio à Alemanha
oficialmente, mas considera sua mudança uma espécie de fuga - é também um
privilégio.
"Existe uma migração
dentro do Brasil, de mudar de comunidade.
O que mais me preocupa é quando o
refugiado não consegue sair da sua comunidade ou do país, quando ele não
consegue ser um refugiado.
Se existe um refugiado, é porque existe essa
violência", afirma.
post: Marcelo Ferla
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Deixe sua opinião.