Romeo
foi banido do contraturno por preferir vestidos às roupas masculinas.
Foto:Newsteam/SWNS Group / Grosby Group"
O pequeno Romeo Clarke, da
foto acima, tem 5 anos e adora usar seus mais de 100 vestidos para as atividades
do dia a dia.
"Eles são fofos, bonitos e têm muito brilho", explicou
ao tabloide britânico Daily Mirror. Clarke virou notícia em maio do ano
passado.
O projeto de contraturno que ele frequentava na cidade de Rugby, no
Reino Unido, considerou as roupas impróprias.
O menino ficou afastado até que
decidisse - palavras da instituição - "se vestir de acordo com seu
gênero".
O caso de Clarke não é
único.
Situações em que crianças e jovens que descumprem as regras socialmente
aceitas sobre ser homem ou mulher - seja de forma intencional ou por não
dominá-las - fazem parte da rotina escolar.
Quando eclode o machismo, a
homofobia ou o preconceito aos transgêneros, pais e professores agem rápido
para pôr panos quentes e, sempre que possível, fazer de conta que nada ocorreu.
"A escola, que deveria abraçar as diferenças, pode ser o ambiente mais
opressivo que existe", defende Iana Mallmann, 18 anos, ativista contra a
homofobia.
"Muitos ainda abandonam as salas de aula por não se sentirem
bem nesse espaço", completa Beto de Jesus, secretário para América Latina
e Caribe da Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, pessoas
Trans e Intersex (Ilga, na sigla em inglês).
Paradoxalmente, quem tem
ensinado a escola a agir no respeito à diversidade são os próprios estudantes.
"Na contemporaneidade, multiplicaram-se os grupos, os sujeitos e os
movimentos, as maneiras de se identificar com gêneros e de viver a sexualidade.
Não há apenas uma forma de ser, mas tantas quantas são os seres humanos",
afirma Guacira Lopes Louro, professora da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS) e uma das principais referências na área de estudos de gênero. É o
que mostram os corajosos depoimentos de Iana, Roberta e Emilson. Eles nos
convidam a uma reflexão sobre nossas próprias ideias de masculino e feminino,
hétero, homo ou bi, coisas de menino e coisas de menina. Precisamos falar sobre
sexo, sexualidade e, sobretudo, gênero.
Três ideias, três
conceitos
Vale desfazer a confusão
entre esses conceitos.
O sexo é definido biologicamente. Nascemos machos ou
fêmeas, de acordo com a informação genética levada pelo espermatozoide ao
óvulo. Já a sexualidade está relacionada às pessoas por quem nos sentimos
atraídos.
E o gênero está ligado a características atribuidas socialmente a
cada sexo.
O que se sabe hoje em dia
é que o dualismo heterossexual/homossexual não é capaz de abarcar as formas de
desejo humanas.
Os estudos sobre o tema dizem que a orientação sexual se
distribui num amplo espectro entre esses dois polos.
É provável que a definição
sexual se dê pela interação entre fatores biológicos (predisposição genética,
níveis hormonais) e ambientais (experiências ao longo da vida).
Mas não há
certezas. O guia Sexual Orientation, Homossexuality and Bissexuality, da
Associação Americana de Psicologia, resume:
"Não foram feitas, por
enquanto, descobertas conclusivas sobre a determinação da sexualidade por
qualquer fator em particular. O tempo de emergência, reconhecimento e expressão
da orientação sexual varia entre os indivíduos".
É surpreendente notar como
determinados comportamentos são mais aceitos em uma fase da história e
reprimidos na seguinte.
Os moradores da Grécia Antiga, por exemplo, se
relacionavam com pessoas de ambos os sexos.
Já na Idade Média, comportamentos
que se desviassem da norma socialmente definida eram punidos com a fogueira.
Hoje, não há mais chamas, mas o sofrimento assume a forma de piadas,
humilhações, agressões físicas e psicológicas, exclusão. Por que ainda agimos
assim?
Como se construiu uma sociedade que se choca e entra em pânico ao ver um
menino se vestindo de menina?
A resposta está no
conceito de gênero.
Ele diz respeito ao que se atribui como características
típicas dos sexos masculino e feminino.
Meninas precisam sentar-se de pernas
fechadas, meninos podem abri-las.
Meninos não podem chorar, meninas são mais
sensíveis. Meninos gostam de azul, meninas preferem o rosa.
Enfim, uma série de
aspectos que, com o tempo, ganham força e se convertem em regras. Por quê?
Porque cada um de nós
interioriza as estruturas do universo social e transforma-as em jeitos de ver o
mundo que orientam nossas condutas.
Diversas instâncias atuam para que essas
normas sejam transmitidas dos mais velhos aos mais jovens: a família, os grupos
de amigos, as religiões - e, claro, as escolas.
No caso do gênero, a associação
com elementos preexistentes, como tradições culturais, preceitos religiosos e
costumes familiares, vai definindo quais elementos pertencem ao universo
masculino ou ao feminino.
Por exemplo: ao provar do fruto proibido e convencer
Adão a também comê-lo, Eva teria mostrado o lado irracional e sentimental da
mulher.
Por isso, sedimentou-se a ideia de que ela deveria estar submissa ao
homem - naturalmente, um ser racional e cerebral, como explica a pesquisadora
Clarisse Ismério no artigo Construções e Representações do Universo Feminino
(1920-1945).
Mais exemplos: a associação de carros e motos como "coisa de
macho" foi herdada da ideia vigente até o início do século 20 de que o
espaço público deveria ser ocupado pelos homens, enquanto as mulheres deveriam
se dedicar à vida doméstica, como faziam suas mães.
Já a atribuição das cores
rosa e azul, respectivamente, a meninas e meninos...
Bem, essa aí parece não
ter justificativa. Nenhuma surpresa: a investigação sócio-histórica revela que
na gênese de muitos hábitos, costumes e regras impera a mais pura
arbitrariedade.
Tudo isso se complica em
razão de outra característica da mentalidade moderna: a tendência de pensar por
oposições.
Segundo o filósofo francês Jacques Derrida (1930-2004), a lógica
ocidental opera por meio de binarismos: feio/belo, puro/impuro, espírito/corpo
etc.
"Um termo é sempre considerado superior, e o oposto seu
subordinado", explica Guacira.
Assim, o homem heterossexual conquistou o
lugar de maior prestígio na sociedade. Um degrau abaixo, a mulher.
E na
penumbra, os que não se encaixam no esquema binário: gays, lésbicas,
bissexuais, travestis...
Até meados do século 20,
esse discurso circulou quase sem contestações.
A partir dos anos 1950, movimentos
feministas, guiados pelos estudos da filósofa francesa Simone de Beauvoir
(1908-1986), engrossados na década seguinte pelos hippies e outros levantes da
contracultura, começaram a colocar em xeque os papéis atribuídos às mulheres na
sociedade, no trabalho e na família.
Seguiram-se a eles as lutas pelos direitos
de homens gays, lésbicas, travestis, transexuais e assim por diante entre 1970
e os anos 2000.
Atualmente, correntes contestatórias ampliam as possibilidades
identitárias, defendendo que há muitos jeitos de ser homem e mulher.
Você deve estar se
perguntando onde a escola entra nessa discussão.
Para que ela respeite a
diversidade, as formações de professores precisam abordar o assunto. É o melhor
caminho para disseminar o que as pesquisas já descobriram sobre a construção
dos gêneros e sua relação com o sexo e a sexualidade. Mas as iniciativas sofrem
forte resistência.
O caso mais notório aconteceu em 2011.
Como parte do
programa Brasil sem Homofobia, especialistas produziram para o governo federal
cadernos com conteúdo pedagógico que colocavam o tema em discussão.
A intenção era que o
material fosse distribuído a escolas de todo o país.
Antes da impressão,
entretanto, congressistas ligados a entidades religiosas se opuseram ao
projeto.
Apelidado de "kit gay", o conteúdo foi acusado de estimular
"a promiscuidade e o homossexualismo" - termo em desuso por remeter a
doença (hoje, fala-se em homossexualidade).
A União cedeu às pressões e vetou a
circulação dos cadernos.
Oficialmente, não há perspectivas para que esse
material saia do armário.
Mas, agora, ele está disponível aqui no site NOVA
ESCOLA. Leia e tire suas conclusões.
Por enquanto, episódios
como o do menino Romeo seguem envoltos pela vergonha.
Mesmo em casos de
crianças muito pequenas, em que não há relação entre o comportamento da criança
e sua sexualidade (meninos mais sensíveis ou meninas que prefiram o futebol às
bonecas), o expediente-padrão é convocar os pais para uma conversa sobre o
suposto problema e encontrar maneiras de "corrigi-lo".
"Muitas
vezes, essas crianças e jovens apanham dos pais, são proibidos de voltar às
aulas ou mesmo fogem", relata Constantina Xavier, professora da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). É papel da escola agir com
profissionalismo.
O que, nesse caso, significa tratar o tema com naturalidade e
não reportá-lo aos pais.
Um menino quer se vestir de princesa.
Se há algum
problema, é com os olhos de quem vê.
Como ensina Georgina Clarke, a mãe do
pequeno Romeo: "Não me importo. Faz parte de quem ele é. Se usar os
vestidos faz com que ele seja feliz, então está tudo bem para mim".
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