Traumas da guerra na
Colômbia, um desafio do pós-conflito.
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Combatente
da guerrilha das Farc em Vegaez, no departamento de Antioquia, no dia 1º de
janeiro de 2017 - STR/AFP,
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Vítimas ou atores do
conflito armado, milhões de colombianos viveram os horrores da guerra e sofrem
os estigmas de décadas de violência, cuja cicatrização é um dos desafios a
superar no caminho para a paz.
“Mantenho sempre meio que
uma certa aflição”, confessa Maria, a voz quase inaudível.
Quando criança, ela viveu
os combates entre militares e guerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias
da Colômbia (Farc, marxistas), que recentemente assinaram um acordo histórico
de paz para encerrar 52 anos de guerra.
“Eu tinha seis aninhos (…)
Sempre tive medo.
Todas as tardes, tínhamos que ficar na cidade, porque a
guerrilha chegava ao sítio para matar as pessoas”, conta à AFP essa mulher de
49 anos.
Seu pai, que se negou a
trabalhar para eles, sobreviveu por pouco a um ataque da guerrilha.
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Membro
da guerrilha das Farc segura arma em Vegaez, no departamento de Antioquia, no
dia 30 de dezembro de 2016 - STR/AFP.
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Ratificado no fim de
novembro, o acordo de paz é a luz no fim do túnel de uma guerra da qual também
participaram outras guerrilhas, grupos paramilitares e agentes do Estado,
deixando pelo menos 260 mil mortos, 60 mil desaparecidos e quase sete milhões
de deslocados.
Algumas linhas do acordo,
de mais de 300 páginas, são dedicadas a “medidas de recuperação emocional”.
Para “contribuir para aliviar o sofrimento das vítimas”, o governo se
compromete a “melhorar a qualidade da atenção psicossocial” e reforçar os
serviços de saúde mental, aponta o documento, sem detalhes.
Preocupa o Comitê
Internacional da Cruz Vermelha (CICV) que esses traumas possam gerar violência
em tempos de paz.
Em outubro, o organismo pediu que não se esqueça que a saúde
mental é “o eterno trauma do conflito que a Colômbia não pode ignorar”,
destacando que as vítimas “também trazem as cicatrizes da violência na cabeça”.
Vítimas e/ou agressores?
Após uma infância marcada
pelo medo, Maria, cujo nome foi alterado por segurança, teve um marido
violento, o qual abandonou.
Sem dinheiro e endividada para cuidar do filho
doente, trabalhou para os paramilitares das Autodefesas Unidas da Colômbia
(AUC), criadas para combater as guerrilhas.
“Eu trabalhava na parte
logística, preparando as refeições deles, ou lavando sua roupa”, conta.
“Nunca lhes perguntava de
ondem vinham, ou o que faziam”, afirmou, enquanto arranha, nervosa, a mesa de
sua casa simples, localizada no quintal de um edifício em um subúrbio da
capital, Bogotá.
Maria garante que nunca
manipulou uma arma, mas contou ter participado do processo de desmobilização
dos paramilitares de extrema direita, completado em 2006.
Dez anos depois – e
embora tenha se mudado para um local mais de quatro horas afastado de sua
região de origem -, vive com medo de que alguém a reconheça.
“Ouviram-se muitos
rumores, que iam matar as pessoas que trabalhavam com eles.
Aí, sim, a gente
sente medo”, confessa a mulher de cabelos castanhos e constituição física
robusta, que diz nunca se sentir como ela mesma, mas como se tivesse “um
dublê”.
“Definir uma linha entre
quem é vítima e quem é o carrasco é muito complexo”, explicou à AFP Joshua
Mitrotti, diretor da Agência Colombiana para a Reintegração (ACR), que
acompanha os ex-combatentes em seu retorno à vida civil, inclusive uma breve
terapia que, se necessário, é ampliada no serviço de Saúde pública.
“Das 49.000 pessoas que
atendemos, 90% chegam afetadas: temos estresse pós-traumático em mais ou menos
30%”, indicou.
Os outros problemas
combinam dependência ao álcool e/ou drogas (34%), dificuldade de controlar os
impulsos (26,2%) e ansiedade (27,3%).
Os mesmos sintomas podem
ser encontrados em vítimas civis, ou em testemunhas de massacres, estupros,
sequestros, recrutamento de crianças, deslocamento forçado e outras crueldades
dessa guerra.
Viver com o sofrimento
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Ivonne
Zabala, da organização Médicos Sem Fronteiras, durante entrevista com a AFP em
10 de outubro de 2016 - AFP.
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Ivonne Zabala, da ONG
Médicos sem Fronteiras (MSF), assegura que muitos “viveram mais de um evento e
têm mais de um fator de risco”: por exemplo, “uma pessoa que teve um familiar
assassinado, mas que também teve de se deslocar e chegar a um local com
situação de violência em seu entorno”, como certas comunidades de grandes
cidades.
“Isso leva a uma
deterioração significativa da saúde mental”, declarou essa psicóloga
colombiana, enumerando os problemas crônicos mais comuns: depressão, ansiedade,
problemas de adaptação, estresse pós-traumático.
Segundo um estudo da
Organização Internacional para as Migrações (OIM) de 2014, citado pelo CICV,
80% das vítimas do conflito “não esquecem, mas conseguem viver com seu
sofrimento”.
Além disso, “20% têm um trauma profundo em sua vida”.
“É uma população muito
traumatizada ao longo de muito tempo.
É multigeracional, e isso gerou
disfunções e uma menor empatia e compaixão” entre os colombianos, disse à AFP
Maarten de Vries, psiquiatra holandês, após uma palestra sobre “A saúde para
uma paz duradoura”, na Universidade Javeriana de Bogotá.
Além das múltiplas causas
de sofrimento, a duração do conflito, o mais antigo da América, faz que várias
gerações de colombianos estejam afetadas direta, ou indiretamente.
E essa
violência endêmica, com esses traumas, repercute em casais e famílias.
Publicada em dezembro, a
última Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde (ENDS) mostra que uma em cada
três mulheres apanhou de seu companheiro (ou marido) atual, ou do anterior.
A especialista colombiana
em Saúde Pública, Mary Luz Dussan, que trabalha na Nicarágua, considera que
“falta à Colômbia pensar no bem-estar do povo” e rejeita a carência de
“acompanhamento psicossocial efetivo”.
“Mas ainda pode ser feito!
É preciso pensar na reconstrução da pessoa destruída nesta guerra”, ressalta
Mary Dussan.
post: Marcelo Ferla
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