‘Tenho medo de morrer na
própria aldeia’: como ‘cacique-modelo’ da Amazônia se tornou alvo de índios
madeireiros.
Maria
Fernanda Ribeiro
De
Cacoal (RO) para a BBC Brasil
|
Almir
Suruí na Terra Indígena Sete de Setembro, entre Rondônia e Mato Grosso: alerta
de "megainvasão" de madeireiros ilegais e garimpeiros.
|
No último dia 24 de
outubro, Agamenon Suruí, de 54 anos, deixou sua casa na aldeia Lapetenha, em
Rondônia, para resolver assuntos de trabalho em Cacoal, a 40 km dali.
Enquanto percorria um
trecho de terra na garupa da moto pilotada pelo filho Pilatos, de 25 anos,
ambos perceberam que eram seguidos por um carro com três pessoas.
O veículo ultrapassou e
bloqueou a moto.
Um homem desceu.
Com o dedo no rosto de Agamenon, avisou que ele
e o irmão deveriam "tomar mais cuidado".
O irmão em questão é Almir
Narayamoga Suruí, de 42 anos, chefe dos paiter-suruís e um dos principais
líderes indígenas do Brasil.
O episódio na estrada é
sinal do agravamento dos conflitos na TI (Terra Indígena) Sete de Setembro,
localizada entre Rondônia e Mato Grosso e que nos últimos anos foi considerada
a grande promessa de uso da tecnologia para proteger a floresta na Amazônia.
"Tenho medo de
morrer.
É um risco que corro a todo o momento.
As pessoas acham que me matando
vão poder explorar madeira numa boa.
Sou alvo não só pelos madeireiros e
garimpeiros, mas também pelos índios madeireiros", afirmou Almir à BBC
Brasil.
Ele é um dos chefes
indígenas mais viajados do país - já rodou por países distantes como Turquia e
Indonésia, acumulou prêmios e distinções enquanto faz lobby por parcerias
internacionais para preservar os recursos naturais na reserva dos
paiter-suruís.
|
Almir
em ato contrta barragens na Amazônia em Paris em 2011 e em encontro com
príncipe Charles da Inglaterra em 2009 no Reino Unido: chefe se tornou
referência internacional em projetos de desenvolvimento sustentável na Amazônia.
|
Nesse trabalho, costurou
acordos com grandes empresas daqui e de fora, ONGs ambientalistas e políticos
em Brasília.
Ganhou fama em 2008,
quando fez um acordo com o Google para monitorar o desmate na terra indígena -
índios ganharam celulares para registrar extração ilegal de madeira, capturar
fotos e vídeos geolocalizados e fazer upload no Google Earth.
Em 2012, os paiter-suruís
se tornaram a primeira nação indígena do mundo a fechar contratos nos quais
eles faturam ao evitar desmatamentos em seu território - houve acordos com
Natura e Fifa, que renderam ao menos R$ 1,2 milhão.
Nos últimos anos, contudo,
discordâncias sobre o uso dos recursos reacenderam divisões históricas entre os
suruís e situação saiu de controle na Sete de Setembro - uma área de 2,4 mil
km² (ou duas vezes a cidade do Rio de Janeiro) e 1,3 mil índios espalhados por
25 aldeias.
O desmate ilegal dentro da
TI Sete de Setembro saltou de 85 hectares em 2013 para 496 hectares (cerca de
500 campos de futebol) em 2015, segundo a ONG Idesam (Instituto de Conservação
e de Desenvolvimento Sustentável da Amazônia).
Descontrole
A terra dos suruís (ou
paiter, como se intitulam) fica em um dos principais focos do chamado
"arco do desmatamento", região em que a fronteira agrícola avança em
direção à floresta e responde pelos maiores índices de desmatamento da
Amazônia.
Segundo Almir, hoje 15 das
25 aldeias da terra indígena estão envolvidas em exploração ilegal de recursos
naturais.
Cinco se opõem à presença de madeireiros e cinco estão divididas,
afirma.
|
Garimpo
(à esq.) e extração de madeira ilegais na reserva dos suruís; para
Procuradoria, há risco de "descaracterização total" da área.
|
"A floresta não
precisa ser intocável, mas deve ser usada com planejamento e critério. Somos
contra a forma como a madeira está sendo retirada", diz o líder dos
paiter-suruís.
Índios contrários ao
desmatamento estimam que 300 caminhões lotados com toras de madeira deixem a
Sete de Setembro todos os meses - avaliação endossada pelo Ministério Público
Federal, que acompanha o conflito na região.
As árvores mais procuradas
hoje são cerejeira, cedro, ipê, caixeta, garapa e castanheira.
O ipê é
considerado o novo mogno, muito explorado nas décadas de 1980 e 1990 e hoje
praticamente extinto na floresta.
"A situação é frágil
e delicada.
Madeireiros assediam índios com coisas que o Estado não consegue
suprir, como saúde e educação, e com outras que o Estado nem supriria, como
dinheiro para carros e motos.
Algumas lideranças se acostumaram com essa renda,
o que torna o problema histórico", afirma o procurador da República
Henrique Heck.
Histórico
De fato, a relação dos
suruís com a exploração ilegal de madeira não é nova.
Contatada pela primeira
vez em 1969, essa tribo amazônica chegou a perder 90% da população para a
tuberculose e o sarampo antes mesmo do nascimento de Almir, em 1974.
A terra indígena foi
homologada em 1983, mas sofreu impacto, nos anos seguintes, de projetos de
colonização e também invasões de pequenos agricultores.
Os suruís passaram então a
ser conhecidos pela venda de madeira a extratores ilegais - situação que
motivou divisões internas e desagregação social.
|
Almir
com conterrâneos suruís; até 1969, povo ainda vestia tangas, caçava com arco e
flecha e conhecia pouco do Brasil moderno.
|
Aos 15 anos, ainda com
pouco conhecimento de português, Almir aceitou convite da Universidade Católica
de Goiás para estudar Biologia Aplicada.
Formou-se em 1992 e foi eleito chefe
dos Gameb (marimbondos pretos), um dos quatro clãs paiter-suruís.
Casou-se, teve filhos
(três, hoje com 22, 21 e 19 anos) e passou a planejar programas de agricultura
sustentável em sua aldeia.
"Mas líderes tribais
mais velhos - a maioria com menos de 40 anos, como efeito das pragas
devastadoras dos anos 1970 - tinham outros planos", afirma, em referência
aos interesses dos índios madeireiros, o jornalista americano Steve Zwick, que
trabalha em uma biografia de Almir.
Ao final dos anos 1990
Almir Suruí já era um líder indígena conhecido em Rondônia.
Gradativamente,
começou a trabalhar em um plano para uso das terras suruís nos 50 anos
seguintes.
Acordo
O acordo com o Google
trouxe novas perspectivas para a tribo, e em 2009 Almir costurou um pacto entre
os quatro clãs para encerrar o histórico ciclo histórico de exploração ilegal
de madeira dentro do território.
Em 2012, a redução
acumulada de desmatamento somava 511 hectares, o que permitiu as parcerias de
venda de créditos de carbono.
|
Almir
Suruí em encontro em 2012 com Rebeca Moore, então gerente do Google Earth;
parcerias internacionais não conseguiram evitar agravamento da situação em
reserva.
|
Foi o primeiro projeto em
área indígena a explorar o chamado Redd (Redução de Emissões por Desmatamento),
instrumento de compensação financeira pela manutenção de florestas tropicais e
redução do gás carbônico responsável pelo aquecimento global.
A promessa de solução,
contudo, começou a incentivar velhas (e novas) divisões.
Alguns líderes suruís reclamaram
da gestão, por Almir, do chamado Fundo Paiter, criado para administrar o
dinheiro desses projetos.
Apontavam demora na liberação, centralização de
decisões e ausência de benefícios para as comunidades.
O chefe suruí nega as
acusações.
"O dinheiro foi repassado corretamente para as associações (dos
clãs suruís) de acordo com os projetos, conforme foram apresentados para nós.
Nossa prestação de contas é clara e transparente", afirma.
Em julho deste ano, a
pedido do Ministério Público Federal, que atendeu a reclamações dos setores
insatisfeitos, a Justiça chegou a bloquear a movimentação do fundo (que ainda
tinha R$ 500 mil em caixa).
Os recursos acabaram liberados após uma reunião
entre os clãs.
Agravamento
A indisposição com o
projeto levou parte dos suruís a retomar a exploração ilegal de madeira, ouro e
diamante, bem como o arrendamento de terras para fazendeiros.
Segundo relatos coletados
pela reportagem, índios madeireiros esperavam obter mais renda ao interromper o
ciclo de desmatamento, o que não ocorreu.
|
Nos
pontos vermelhos em destaque, avanço do desmatamento na TI Sete de Setembro;
300 caminhões de madeira deixam área todos os meses, dizem índios.
|
Resultado, segundo Almir:
além de madeireiros e fazendeiros, há também garimpo na terra indígena.
Com
apoio dos índios, aliciados com armas e pagamentos mensais de até R$ 5 mil, os
grupos estariam atuando em ao menos 20 pontos da área.
A suposta omissão dos
órgãos públicos agrava a situação, afirma o líder.
"Já fizemos várias
denúncias e nada acontece. Dizem que não podem prender índio e os índios sabem
disso."
Em razão desse quadro, a
Procuradoria entrou na Justiça na semana passada contra Funai (Fundação
Nacional do Índio), Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renováveis) e os Estados de Rondônia e Mato Grosso.
A ação pede que os órgãos
e governos sejam obrigados a realizar uma série de ações de fiscalização e
apoio a atividades sustentáveis pelos índios, como coleta de castanhas.
Diz ainda que a
"criminalidade recrudesceu" dentro da terra indígena em razão da
"fiscalização acanhada dos órgãos públicos".
Aponta que "muitos
indígenas foram cooptados pelas madeireiras" e que a "sensação de
impunidade prepondera" no local, o que faz aumentar a adesão de índios à
atividade ilegal.
"Se a situação
continuar assim, há possibilidade de descaracterização total do território em
médio prazo", afirma Henrique Heck.
A reportagem entrou em
contato com os governos de Rondônia e Mato Grosso para comentários sobre a ação
da Procuradoria, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.
Em nota, a Funai disse ter
conhecimento do cenário na Sete de Setembro e que tem feito fiscalizações na
região.
Reconheceu, contudo, que o "grande desafio" hoje é integrar
esferas de poder e complementar monitoramento com políticas de sustentabilidade
para índios e cidades do entorno.
"Sem alternativas de
renda no entorno para as populações não indígenas, a pressão sobre as terras
indígenas cresce cada vez mais, ameaçando os recursos naturais e a segurança
dessas comunidades", informou o órgão.
|
Líder
indígena se diz sitiado em sua própria região: 'Se é explorar madeira o que o
meu povo quer, tudo bem.'
|
Medo
Enquanto isso, hoje o
"cacique tecnológico" Almir Suruí está praticamente sitiado em sua
própria região - mora com a família em Cacoal, cidade de 78 mil habitantes a
480 km de Porto Velho, vizinha da terra indígena Sete de Setembro.
Vive escoltado pelos
irmãos, nunca viaja sozinho e evita ir ao supermercado ou sacar dinheiro sem
estar acompanhado.
"Não gostamos que o
Almir vá a nenhum lugar sozinho, nem dentro da nossa própria terra, porque há
uma parte grande do nosso povo contra o trabalho dele.
A gente também vive com
medo de branco matar o Almir.
Branco madeireiro, fazendeiro, garimpeiro.
É muita
preocupação", diz o irmão Mopiri Suruí, de 56 anos.
Almir chegou a contar com
proteção de agentes da Força Nacional de Segurança entre 2012 e 2013, mas
desistiu.
"Era uma proteção e não uma solução. A solução é acabar com a
exploração ilegal."
Com 98 quilos distribuídos
em 1,68 m, fã de Raul Seixas e tubaína, torcedor do Flamengo, apreciador de
camionetes e membro de 23 grupos do WhatsApp, ele diz ter desenvolvido gastrite
ao conviver com ameaças de morte.
E às vezes ameaça desistir
de tudo e se dedicar somente à família.
"Se é explorar madeira o que o meu
povo quer, tudo bem."
Por força da deterioração
da situação na terra indígena que um dia foi modelo de recuperação sustentável,
organizações internacionais articulam uma campanha, com abaixo-assinado e pedido
de doações online, em que alertam para uma "situação de emergência"
na terra dos paiter-suruís.
"Minha maior
preocupação é que assassinem o meu filho.
É muito difícil para mim como mãe.
Ele vem trabalhando, defendendo a floresta para trabalhar de forma sustentável,
mas nosso próprio povo prefere o dinheiro fácil da madeira e do garimpo.
Meu
medo é porque sei que há pessoas contra ele e o trabalho dele.
Só Deus para me
aliviar.
Só Deus", diz Weytanb, 88 anos, mãe de Almir.
|
"Minha
maior preocupação é que assassinem o meu filho", afirma Weytanb Suruí, de
88 anos.
|
post: Marcelo Ferla
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Deixe sua opinião.