A major que protege 629
mulheres ameaçadas por homens na Bahia.
Victor
Uchôa
De
Salvador para a BBC Brasil
|
Denice
Santiago comanda a Ronda Maria da Penha, unidade da Polícia Militar baiana que
acompanha mulheres vítimas de violência doméstica.
|
O celular de trabalho de
Denice Santiago tocou em plena tarde de domingo em Salvador.
Do outro lado da
linha, uma mulher dizendo que o ex-marido, proibido pela Justiça de se
aproximar dela, estava a caminho de sua casa.
"Nessas horas não
posso simplesmente dizer que estou de folga. Tenho que resolver", diz.
A
necessidade de solução imediata se explica: na Bahia, 629 mulheres vítimas de
violência doméstica estão diretamente sob os cuidados de Denice.
Fardada ou não, ela é a
major Denice, de 45 anos, comandante da Ronda Maria da Penha (RMP), unidade da
Polícia Militar baiana criada em março de 2015 para acompanhar mulheres sob
medida protetiva judicial - brasileiras que enfrentam o machismo e a
brutalidade de companheiros, pais, irmãos e vizinhos.
Com pouco mais de um ano e
meio de funcionamento, essa operação vem chamando a atenção de pesquisadores e
de outras corporações policiais pelos bons resultados - que parecem dever algo
ao carisma e à obstinação de sua comandante.
"São famílias que
estão em jogo. Como mulher, mãe e policial, não posso falhar. Se nosso sistema
for violado, podemos perder uma vida", diz Denice.
No foco desse sistema de
proteção estão mulheres como Ana*.
Ela passou 18 de seus 45 anos com o pai de
suas duas filhas adolescentes.
Durante o casamento, afirma, suportou o
"sentimento de posse" e a "loucura" do marido.
|
Policiais
fazem visitas surpresa a mulheres que recorreram à Justiça para manter
agressores à distância.
|
"Eu não podia olhar
para o lado. Ele puxava meu braço, batia e xingava. Era uma tortura",
conta Ana.
"Quando ele se aposentou, passava o dia em frente ao meu
trabalho, me vigiando. Parecia que ia morrer sufocada."
Acompanhada pela RMP há um
ano, ela diz que reencontrou o sossego.
"Eu não vivia em paz. Isso é um
renascimento."
Modo de operação
A Ronda Maria da Penha na
Bahia tem bases em Salvador e nas cidades de Paulo Afonso, Serrinha, Juazeiro e
Feira de Santana.
Diariamente, incluindo
finais de semana e feriados, 71 policiais se revezam em visitas de surpresa a
mulheres que recorreram à Justiça para manter agressores à distância.
A presença policial
costuma inibir a aproximação desses homens, mas não em todos os casos.
Desde a
criação, a ronda já prendeu 59 agressores que ultrapassaram os limites fixados
pela Justiça, alguns flagrados em plena visita dos policiais.
|
Unidade
promove visitas a mulheres que recorreram à Justiça para manter agressores à
distância; 59 deles foram presos desde 2015.
|
De sua sala na sede da
ronda, em Periperi, subúrbio da capital baiana, a comandante repassa planilhas,
lê relatórios e monitora o movimento das equipes.
Mesmo não participando
mais das visitas residenciais, ela conhece a história de cada mulher assistida.
Recebe muitas para
conversas que podem se estender por horas.
"Essas mulheres
precisam confiar na gente.
Temos que construir uma relação para que elas nos
contem suas verdades."
Números da violência
De olho nas planilhas, a
major sabe que precisa de mais estrutura: 71 policiais parece pouco diante do
quadro da violência contra a mulher no Estado.
Somente no primeiro
semestre de 2016, a Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180) recebeu 26.674
chamadas na Bahia, com notificações que vão de ofensas verbais a graves
agressões físicas.
|
Bahia
é quarto Estado no ranking de denúncias de violência contra mulher; major diz
batalhar por mais recursos para atendimento.
|
Nos registros,
contabilizados pela Secretaria de Políticas para as Mulheres do governo
federal, a Bahia é o quarto Estado em números absolutos de chamadas, atrás de
São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Salvador é a quinta capital, com
5.927 chamadas de janeiro a junho.
De acordo com o Tribunal
de Justiça da Bahia, tramitam no Estado 26.527 processos de violência doméstica
e familiar contra a mulher.
Ao final de cada um deles,
será determinada ou não uma medida protetiva, que, entre outras ações, podem
proibir o homem de se aproximar da mulher ou afastá-lo do lar.
Quando a medida é
estabelecida, a própria Justiça indica casos urgentes para acompanhamento da
RMP.
"Quero qualquer coisa
que a Secretaria de Segurança oferecer.
Eu vou atrás, encho o saco, mostro os
números.
Quanto mais mulheres atendermos, melhor", diz major Denice.
|
Denice
ingressou nas primeiras turmas femininas de praças e de oficiais da PM da
Bahia; hoje é uma das duas mulheres em postos de comando na corporação.
|
Repercussão do trabalho
A iniciativa na Bahia não
é a primeira nem a única no Brasil - a Brigada Militar gaúcha, por exemplo,
organiza patrulhas semelhantes desde 2012 -, mas repercute entre acadêmicos e
instituições policiais.
Em setembro, Denice foi
palestrante na abertura, em Brasília, do encontro anual do Fórum Brasileiro de
Segurança Pública (FBSP), ONG que reúne pesquisadores e profissionais do setor.
O tema do encontro foi
violência contra a mulher, e a major dividiu a apresentação com Maria da Penha
Fernandes, farmacêutica conhecida por batalhar pela condenação do ex-marido
agressor e dar nome à lei de 2006 que aumentou o rigor das punições em casos deste
tipo.
|
Major
Denice em palestra no encontro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública;
experiência vem chamando a atenção de pesquisadores e profissionais do setor.
|
"Mesmo com limitações
estruturais, a Ronda Maria da Penha da Bahia é um exemplo hoje para outras
iniciativas do país.
Não conheço outro trabalho policial que esteja tão próximo
das pessoas e já com resultados práticos tão expressivos", afirma a
socióloga Samira Bueno, diretora-executiva do FBSP.
Bueno diz que há muita
descontinuidade em políticas de segurança no Brasil, e por isso ações na área
ainda são muito dependentes de uma liderança pessoal forte para sucesso e
continuidade.
"Neste caso, é
preciso valorizar que é uma major, uma mulher, à frente de uma ação que vem
dando certo."
Trajetória
Filha de família pobre,
Denice Santiago estudou toda a vida em escola pública.
Em 1990, após terminar o
ensino médio, foi incentivada pelo pai ("Para garantir emprego e
salário", conta) a tentar uma vaga na primeira turma feminina de praças da
PM da Bahia.
Entrou como sargento.
Dois anos depois, ingressou
na primeira turma aberta para oficiais mulheres.
Hoje é uma das duas únicas
oficiais a ocupar posto de comando na PM baiana - mulheres são 13% do efetivo
da corporação.
|
Denice
Santiago com Maria da Penha (na cadeira) em evento em Brasília; com filho
adolescente, conversas sobre situação da mulher.
|
A atuação com foco na
mulher acompanha o caminho de Denice na Polícia Militar.
Em 2006, quando
integrava o setor de tecnologia da corporação, ela fundou o Centro Maria
Felipa, até hoje o único núcleo direcionado para mulheres em PMs do país.
Batizado com o nome da
heroína das batalhas pela independência do Brasil na Bahia, o centro ajudou a
criar a norma que determina o deslocamento imediato de policiais gestantes para
o trabalho administrativo.
Antes, elas ficavam nas ruas até as vésperas do
parto.
O CMF também promove
cursos e seminários para policiais e oferece auxílio a mulheres da PM vítimas
de violência doméstica.
O centro motivou até um apelido para a major: até hoje
é chamada de Felipa por muitos colegas de farda.
Teoria e prática
Para atuar sob o comando
da major Denice na Ronda Maria da Penha, policiais se alistam voluntariamente.
Após seleção pelo perfil, passam por uma formação específica, um dos
diferenciais do programa na Bahia.
No curso, elaborado pela
Secretaria de Políticas para Mulheres do Estado, discutem temas como gênero e
patriarcado.
E todos entram em contato com os outros órgãos da rede de
atendimento: Polícia Civil, Tribunal de Justiça, Ministério Público, Defensoria
Pública.
|
Major
Denice em curso para policiais que atuam na Ronda Maria da Penha; formação é
vista como um dos diferenciais da iniciativa.
|
Após a inserção na
operação, policiais, homens e mulheres, participam de encontros mensais com
atividades lúdicas e de autocuidado.
O objetivo é abrir espaço para que possam
se expressar artisticamente e aliviar a carga emocional das histórias de crises
familiares que acompanham.
Graduada em Psicologia, a
própria comandante passa por acompanhamento psicoterapêutico.
"Preciso recorrer ao
analista para não levar tudo isso pra casa, mas é impossível", comenta,
lembrando o dia do telefonema no domingo de folga.
(Naquela ocasião, a major
acionou policiais de plantão, mas o agressor desistiu de aparecer quando a
mulher disse que já havia ligado para a ronda.)
Outro ponto forte da
iniciativa é a interlocução entre os órgãos da rede de atendimento.
Representantes do comitê gestor da RMP conversam via WhatsApp para acelerar
procedimentos que envolvam a proteção de mulheres assistidas.
Por iniciativa própria,
Denice também encabeça uma ação chamada "Mulheres de Coragem" -
recebe mulheres assistidas na sede da unidade para palestras, oficinas de arte
e teatro, em ações de socialização e empoderamento.
|
Mulher
Maravilha em destaque na mesa da major e prêmios de reconhecimento: atuação com
foco na mulher marca trajetória de PM.
|
Para policiais homens e o
público masculino externo, organiza as palestras do "Papo de Homem".
"A ideia é fazer com que os homens se percebam no ciclo da violência,
porque este (agressão contra a mulher) é um crime cultural", afirma.
A caminho de uma visita da
ronda, o soldado Ivan da Silva reconhece que buscou uma vaga na unidade
especial apenas para trabalhar no horário administrativo e ter tempo para estudar
à noite.
"Hoje minha cabeça é outra.
Fui aprendendo com as histórias.
A
realidade das mulheres é muito mais difícil do que se imagina."
Ao seu lado, outro
soldado, Arivaldo Souza, afirmou que entendeu que a violência não se manifesta
somente em agressões físicas.
"Comecei a ver o peso da violência
psicológica. Uma mulher me disse uma vez que preferia levar um tapa a ouvir as
coisas que o ex-marido dizia."
Minutos depois, os dois
PMs, ao lado da soldado Jocinanda Oliveira, chegam à casa de Lúcia*, de 28
anos.
Após três anos em um relacionamento violento, ela se afastou do
ex-namorado depois de ser agredida com o filho recém-nascido do casal no colo.
"Ele chegou a me
ameaçar de morte.
Sempre tive muito medo, mas com as visitas dos policiais a
gente sente que pode contar com alguém.
Eu converso com amigos e falo com
orgulho que a ronda veio aqui em casa", afirma.
|
'Com
as visitas dos policiais a gente sente que pode contar com alguém', diz mulher
atendida por unidade.
|
Acompanhada pela unidade
há cerca de um ano, ela costumava sair de casa apenas para ir ao trabalho.
"Eu fui à praia outro
dia.
Nem acredito.
E só fui porque me senti confiante.
Foi ela quem me
incentivou", conta Lúcia, lançando um olhar de cumplicidade para a soldado
Oliveira.
Ela segura o filho e chora.
Cotidiano
No comando da operação,
major Denice se diz orgulhosa por histórias como a de Lúcia, mas afirma que não
pode baixar a guarda para romper o ciclo do que chama de "violência
cultural".
No papel de mãe de um
adolescente de 15 anos, procura dialogar com o filho sobre temas que encara no
trabalho, apostando que ele levará as informações adiante.
"Eu insisto mesmo.
Às
vezes ele brinca quando me pede sugestão de tema de redação, dizendo que
violência contra a mulher não vale.
Mas ele é bem consciente e eu sei que
conversa muito com os amigos."
|
Mesa
de trabalho da major baiana; proteção do candomblé, lembrança da maternidade e
Mulher Maravilha.
|
Ao falar da vida familiar,
Denice deixa escapar que, até fevereiro de 2015, "sentia que era
eterna".
Foi quando, em um exame de rotina, descobriu um tumor no estômago
- após uma cirurgia que extraiu todo o órgão, atravessou meses de tratamento
quimioterápico.
Agora, adapta-se dia a
dia.
Come menos, evita alimentos pesados, prioriza a comida de casa e, para
fugir de eventuais toxinas, cortou frutos do mar.
"Só não abro mão de pão.
Adoro sanduíche, mas estou comendo metade da metade", diz a major de 1,73
metro, entre risos.
Para o bem da digestão,
também precisa mastigar tudo lentamente.
Diz não ver problema, pois assim
consegue mais tempo para pensar na vida e bolar "mais umas
maluquices" para a ação da ronda - uma dessas ideias é fazer uma horta em
frente à sede da unidade e convidar as mulheres para cuidar do espaço.
|
Oficial
teve câncer no estômago e teve que extrair órgão: 'Me fortaleci para ajudar
essas mulheres a serem felizes'.
|
"Com o câncer, uma
amiga disse que não deveria perguntar por que as coisas acontecem e sim para
quê.
Depois que superei essa doença, me fortaleci para tocar o trabalho, ajudar
essas mulheres a serem felizes.
Minha mãe sempre disse que nossa missão é ser
feliz."
Para o futuro, a major
abre portas no ambiente acadêmico.
Hoje cursa mestrado na Universidade Federal
da Bahia em que estuda a relação entre a questão racial e o enquadramento de
suspeitos por policiais militares.
E vislumbra a felicidade
em algum cantinho perto de Salvador, onde possa fazer uma horta própria e viver
tranquila ao lado da família, assistindo a seus filmes preferidos: os épicos e
os da franquia Marvel, com seus heróis onipotentes e falíveis.
Criada em família com
raízes no candomblé (religião de matriz africana), Denice Santiago se apresenta
como uma mulher de Iansã.
É a deusa dos raios e trovões na mitologia iorubá,
guerreira que batalha pelo seu povo e carrega a força do feminino.
Iansã pode ter mil
facetas, mas a fragilidade nunca será uma delas.
*Para preservar a
identidade das mulheres vítimas de violência, os nomes foram trocados.
|
'Nossa
missão é ser feliz', afirma major baiana.
|
post: Marcelo Ferla
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Deixe sua opinião.