PAREM DE JOGAR CADÁVERES
NA MINHA PORTA
Parem de jogar cadáveres
na minha porta.
Tenho que sair - respirar.
Estou seguindo para os
jardins de Allambra
a ouvir o que diz a água
daquelas fontes
e acompanhar o desenho
imperturbável dos zeliges.
Não me venham com jornais
sangrentos sob os braços.
Parem de roubar meu gado,
de invadir meu teto
e de semear pregos por
onde passo.
Estou em Essauíra, na
costa do Marrocos
olhando o mar. Ou em Minas
contemplando as montanhas
ao redor de Diamantina.
Não me tragam o odorento
lixo da estupidez urbana.
Parem de atirar em minha
sombra
e abocanhar meu texto.
Estou tornando a Delfos
naquela manhã de neblinas
ouvindo o que me diz o
oráculo em surdina.
Ainda agora embarquei para
o Palácio Topkapi
frente ao Bósforo,
quando tentaram me
esfaquear na esquina.
Jamais permitirei que
quebrem as porcelanas
e roubem a gigantesca
esmeralda na real vitrina.
Não me chamem para a
reunião de condomínio.
Estou nos campos da Toscana
onde a gigante mão de Deus
penteia os montes
e minha alma se sente
pequenina.
Dei de mão comendas e
insígnias
não tenho mais que na
praça erguer protestos
e distribuir esmolas não é
mais a minha sina.
Acabo de entrar no
Pavilhão da Harmonia Preservada
e
me liberto
- na Cidade Proibida na
China.
Não adianta o clamor de
burocráticos compromissos
nem vossa ira. Tenho oito
anos
saí para nadar naquele
açude atrás dos morros
e vou pescar a minha única
e inesquecível traíra.
Parem de jogar cadáveres
na minha porta
na minha mesa
na minha cama
dificultando
que alcance o corpo da
mulher que amo.
Afastem de mim
o meu
o vosso cálice.
Impossível ficar no tempo
que me coube
o tempo todo
preciso repousar num campo
de tulipas
reaprendendo a ver o que
era o mundo
antes de
como um Sísifo moderno
desesperado julgar
- que o tinha que
carregar.
Affonso Romano de
Sant'Anna
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