“Ligações Perigosas”: Por
que na Globo um beijo gay é polêmico e uma cena de estupro é aceitável?
editado em 08.01.2016
Andréa
Martinelli - Editora de Blogs & Mulheres do HuffPost Brasil
*Atenção:
este texto contém relatos de cenas de estupro
A microssérie Ligações
Perigosas estreou nesta semana na Rede Globo prometendo um enredo fiel ao texto
original, o clássico Les liaisons dangereuses (As Ligações Perigosas, em
tradução livre), romance epistolar do século 18, com cenas e estética sensuais,
envolvente e um beijo entre duas mulheres.
Uma fórmula que costuma
dar certo, mas que, desta vez, não agradou.
Os motivos?
Primeiro, o capítulo da
última quinta-feira (7).
Nele, Cecília (Alice
Wegmann) permite que Augusto (Selton Mello) vá ao seu quarto todas as noites
entregar cartas de amor de Felipe (Jesuíta Barbosa), por quem Cecília é
apaixonada.
Ingênua e romântica, ela
não imagina que, por trás da atitude de Augusto, está Isabel (Patrícia Pilar),
e que a intenção dele é, na verdade, seduzi-la para tirar sua virgindade a
mando da tia.
E foi isso o que Augusto
fez.
Mas não foi seduzindo,
envolvendo a adolescente, como a Globo anunciou.
Ele estuprou Cecília.
Na cena, Cecília pede
repetidas vezes para Augusto ir embora, mas ele insiste em ficar e diz que só
vai sair após um beijo.
Ele diz que quer ensiná-la a dar "um beijo de
verdade".
Ela cede ao beijo, mas
insiste para que ele vá embora depois.
Mas Augusto continua investindo contra
Cecília, que diz que vai gritar para interrompê-lo.
E é neste momento em que
Augusto tapa a boca dela e deita a menina na cama.
Assim se consuma o
estupro.
O capítulo acaba com o
foco no rosto de Cecília, que demonstra estar sentindo prazer após a
penetração, romantizando uma violência vivida por muitas mulheres.
E as telespectadoras
ficaram incomodadas -- e com razão:
Eu to pedindo a Deus que
Ligações Perigosas não romantize o estupro. SÉRIO. — Nalu (@_NoAnna) 8 janeiro
2016;
"Gente, a cena ontem de
#LigacoesPerigosas foi sim de estupro, inclusive no filme também foi (pelo que
me lembro no livro também).
Mistura de nojo e raiva!
#LigacoesPerigosas — Fabiola Viana (@VianaViiana) January 8, 2016"
"Aí galera que não sabe o
que relação abusiva e cultura do estupro, foi essa cena de Cecilia e Augusto aí
#LigacoesPerigosas"
Você pode até questionar
que a cena citada acima se passou no século 18 (e na década de 1920, quando a
série global ocorre) e que isso, para o livro, e para a época, se encaixa...
Afinal, a mulher não tinha tanta liberdade quanto tem nos dias atuais, não havia
internet e, sim, grande maioria delas era submetida a situações assim e
acreditava ser "natural".
Mas a principal questão
não é essa!
A crítica não é sobre o
livro, sobre a trama.
E é aí que está o segundo motivo e ponto crucial do
repúdio de telespectadores.
O comentário da jornalista Daniela Lima se encaixa
perfeitamente:
Daniela Lima
“A Globo passou anos
debatendo se faria uma cena de beijo gay ou lésbico. Consultou várias vezes o
público.
No entanto, para mostrar uma cena longa e perturbadora de estupro,
como aconteceu ontem em Ligações Perigosas, não houve nenhum tipo de
preocupação ou consulta.
Ainda estou tentando entender essa "moral"
que interdita o amor e romantiza a violência.”.
Inicialmente, a trama
prometia um beijo gay entre duas personagens.
No primeiro capítulo, em
uma brincadeira, a personagem Alice (Hanna Romanazzi) tentaria beijar Cecília.
No primeiro capítulo, de fato, elas ficaram bem próximas.
Não houve beijo.
Em outro momento, o personagem
de Selton Mello estava em uma cena com outras duas mulheres e, no momento em
que elas insinuaram um beijo entre si, a câmera mudou de plano. Mais uma vez,
sem beijo entre mulheres.
A Globo já colocou um
beijo gay entre duas mulheres no primeiro capítulo de uma novela no ano passado
em Babilônia.
Mas, para isso, tomou todos os cuidados -- o que também causou
expectativa nos telespectadores e na comunidade LGBT.
E foi com toda essa
parcimônia também que, depois de cinco décadas, a Globo resolveu levar ao ar um beijo de dois homens, na novela Amor à Vida, no início de 2014.
Por que esse cuidado todo
que a TV Globo tem com as cenas de beijo gay não se repete na exibição das
cenas de estupro, como o sofrido por Cecília?
A "moral",
citada no comentário acima, que interdita o amor e abre espaço para a violência
é real.
A verdade é que questões
como esta estão diretamente ligadas à cultura do estupro, que culpabiliza
vítimas e coloca agressores em posições de grandeza desde sempre.
Cenas de estupro podem ser
consideradas "aceitáveis" porque, na lógica machista e patriarcal, a
mulher é apenas um objeto e existe em função do homem e para servir ao homem.
Então, qual o problema, não é mesmo?
No caso de Cecília, em
Ligações Perigosas, o estupro foi romantizado quando mostra a personagem
sentindo prazer e demonstrando gostar do ato.
A cena coloca Cecília no
lugar de "menina inexperiente que só disse 'não' porque não sabia o que
era bom" e reforça a falta de liberdade sexual da mulher. Também enfatiza
que um "não", quando parte de uma mulher, nunca é realmente um
"não".
E por que, por sua vez, o
beijo gay é tão velado e escondido?
Porque fere com a
sexualidade alheia de uma forma moralmente inaceitável dentro da mesma lógica
patriarcal, que é também homofóbica.
Homens devem apenas se
relacionar com mulheres.
"Amores n u n c a JAMAIS em
hipótese alguma romantizem o estupro JAMAIS #ligaçoesperigosas".
E mulheres devem se relacionar apenas com homens.
Segundo dados do Fórum Brasileiro
de Segurança Pública, ocorreram, pelo menos, entre 136 mil e 476 mil casos de
estupro no Brasil só em 2014.
É uma violência velada em que apenas 10% dos
casos são notificados.
Nunca, jamais, em tempo
algum, romantizem o estupro.
post: Marcelo Ferla
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