SOU MULHER E CHICO BUARQUE NÃO ME COMPREENDE.
POR
CAROLINE BARRUECO
Enquanto
Chico Buarque se diz um grande desentendedor da alma feminina diversos
admiradores tendem a discordar. Vou aqui questionar a própria natureza da alma
feminina e sua presença na obra de Chico.
Com mais de cinquenta anos
de carreira, o romântico já cantou muito sobre relacionamentos, casamentos,
ciúmes... já encarnou personagens traídas, saudosas e apaixonadas, divagando e
explorando a condição da mulher.
Parece unanimidade: Chico Buarque compreende a
alma feminina.
Mas o que seria, de fato,
a “alma feminina” além de um conceito equivocado de um sopro florido que une
todas as mulheres do mundo? Porque me parece que é sobre isso que o Chico
canta, e é disso que ele entende.
As mulheres que
encontramos nas músicas de Chico são bastante parecidas entre si, é como se
habitassem o mesmo universo fictício.
Elas basicamente transbordam ou quietude
e passividade ou histeria, e esses são dois lados do mesmo clichê.
Um clichê
que pode ser chamado de alma feminina.
A querida antropóloga
Margaret Mead foi uma precursora dos questionamentos acerca da natureza da
“alma feminina”. Ela viveu com algumas sociedades indígenas que ainda não
haviam tido contato com a cultura ocidental, para descobrir se o comportamento
dos gêneros era realmente ditado por fatores biológicos.
Em seu livro Sexo e
Temperamento, escrito a partir dessa vivência, Mead sugere que as
características masculinas e femininas são principalmente construções
culturais.
Entre os Tchambuli da Nova Guiné, por exemplo, os homens são
emocionalmente dependentes e irresponsáveis, se pintam, se enfeitam e dançam
para as mulheres (carecas e detentoras da riqueza e patrimônio da tribo),
apresentando comportamentos aparentemente inversos aos típicos da sociedade
ocidental.
É o que a filósofa Judith Butler chama de performatividade de
gênero, ou seja, as condutas femininas e masculinas não passam de
representações, performances , nessa sociedade do espetáculo em que estamos
todos inseridos.

Não se nasce mulher,
torna-se mulher. E as mulheres de Chico além de estarem envoltas em suas
“almas femininas” têm mais algumas características em comum:
Primeiramente elas não têm
profissão, a não ser que consideremos profissão cozinhar para o marido,
rodopiar, ser fogosa ou esperar na janela.
A espera feminina é
representada em suas músicas como uma não-ação cheia de melancolia, um forte
símbolo de passividade. Ter esperança.
“Ela e sua menina, ela e
seu tricô (...) Da sua janela /Imagina ela /Por onde ele anda?” (Ela e Sua
Janela)
"Morena, dos olhos
d'água/ Tira os seus olhos do mar. (..) Seu homem foi-se embora, Prometendo
voltar já." (Morena dos Olhos D’agua)
"Quem madruga sempre
encontra / Januária na janela." (Januária)
"Seis da tarde como
era de se esperar /Ela pega e me espera no portão." (Cotidiano)
"Ele assim como veio
partiu não se sabe prá onde /E deixou minha mãe com o olhar cada dia mais longe
/ Esperando, parada, pregada na pedra do porto." (Minha Historia)
As mulheres de Chico
também não têm muitos questionamentos além da relação com seus respectivos homens
ou questões da casa.
Esses dias estava
escutando a música ‘Feijoada Completa’, que começa assim:
“Mulher, você vai
gostar:"Tô levando uns amigos pra conversar.” Na hora fiquei feliz por esse
marido pensar na mulher como amiga, que participa da conversa com os amigos
dele. Parece simples, mas lembremos que estamos falando do universo das esposas
que esperam na janela. Bom, a música segue e “..Mulher, você vai fritar/ Um
montão de torresmo pra acompanhar/ Mulher, depois de salgar / Faça um bom
refogado.”
O que o marido realmente queria era que a esposa cozinhasse uma
feijoada para os camaradas dele. Nossa, que notícia boa, ela realmente vai
adorar.
Em diversos momentos,
Chico, assim como muitos compositores, vê as mulheres como musas, e é comum que
elas sejam representadas em estado de romantismo, sem profundidade, como se
vivessem para inspirar os homens.
"Acho que nem sei
direito o que é que ela fala, mas / Não canso de contemplá-la." (Essa
Pequena)
Musa pode ser uma
categoria um tanto redutora, mas esse não é nem de longe o destino mais cruel
das moças que habitam a discografia Buarque de Hollanda:
Na música ‘Se Eu Fosse Teu
Patrão’ um homem sonha em acorrentar a mulher ao pé do fogão, tratá-la como
escrava e estuprá-la no chão da cozinha.
No fim da música chega a vez da
mulher dizer o que ela sonha fazer como patroa do homem, e ela contenta-se em
imaginar que continua servindo o marido, mas dando-lhe um café pequeno, e
afagando-lhe como quem afaga um cão.
Tudo isso cantado num ritmo alegre e com
um tom despretensioso.
É inegável a importância
de se chamar a atenção para aspectos da opressão sofrida por tantas mulheres
pelo Brasil afora, e é importante que essas mulheres sejam representadas, que
não sejam invisíveis.
Mas ao retratar romanticamente relações abusivas, tão
claras como essa, e também mais sutis como em tantas outras canções, Chico
Buarque evita questionar a situação ou empoderar suas personagens. Pelo
contrário, ele naturaliza e normatiza o machismo e pinta suas personagens
femininas com um forte tom de resignação.
“Assim que as coisas são, sem
possibilidade de mudança, e tudo bem.”
"Quando a noite enfim
lhe cansa, você vem feito criança/ Pra chorar o meu perdão, qual o quê! (...)E
ao lhe ver assim cansado, maltrapilho e maltratado/ Ainda quis me aborrecer?
Qual o quê! / Logo vou esquentar seu prato, dou um beijo em seu retrato/ E abro
os meus braços pra você." (Com açúcar, Com Afeto)
A autora Janaía Rufino
sugere que Chico compunha músicas sobre relacionamentos amorosos opressores
como forma de driblar a censura, e ainda assim representar a repressão, na
época da ditadura.
Não encontrei confirmação alguma do próprio Chico, mas
acredito que possa ser o caso em algum momento.
De qualquer forma as músicas
existem sozinhas e falam por si, quer dizer, elas ultrapassaram a ditadura e
sobreviveram, quer queira, quer não, como músicas românticas sobre
relacionamentos amorosos.
Qualquer que tenha sido
sua intenção inicial, Chico lançou foco e ajudou a reforçar um arquétipo da
mulher brasileira, que está incrustado profundamente no nosso inconsciente
coletivo e que precisamos, no mínimo, questionar.
Esse arquétipo não é um
reflexo de mulheres reais, a alma feminina não é um atributo que está no DNA,
(ou no útero), de todas as mulheres, e sim uma série de características
culturalmente construídas, que muitas meninas ainda hoje insistem em abraçar e
que, em geral, enfraquecem as potencialidades delas.
É importante lembrar que
não somos todas “mulheres de Chico”. E que diferentes representações de
diferentes individualidades existam em todas as artes e mídias.
Mudar um
conceito que foi forçado e reforçado durante várias gerações é um processo
lento, mas acredito que estamos no caminho para que algum dia expressões como
“alma feminina” deixem de fazer sentido.
--
post: Marcelo Ferla
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