Um vizinho de 33 anos foi
preso em flagrante, na quarta-feira 11, em Valinhos (SP), após trocar mensagens
e marcar um encontro com uma criança, também moradora do nosso condomínio, de
11 anos.
As mensagens foram
monitoradas pela polícia depois de uma denúncia feita pela mãe.
Antes do
convite para se encontrarem, numa igreja perto de casa, ele já havia pedido
fotos da garota, chamada por ele de "amor", e enviado imagens de seu
pênis.
A prisão do suspeito, que
se casara e se mudara havia pouco para a vizinhança, foi, como não poderia
deixar de ser, o assunto em nossa cidade, um cenário perfeito para a refilmagem
de Dogville no Brasil.
"Pega", "mata", "esfola"
foram algumas das expressões mais ouvidas nas últimas horas. Um vizinho mais
moderado, ciente só agora dos perigos que todos corriam na área de lazer,
chegou a sugerir: o sujeito é louco.
Não é.
Pelas provas levantadas
até agora, é possível supor que o rapaz sabia o que fazia. E não agia como um
louco, um sujeito patológico desabilitado de qualquer convívio.
Agia como homem: um homem
nascido e criado em um contexto em que as diferenças de idade, cargo, função ou
posição social não são motivos de constrangimento, mas elementos a seu favor.
Entre as mensagens monitoradas havia, por exemplo, fotos e convites para andar
no seu carrão.
Esse avanço sobre uma
criança é o avanço de quem não reconhece, ou não quer reconhecer, o limite da
própria ação. E esse avanço não é uma patologia: está no centro de uma
discussão, reverberada com força nas últimas semanas, sobre a violência contra
mulheres no Brasil – algo que muitos homens se negam a reconhecer, muitas vezes
de forma virulenta, como algo que acontece o tempo todo. Muitas vezes sob seu
consentimento inconfesso.
Quando meu vizinho atentou
para a loucura do sujeito, lembrei do que minha amiga, editora e conselheira de
todas as horas Clarice Cardoso havia escrito sobre sua participação, há duas
semanas, em uma manifestação contra a violência sexual, em São Paulo.
Ali, um homem, indignado
com a causa, decidira se masturbar na sua frente, seguro de que nada poderia
acontecer com ele em uma via pública.
Ela escreveu a respeito e, como resposta,
tem recebido há duas semanas uma coleção de fotos de pênis de usuários do
Facebook.
A manifestação tinha como
gota d'água a votação, na Câmara, de um projeto que dificultava o atendimento
de mulheres vítimas de violência sexual na rede de saúde.
E acontecia em um momento
em que mulheres, revoltadas com as mensagens postadas nas redes por homens
(nenhum deles louco, ao que parece) sobre uma criança participante de um
programa na TV, relatavam, também nas redes, episódios em que foram assediadas
na infância e na adolescência por homens adultos.
Não eram meninas distantes
de alguma localidade da Índia, mas nossas amigas, irmãs, filhas e mães que
passaram anos em silêncio diante da vergonha e do constrangimento.
Os
agressores, para surpresa de muitos, não eram “loucos”, mas homens próximos de
suas relações.
Tudo isso em um contexto
em que se divulgava, por aqui, a palavra mais buscada num conhecido site
internacional de pornografia: "novinha".
Em sites similares,
pipocam vídeos, compartilhados por pais de família e até deputados em plenário,
de adolescentes que tiveram a intimidade dilacerada pelo parceiro, mas não só:
nesses sites, jovens, maiores ou menores de 18 anos, atores profissionais ou
amadores, são expostas entre uniformes escolares, meias três-quartos, chuquinha,
brinquedos, ursinhos, pirulitos.
Ali e fora dali, são
proibidas de desfilar em pelos, convertendo os próprios corpos em uma obsessão
masculina de se relacionar com quem não atingiu ainda a puberdade.
"Meninas amadurecem
antes dos meninos", costumam dizer os tiozões da família, da escola e da
vizinhança – nenhum deles, aparentemente, “louco”.
Eles associam, assim, o
corpo feminino a uma consciência e compreensão do mundo (e das relações de poder)
que ninguém pode atingir no turbilhão da adolescência.
É a deixa para tirá-las do
convívio dos garotos de sua idade e ficarem a mercê de um universo adulto
moldado para colocar seus corpos a serviço de outros propósitos, a começar
pelas funções na casa.
Não importa a violência dessa retirada forçada (e
construída): até o fim da vida, poucos se importarão para a sua fala. Ainda que
falem.
Entre os desejos
masculinos e o outro corpo não está nunca um “sujeito”. O que existe é um corpo
à mostra.
Por isso se esbarram.
Encoxam.
Assoviam.
Gritam.
Agridem quando
contrariados.
"Tudo o que é bonito é pra se mostrar". "Um
tapinhas não dói".
A ordem está no refrão. Está no outdoor.
Está na
personagem da novela chamada pelo galã de "sweet child".
E no
intérprete do galã que aparece agora na propaganda de cerveja para falar
ambiguidades sobre uma certa cerveja "proibida".
Até que um dia essa
posição de domínio é contestada.
Meninas e mulheres se organizam para gritar e
tomar as ruas.
E as reações dos meninões é rir. É debochar.
É dizer, no
jornalão, que só viu peitos e pessoas sem razão para reclamar – sem se atentar,
na página seguinte, para uma notícia curiosa: um pré-candidato a prefeito do
Rio acusado de espancar a companheira.
Ninguém é exatamente “louco”, mas é
aparentemente incapaz de ligar os pontos.
Dos deboches sobre o
assedio às fotos de pênis enviadas, sem pedido, à minha amiga Clarice, todos
agiram com a convicção de que nada aconteceria com eles.
Entre seus desejos e
suas ações jamais reconheceram barreiras. Não reconhecem o não.
Não reconhecem
sequer o direito de uma criança envelhecer de acordo com o tempo dela, e não da
vontade dele.
Ouvir o que elas estão
dizendo – nas ruas ou nas redes – é só o começo de um esforço de combate a uma
violência naturalizada. Nada pode ser mais arbitrário do que se opor a esse
direito de falar.
Caso contrário, vamos passar a vida toda atribuindo a
violência sexual a um ato de loucura. Até surgir um novo "louco" como
o do meu prédio – que encontrou sinal verde para a sua violência em todos os
cantos, a começar pela tela do celular.
post: Marcelo Ferla
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