De lá para cá, o carioca vestiu o jaleco para mais duas temporadas em Serra Leoa.
De volta ao Brasil há menos de um mês, ele contou a Opera Mundi os desafios do pior surto da história do vírus, poucas horas antes de decolar para uma nova missão em Guiné.
O vírus, que gerou uma espécie de histeria coletiva em escala global e uma sensação de ameaça iminente ao Ocidente, contudo, não seria a principal doença a se combater no continente africano, mas estopim para o desmoronamento de um sistema de saúde pública intrinsecamente frágil.
Paulo conta que os pacientes de ebola se simpatizam com os brasileiros e veem semelhanças entre os dois continentes. |
O impacto na estrutura precária em Guiné, Serra Leoa e Libéria é visto como alarmante. Com o foco no combate ao ebola, o aumento do número de mortes por doenças tratáveis, como diarreias e, sobretudo, malária, acaba negligenciado.
“Essas pessoas passam despercebidas, pois não estão recebendo tratamento em sistemas de saúde.
Eu estimo que haja muito mais pessoas que morrem de malária do que de ebola", afirmou à publicação.
“No momento em que as pessoas têm febre, muitas vezes elas têm medo de ir aos serviços de saúde, porque querem evitar serem internadas em centros de tratamento de ebola", explica.
Vista aérea de centro de tratamento de ebola construído pelo Reino Unido em Serra Leoa.
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Embora a malária não seja do grupo de febres hemorrágicas como o ebola, são duas doenças infecciosas endêmicas no continente africano e alguns sintomas se sobrepõem, como a febre alta e as complicações hepáticas.
Outro fator que confunde é que os últimos meses foram marcados pela temporada de chuvas na região, que leva a um período de pico na transmissão da malária.
O produtor de vídeo carioca estava prestes a retornar ao Brasil quando teve que ficar internado e isolado em uma UTI (Unidade de Terapia Intensiva) na Espanha.
Com febre alta por vários dias, além de manchas e dores no corpo, o jovem Yarssan viveu momentos de tensão até saber que havia contraído malária, e não ebola.
“Pensar que não iria morrer foi um alívio, a suspeita de ebola era forte”, contou à época em entrevista exclusiva a Opera Mundi.
De acordo com a OMS (Organização Mundial de Saúde), nos três países mais afetados pelo ebola, a malária foi responsável pela morte de 7 mil pessoas em 2012.
Não se trata de uma competição de qual doença é mais mortal, mas ressalta-se a importância de também incentivar o tratamento para o controle da malária, cada vez mais marginalizada e à sombra do ebola.
Segundo a OMS, um rápido diagnóstico contribui para a redução da transmissão da malária, o que indiretamente auxiliaria na luta contra o ebola, apontam especialistas das ONGS citadas.
Yarssan Salomão no Marrocos; a princípio, ele não pensava em ir ao Mali, mas foi convencido após ouvir que 'não havia ebola'; |
“Tivemos algumas mulheres grávidas que contraíram a doença.
Na minha experiência, a maioria sobreviveu, apesar de serem mais frágeis à infecção.
Mas, infelizmente, não conheço nenhum caso que o feto tenha sobrevivido ou nascido.
Além disso, tem também o problema das grávidas que não foram contaminadas, mas não conseguem ter nenhum tipo de acompanhamento médico por conta do surto de ebola.
A situação é grave principalmente em Serra Leoa, que tem um dos maiores índices de mortalidade maternal do planeta”, ressalta o médico brasileiro.
A assessoria da organização explica que as equipes ficaram extremamente sobrecarregadas, o que impossibilitou medidas básicas de proteção para evitar contágio e o risco de novas infecções, tanto dos pacientes, quanto de seus profissionais.
“Teve um garoto de 11 anos que chegou muito mal, mas conseguiu se manter e ficou muito tempo internado.
Geralmente, os pacientes morrem no terceiro ou quarto dia de internação.
Já esse garoto ficou quase 3 semanas conosco.
Infelizmente, ele morreu no dia em que fizemos um novo resultado de teste de ebola e tinha dado negativo. Ou seja, seu corpo já estava livre do vírus, mas seus órgãos estavam afetados demais. Ele lutou muito. Mohammed era o nome dele”, relembra.
Enfermeira dá analgésico para paciente de 12 anos que está em ala de isolamento por causa do ebola. |
Em Serra Leoa, por exemplo, ele conta que na medida em que os casos suspeitos de ebola atingem vilarejos cada vez mais distantes, as poucas ambulâncias disponibilizadas pelas autoridades governamentais chegam a demorar até 9 horas para buscar os pacientes e mais 9 horas para transportá-los aos centros de tratamento.
Existem casos em que não necessariamente todos estão infectados com ebola (mas sim com malária, por exemplo) e acabam sendo expostos ao risco de contágio durante as longas jornadas até chegarem às instalações de saúde disponíveis.
Por que essa epidemia dura tanto tempo?
A facilidade de transporte, somada à escassa infraestrutura, sem dúvidas, é um dos fatores que explica a longa duração do surto, de acordo com o médico.
Em 2012, fui para Uganda, que passava por mais um surto de ebola.
Como todos já conheciam o vírus, a resposta da população e das autoridades foi mais rápida e tudo foi rapidamente contido”, diz Paulo.
Já em Serra Leoa, o avanço de casos foi muito rápido e muito maior.
Tudo foi tão veloz que as autoridades locais nem estavam admitindo ter casos até que não dava mais para negar”, compara o brasileiro.
Segundos dados da OMS de 7 de novembro de 2014, Guiné contabiliza 1.760 casos e 1054 mortos, ao passo que Serra Leoa apresenta 4862 pacientes confirmados e 1.130 mortos.
Atualmente, todos os distritos de Serra Leoa estão afetados pela epidemia.
“A situação não está sob controle.
Fica difícil ter uma ideia.
Vai depender da reação das organizações e o aparecimento de vacinas. Não arriscaria uma data ou estimativa”, diz.
Em relação ao Brasil, Paulo é otimista.
“Há possibilidades de casos isolados, isto é, ‘importados’, mas não acredito que se torne um caso de problema de saúde pública no país.
O governo está tomando medidas bem lógicas e efetivas, sem pânico exagerado. Está contido, não vejo um risco grande”, assegura.
No vai e vem entre Brasil, Guiné e Serra Leoa, Paulo Reis ainda assegura que não sofreu preconceitos por aqui, apesar de ser um consenso que a ignorância em torno da epidemia gerou episódios de fobias ao redor do mundo.
“Tive experiências boas. Infelizmente, isso acontece tanto no Brasil, quanto fora. São atitudes irracionais. Só ouvi uma brincadeirinha uma vez quando alguém me perguntou se podia apertar as suas mãos, dizendo ‘você não vai me passar ebola, né?’. É, talvez eu tenha dado sorte”.
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