Brasil perdeu mais de
1.100 línguas indígenas em 500 anos.
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Índios guarani recebem título de Língua de Referência Cultural Brasileia. |
Por José Ribamar Bessa Freire
A cada quinze dias
acontece uma morte. Dizem que cortam a língua da vítima com requintes de
crueldade.
O cadáver desaparece misteriosamente sem deixar vestígio.
Daqui até
o Natal haverá mais dois assassinatos em algum lugar do mundo, segundo previsão
do investigador irlandês David Crystal, que busca pistas para explicar tantos
crimes. Nenhum organismo policial, nacional ou estrangeiro, identificou até
hoje os assassinos.
Um seminário realizado em Foz do Iguaçu (PR), nesta semana,
reuniu autoridades e especialistas da América Latina para discutir, entre
outras questões, como evitar essas mortes consideradas crime contra a humanidade.
Parece que os assassinos
se inspiram em Genghis Khan que no século XIII, de forma indulgente, poupava a
vida dos prisioneiros de guerra, a quem deixava retornar em liberdade às suas
casas. No entanto, para impedir que batessem com a língua nos dentes e
passassem informações ao inimigo, cortava suas línguas. Daí a origem do
provérbio mongol “Quem tem língua cortada não fala.”
A mutilação praticada pelo
exército mongol continua sendo feita simbolicamente no planeta. O crime é
justamente esse: o glotocídio. Cada quinze dias morre o ultimo falante de uma
das 6.700 línguas faladas atualmente em 193 países. Com ele desaparece para
sempre mais uma língua.
Com o objetivo de criar
estratégias para fortalecer as línguas ameaçadas na América Latina, o Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e o Ministério da Cultura
organizaram nesta semana, de 17 a 20 de novembro, em Foz do Iguaçu, um encontro
de autoridades e de alteridades no Seminário Ibero-americano da Diversidade
Linguística, que reuniu mais de 400 pessoas comprometidas com a luta pelos direitos
linguísticos das minorias.
Participaram dos debates linguistas, historiadores,
antropólogos, falantes de línguas indígenas e de línguas minoritárias de
migração, além da Língua Brasileira de Sinais (Libras).
Durante o evento foi
entregue o certificado das três primeiras línguas reconhecidas como referência
cultural brasileira pelo Iphan: o guarani, falado também em outros países do
Mercosul, o Assurini do Trocará, língua falada nas margens do Rio Tocantins
(PA) e que quase desaparece afogada na hidroelétrica de Tucuruí e o Talián –
vinda com os migrantes do norte da Itália e que hoje é falada no sul do Brasil.
Essas três línguas, depois de terem sido cuidadosamente documentadas, fazem
parte agora do Inventário Nacional da Diversidade Linguística (Indl).
Línguas minorizadas
O reconhecimento de uma
língua como referência cultural requer que ela seja falada em território
brasileiro há pelo menos três gerações e que seus falantes solicitem ao Iphan o
pedido de inclusão no Indl, que é então analisado por uma comissão técnica
interministerial.
Esse caminho pode ser seguido por mais de 300 línguas faladas
no Brasil, entre elas as línguas indígenas, que são autóctones e estão aqui
enraizadas, e as línguas alóctones que vieram para o Brasil trazidas por
migrantes.
Das línguas indígenas apenas 11 têm acima de cinco mil falantes, o
que significa que a maioria corre sério risco de extinção.
Essas línguas chamadas
minoritárias foram minorizadas no processo histórico, ficando com número
reduzido de falantes: apenas 5% da população do planeta.
No entanto, elas
constituem maioria expressiva se considerarmos a quantidade de línguas faladas
no mundo inteiro por tais minorias, que representam 95% das línguas existentes
no Atlas Linguístico Mundial, 15% das quais em continente americano.
Portanto,
os direitos linguísticos reivindicados se referem a uma minoria de falantes,
mas também à maioria das línguas existentes no mundo que garantem a manutenção
da glotodiversidade.
O que é, afinal, que se
quer com a defesa da diversidade linguística?
Já seria plenamente justificável
lutar exclusivamente pelos direitos legítimos das minorias de continuarem
pensando, cantando, amando, narrando, trabalhando e sonhando em suas línguas,
mas essa luta ganha força quando sabemos que ela inclui a sobrevivência das
próprias línguas, que só seus falantes podem garantir.
Muitas espécies vivas de
plantas e de animais que estão em perigo são conhecidas apenas por determinados
povos cujas línguas – que produziram e armazenam tais conhecimentos – são consideradas
moribundas e estão ameaçadas de extinção.
O linguista Aryon
Rodrigues, depois de esboçar um panorama das línguas indígenas da Amazônia,
concluiu que nelas se encontram fenômenos fonéticos, gramaticais, de construção
do discurso e de uso das línguas, que não se encontram em línguas de outras
partes do mundo.
Daí a preocupação de mantê-las vivas.
Essas línguas
constituem, junto com o material arqueológico disponível, as pistas que melhor
nos informam sobre a ocupação do território americano, datas e movimentos
migratórios.
A sobrevivência das
línguas ditas minoritárias interessa, portanto, não apenas aos seus falantes,
mas ao conjunto da humanidade, pois está relacionada à preservação da
biodiversidade.
A diversidade linguística se torna assim tão vital para a
sobrevivência da espécie humana quanto à diversidade biológica.
O glotocídio
Segundo David Crystal em
seu livro "A revolução da linguagem”, hoje, no planeta, ainda são faladas
6.700 línguas, mas a situação é dramática, porque em média, uma língua desaparece
a cada duas semanas. Línguas morrem, o que é natural.
O preocupante, para ele,
é a velocidade da perda que está se fazendo sem precedentes na história
escrita, decretando morte prematura, um glotocídio anunciado.
- Uma língua começa a
desaparecer quando seus falantes são expulsos de suas terras ou quando a
comunidade, por essa e por outras razões, perde o desejo de preservá-la, diz
Crystal, para quem se uma língua que nunca foi documentada morre, é como se
jamais tivesse existido, porque não deixa qualquer vestígio. E uma língua morre
– diz ele – quando o penúltimo falante desaparece, pois então o último já não
tem mais ninguém com quem conversar.
No seminário foi lembrado
o drama recente de dois índios. Um deles – Tikuein – único falante da língua
Xetá, vivia na aldeia São Jerônimo, norte do Paraná, com índios Kaingang e
Guarani. Como estratégia para manter a língua viva, ele falava com o espelho e
algumas vezes, caminhando pela aldeia, com um interlocutor fictício – leia a
crônica "O homem que falava com o espelho.".
O outro caso foi
registrado em 1978 por Zelito Viana no filme Terra de Índio. Ele gravou dona
Maria Rosa, que vivia no Posto Indígena Icatu (SP) e era ali a única falante da
língua Ofaié Xavante.
Quando a fez escutar o que ela mesma havia dito, dona
Maria Rosa estabeleceu um diálogo com o
gravador, a quem perguntou por seu pai, por sua mãe e no final se despediu do
aparelho dizendo:
"Até logo, agora não falo mais porque estou rouca,
viu?".
A extinção é um risco
permanente para as línguas minoritárias, principalmente as indígenas, devido ao
reduzido número de falantes e ao uso social restrito.
Não existe literatura
escrita nessas línguas, nem espaço na mídia. Em cinco séculos, nessas
condições, mais de 1.100 línguas indígenas desapareceram do mapa do Brasil e
outras tantas do continente americano, levando com elas conhecimentos, cantos,
rezas, narrativas, poesia, mitos, afetos.
O jesuíta João Daniel, no
seu "Tesouro Descoberto do Rio das Amazonas", com distanciamento
crítico, conta como um missionário espancou uma índia do Marajó com bolos de
palmatória dizendo: "Só paro de bater quando você disser
"basta", mas não na tua língua". Ela calou.
Suas mãos sangraram.
Ele concluiu que as mulheres – a quem talvez o mundo deva a preservação de
muitas línguas – eram mais resistentes que os homens, que migravam de uma
língua a outra com mais frequência.
Desta forma, centenas e centenas de línguas
foram extirpadas a ferro e fogo.
Inventário de Línguas
O Inventário Nacional da
Diversidade Linguística Brasileira (INDL) criado por Decreto Federal de 2010
tem o objetivo de conhecer e fortalecer as línguas minoritárias.
Ele dialoga
com a Carta Europeia sobre as Línguas Regionais ou Minoritárias (1992) e a
Declaração Universal para a Promoção da Diversidade Cultural – Unesco (2005),
além da Declaração Universal dos Direitos Linguísticos (1996) de Barcelona, que
surgiu das comunidades linguísticas e não dos Estados nacionais.
No Brasil, existem vários
projetos destinados a identificar, documentar, reconhecer e valorizar as línguas portadoras de
referência à identidade como o PRODOCLIN, do Museu do Índio, que documentou
cerca de 20 línguas e culturas indígenas e projetos do Museu Goeldi e do
Laboratório de Línguas da UnB, entre outros.
Reconhecer essas línguas
não é simplesmente aceitar formalmente a sua existência, mas considerá-las
parte da nossa história.
Como escreveu Bartolomeu Meliá, que fez a conferência
final, "a história da América é também a história de suas línguas, que
temos de lamentar quando já mortas, que temos de visitar e cuidar quando
doentes, que podemos celebrar com alegres cantos de vida quando faladas".
post: Marcelo Ferla
fonte: site terra.
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