Algumas dessas criações desenvolveram a habilidade de se copiar e se espalhar pelo ambiente, num "crescei e multiplicai-vos" químico. Em pouco tempo, a água estava tomada. Até aí, nada de muito interessante teria acontecido neste pacato planeta rochoso, se algumas dessas moléculas não começassem a sofrer mudanças na hora de se multiplicar. Uma passou a se reproduzir com mais rapidez, outra viveu mais, e uma terceira ainda descobriu uma forma de se proteger do mundo exterior criando uma cápsula protetora ao seu redor.
Essa molécula multiplicadora era o tataravô do nosso DNA - e sua cápsula, a membrana celular das nossas células. Já as pequenas "mudanças na hora de se multiplicar" são as mutações. São elas que no fim das contas desenvolveram a vida na Terra: fizeram com que essas células arcaicas virassem bactérias, fungos, insetos, peixes, dinossauros, aves e, finalmente, nós, macacos pelados de cérebro avantajado. Sem as mutações não estaríamos aqui. São a chave da vida e da morte. São elas também as culpadas pela mais temida das doenças do nosso tempo: o câncer.
O resultado, você pode imaginar, é uma barulheira descabida - um equivalente sonoro a um tumor. É exatamente assim com o câncer, doença que se espalha sorrateira. Ela começa com uma pequena inflamação, pode ser algum químico do cigarro ou fuligem, por exemplo, que se aloja no pulmão. Para expulsá-lo, nosso sistema imunológico vai até lá lutar contra ele e desencadeia um processo inflamatório. Nessa briga, pode ser que alguma célula do corpo leve a pior: a toxicidade do alcatrão, por exemplo, pode acordar um oncogene e alterar para sempre seu DNA.
Mutante, ela começa a se dividir e multiplicar descontroladamente, muito mais do que as companheiras: uma das características principais do câncer.
Se novas mutações aparecerem, e uma delas desligar a capacidade natural do organismo de matar as células, por exemplo, ferrou: o câncer surgiu.
Os oncologistas brasileiros garantem a cura de até 70% dos doentes em estágio inicial. Mas os ganhos não foram suficientes para anular as perdas. No Brasil, a parcela de culpa do câncer pelas mortes totais passou de 8% em 1980 para 15% em 2010 (já que os tratamentos das outras doenças avança rapidamente). "Até agora tivemos um progresso, é inegável. Mas, se muita gente segue morrendo, precisamos pensar diferente" diz David Agus, oncologista e autor do livro Uma Vida sem Doenças.
"Uma forma é entender o câncer como um verbo. Você não `tem câncer', você está `cancerando'."
Se é um verbo, fica fácil explicar por que a incidência do câncer cresce junto com a expectativa de vida. As células do seu corpo não param de se reproduzir - e cada divisão pode gerar alguma mutação e despertar um oncogene.
Em uma pessoa idosa, o DNA já foi copiado tantas vezes, que o risco de erros é muito maior. Pense num xerox de um xerox - é sempre pior do que a primeira cópia.
"Se a doença cresce, é porque o corpo todo está doente, não apenas um órgão", diz Agus. Em outras palavras, o câncer só cresce quando seu organismo falho permite - quando aquele primeiro violino saiu do tom.
E é para esse lado que a oncologia começa a olhar: para dentro de você, à procura do reequilíbrio do corpo.
Aos 56 anos, ela sabia o que aquilo podia ser.
Na segunda-feira, correu até o médico e marcou os exames que confirmariam o óbvio: estava com câncer de mama.
O tumor não passava de um centímetro, mas ela teria de enfrentar uma operação para retirá-lo. Naquela época, começo dos anos 80, as ideias de William Halsted, cirurgião americano, ainda influenciavam os oncologistas de todo o mundo. Halsted só viveu até o ano de 1922, quando pouco se sabia sobre o câncer, mas defendia que se devia eliminar o maior número possível de tecidos ao redor dos tumores para não deixar nenhum fragmento para trás, o que possibilitaria o surgimento de um novo tumor. Em outras palavras, Halsted mandava caprichar na faca.
Em 1981, um estudo americano comprovou que a mastectomia radical não apresentava nenhum benefício em relação à cirurgia simples (retirada de só um pedaço da mama) ou cirurgia acompanhada por radioterapia.
Anos mais tarde, em 2004, a filha de Carmela, Eliane, também se deparou com caroços - mas só precisou retirar um quarto da mama direita, além de encarar doses de radioterapia e quimioterapia.
Funcionou por um tempo. Mas logo apareceram as recaídas.
A primeira droga a curar de verdade o câncer apareceria só em 1960, quando dois pesquisadores conseguiram acabar com um câncer raro na placenta de uma paciente.
Os primeiros pacientes tratados com cisplatina, nos anos 70, sentiam tanta fraqueza e náusea que vomitavam quase 12 vezes por dia. Chegavam à beira da morte.
Hoje, a indústria farmacêutica já criou remédios capazes de reduzir os efeitos. Por anos, a estratégia dos cientistas foi testar qualquer tipo de substância - plantas, químicos, remédios - para tentar destruir o câncer, como se ele fosse causado por vírus ou bactérias.
Demorou para entender que o perigo morava tão perto.
Sem encontrar explicação para o câncer, a ideia do vírus atraiu os pesquisadores - tanto que, em 1950, chegou a ser criado, nos EUA, um Programa Especial de Vírus do Câncer.
A busca não deu em nada: raros tipos de câncer são causados por micro-organismos. O que descobriram foi que o tal vírus dos sarcomas das galinhas na verdade não causava câncer.
O que ele fazia era transportar para dentro dos animais um gene específico - e este, sim, alterava as células e fazia com que elas começassem a se dividir loucamente.
Como um software que, uma vez instalado, faz a máquina inteira rodar de uma nova forma.
Os dois pesquisadores logo perceberam que genes normais podiam, sob influência de fatores externos, se transformar em oncogenes. E, se a culpa era deles, talvez fosse possível desmascará-los e desativá-los.
Começou então uma nova maneira de encarar a doença.
Um dos caminhos foi olhar para as moléculas produzidas por ordem dos genes: as proteínas. São elas que regem todo o equilíbrio do corpo e podem mandar, por exemplo, uma célula se duplicar rapidamente e virar um tumor.
"Mudanças no DNA alteram a estrutura das proteínas.
Assim, é possível desenvolver remédios que inibem sua ação e corrigir o defeito", explica Luiz Fernando Reis, diretor de pesquisa do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo. Só que a tarefa não é das mais fáceis: cada câncer envolve dezenas de "agentes" diferentes para se desenvolver - e estima-se que existam mais de cem tipos diferentes de câncer.
Ainda assim, um ano depois, o câncer reapareceu - e se espalhou em metástase. A morte era questão de tempo.
Mas não foi o que aconteceu. Dois pesquisadores estavam trabalhando havia cinco anos para tratar especificamente aquele tipo de câncer, que precisa de uma proteína chamada Her-2 para sobreviver.
Eles perceberam uma quantidade enorme dessa molécula do lado de fora das células cancerosas e encontraram um remédio que parecia desligar sua produção. Durante nove semanas, Barbara recebeu a droga recém-descoberta.
O câncer desapareceu, num caso inédito. Assim como o câncer, a cura também estava dentro dela.
Os pesquisadores continuaram com os testes e, em 1998, os EUA autorizaram o uso do medicamento, o Herceptin.
Desde então, apareceram mais de 20 remédios que acertam em cheio as células cancerosas, as terapias-alvo - durante muito tempo a grande esperança da luta contra a doença. Ao contrário da quimioterapia, eles poupam as células saudáveis e destroem apenas as malignas.
Eles inventaram um computador capaz de tirar uma sequência de fotos das proteínas do corpo em ação - algo como ouvir, em tempo real, a conversa entre todas as nossas células, a música tocada na nossa orquestra interna. Só que fazer isso não é uma tarefa fácil.
A cada minuto, as proteínas do seu corpo mudam.
Se você tirar uma amostra de sangue agora e ir ao banheiro e tirar outra depois, as moléculas serão outras.
Pode haver modificações até mesmo durante a análise do sangue no laboratório.
Parecia impossível chegar a resultados confiáveis.
Agora a missão é identificar quem é quem e qual o papel de cada proteína. (Entenda a complexidade abaixo.).
Quando isso acontecer, encontrar remédios que atinjam as células malignas de cada tipo de câncer, em cada pessoa diferente, pode ser moleza.
A esperança é que possamos desenvolver remédios para 10 mil proteínas diferentes, e não só as 500 que pesquisamos hoje em dia. "A terapia-alvo olha só para a doença, para uma célula individual.
A proteômica olha para a doença e para o entorno dela, para seu metabolismo, para todo o conjunto. Então dá para saber qual remédio funciona melhor para você", explica Agus.
Um simples exame de sangue poderá detectar isso. E será possível encontrar um medicamento específico para cada doença, em cada pessoa.
A OMS acredita que o número de mortes por câncer, em 2030, chegará a 17 milhões por ano - pouco mais do que o dobro de casos relatados em 2008.
Culpa do envelhecimento da população. O câncer não vai embora, mas tende a virar cada vez mais uma doença crônica, como o diabetes ou a pressão alta. Que o diga David Servan-Schreiber, neurocientista francês, professor de medicina da Universidade de Pittsburgh.
Em 1992, ele trabalhava em um laboratório de neuroimagem, quando um dos pacientes agendados do dia não compareceu.
Para passar o tempo, ele então decidiu se enfiar na máquina de ressonância magnética e se autoanalisar.
Descobriu um tumor maligno no cérebro. Passou por cirurgia e quimioterapia. Oito anos depois, o câncer voltou.
Depois de mais cirurgias e sessões de rádio e quimioterapia, David decidiu procurar alternativas - não com o objetivo de abandonar os tratamentos tradicionais, mas para aumentar suas chances de cura.
"Fui procurar na literatura científica um jeito de ajudar meu corpo a vencer o câncer. E descobri que o jeito como vivemos e comemos aumenta a incidência do câncer", disse em um seminário há alguns anos.
Ele mudou a dieta e passou a praticar mais exercícios físicos.
Outros pesquisadores também acreditam que o estilo de vida pode prevenir ou ajudar o organismo a lutar contra o câncer.
Uma vida mais saudável e regrada fortalece o corpo - e, assim, o sistema imunológico ganha um empurrãozinho também.
"O câncer não é doença de um órgão só, é o sintoma de um desequilíbrio geral do corpo", diz David Agus.
"Você diz que sua casa 'está com um problema de água', quando vê uma poça de água na sala?
Ou você procura onde está o vazamento? Não basta secar a água, é preciso consertar o encanamento. É o mesmo com o câncer, envolve todo o sistema", diz Agus.
Já fumar é quase suicídio: 90% dos casos de câncer no pulmão vêm do cigarro (dos 10% restantes, quase 4% dos pacientes são fumantes passivos).
O álcool também aumenta em 5% a incidência de câncer de mama.
E outros vários pequenos fatores aumentam os riscos de desenvolver algum tipo de câncer: pesticidas e inseticidas, o contato da pele com o alumínio (atenção com o desodorante), a exposição excessiva ao sol, alguns cosméticos (com parabeno, conservante encontrado em xampus e cremes, ou tolueno, presente em esmaltes, por exemplo), produtos de limpeza, e por aí vai.
Sim, definir horário para cada atividade (principalmente na hora de se alimentar) é tão importante quanto o que comer.
"Se você come todos os dias às 13 horas e, por acaso, hoje vai comer às 15 horas, seu corpo passou duas horas sob estresse", diz Agus.
"O câncer é uma inflamação. Qualquer tipo de estresse, mesmo emocional, faz você produzir substâncias inflamatórias. Então, a substância vai até um órgão qualquer e diz "inflama". É um gatilho para desenvolver um problema", completa Daniela Jobst, nutricionista funcional. E é por isso que Agus recomenda todo cuidado para evitar inflamações: desde vacina contra gripe até aspirinas.
"O que inflama hoje no seu corpo pode ter um resultado pior daqui a alguns anos", diz.
Em 2010, os tumores reapareceram e, um ano depois, o corpo do cientista não resistiu. David nunca abandonou os tratamentos tradicionais (cirurgia, quimioterapia e radioterapia). Mas ele superou as expectativas.
Em geral, após o diagnóstico de tumores malignos no cérebro, apenas 15% das pessoas vivem mais de cinco anos.
Menos de 10% vivem dez anos ou mais. O câncer precisou de 20 anos para derrubar David.
Não dá para falar em derrota.
É isso que prometem os tratamentos personalizados e os que entendem o câncer como um pedaço natural de nós.
Pode ser que um copo de vitamina C seja bom para você e péssimo para mim. Vai ser possível também descobrir a presença de tumores por meio de um simples exame de sangue. Aí, sim, manteremos o equilíbrio completo do seu corpo e, se fizermos tudo direitinho, preveniremos a doença - você vai saber exatamente como restaurar as forças que trabalham contra seu corpo.
É como a medicina oriental, que há séculos entende e trata o organismo como um todo. Por todo esse tempo, estávamos olhando para o lugar errado.
Mas agora estamos acertando a mira.
Marcelo Ferla
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