RETRATO ÍNTIMO (DE TODA
MULHER).
por
Ana Rossato
A dor de ser mulher
nas fotos poéticas de Cris Bierrenbach
A liberação dos dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública,
que apontam o aumento de 18% nos casos de estupro registrados (registrados!) em
2012, ultrapassando até os "comuns” casos de homicídio.
Que as mulheres sofrem
violência todos os dias, nós já sabemos. Apesar disso, ignoramos. Mas é
impossível ignorar o trabalho questionador de Cris Bierrenbach.
A artista, que iniciou sua
carreira como fotojornalista, dá um grande soco no estômago de todos nós com o
seu Retrato Íntimo.
A princípio, as chapas de raio-x com sombras de objetos
perfurantes parecem uma montagem despretensiosa.
Nosso olhar se transforma
quando descobrimos que, na verdade, as chapas são do quadril da própria artista
- e os instrumentos estavam realmente dentro dela.
Fotos de cincos chapas de
raio-x, mostrando uma tesoura, uma faca, um garfo, uma seringa e um fórceps
levam nosso raciocínio a outro patamar e uma sensação angustiante toma conta. A
angústia vira nojo.
Como alguém pode fazer isso deliberadamente?
Mas não é isso que fazem
contra nós todos os dias?
Claro, o trabalho de Cris
choca pelo conteúdo obsceno, pela vagina penetrada pela ponta perfurante. Esse
é um dos vários aspectos da violência: seja ela vinda do objeto externo, seja
ela vinda da própria mão da vítima que o introduziu. A mão que introduz os
objetos atua como elemento ativo da agressão, muito distante da característica
passiva já naturalizada da mulher.
A artista toma para si a tarefa da
mutilação, como um grito de liberdade, mesmo que pelas vias mais difíceis.
O trabalho também inverte
toda a aura voyer que essa imagem poderia evocar. Ao invés da imagem provocar a
imaginação (e consequentemente o prazer) sobre como seria o corpo por cima
daqueles ossos, ela afasta qualquer intenção de uso, mesmo que visual, desse
corpo, exatamente pela utilização dos materiais.
Esses, por sua vez,
despertam as mais variadas interpretações. A escolha do fórceps é bem
interessante, já que o instrumento utilizado na obra é, na medicina, uma
ferramenta para extração dentária (além do outro tipo de fórceps que auxilia a
retirada de fetos em trabalhos de parto complicados).
A mutilação da boca
remete ao silêncio dos oprimidos. Silêncio obrigatório e não deliberado. Ao
introduzir um fórceps em sua vagina, Cris grita contra o silêncio que somos
obrigadas a sustentar. Em prol de...?
O trabalho sintetiza
muitas dores de uma forma poética: a dor da mulher em um ambiente já violento,
se violentando; a dor da inação de quem é golpeado pela imagem e a dor de se
viver em uma sociedade tão cruel.
A sua arte, Cris, é a mais
bela crueldade.
Marcelo Ferla
fonte: Obvius.
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