A Europa danada
Aqueles que conseguem
fugir das tragédias e chegar ao "velho mundo" veem seus sonhos
virarem pesadelo
texto: José Manuel Pureza/Coimbra
As palavras são do Miguel
Portas, escritas em 2009: "A sorte para os danados só pode ser uma sorte
danada. Muitos morrem, pois morrem. Mas não conseguiram muitos mais chegar à
outra margem? Não suplantaram eles o medo da travessia noturna, as correntes
imprevistas, as lanchas policiais e os controles de terra?
Com ele não será
diferente."
Para os mais de 300 somalis
e eritreus que morreram sexta-feira passada à vista de Lampedusa, a sorte
danada não veio. Foi diferente. Ou melhor, foi igual a tantas outras faltas da
sorte danada. Morreram porque quiseram sinalizar pelo fogo que havia um ponto
de vida a esvair-se naquele mar danado. Os que, dos seus barcos, viram as
labaredas, lembraram-se da xenófoba lei Bossi-Fini e ignoraram-nos para não
serem punidos por darem ajuda a imigrantes sem papéis. Morreram mais do que é
normal, número danado. E só por isso - e porque um Papa desassombrado disse a
palavra "vergonha" para denunciar "a indiferença para com os que
fogem da escravatura, da fome, para encontrar a liberdade e encontram a
morte" - é que a falta de sorte veio para as parangonas.
Mas logo regressou a
normalidade: com os cadáveres ainda por enterrar, a justiça italiana acusou os
114 sobreviventes do crime de imigração ilegal que os fará pagar multas de 5
mil euros antes de serem expulsos de volta ao inferno e os Estados europeus não
responderam à solicitação da Comissão de dotações econômicas que permitam
montar um mecanismo de resgate de imigrantes náufragos no Mediterrâneo. Azar
danado...
Tem razão Francisco, o
Papa: esta é uma Europa de vergonha. Em nome de um suposto salvamento
humanitário, junta-se de peito feito aos semeadores da guerra do outro lado do
mar. Como na Líbia, de onde fugiram, desde o início dos combates que a
intervenção da Otan só agravou, mais de 600 mil pessoas.
Espalharam-se por toda
a região, desde o Egito ao Chade, passando pelo Mali ou a Argélia. Todos países
pobres que, no entanto, tiveram a dignidade de manter as suas fronteiras
abertas para acolherem os refugiados fugidos à guerra. Ou como no Iraque, de
onde fugiram 5 milhões de homens e mulheres, refugiando-se em países vizinhos
onde, sempre em nome do salvamento humanitário, a Europa se disponibiliza para
fazer guerras (como na Síria) que alimentam novas fugas em massa para novos
purgatórios. Vidas danadas.
A Europa, essa, fecha-se, paga aos governos da orla
Sul deste mar danado para travarem os que querem vir à busca de vida melhor do
lado de cá, ao mesmo tempo que adota leis criminalizadoras de quem não trouxe
no bolso as certidões e os vistos na hora de fugir aos tiros, à fome ou à pobreza
sem fim.
Sabemos assim o que vale a
liberdade de circulação na Europa. Vale para os capitais e para quem os detém.
Já para os pobres que, do outro lado do mar, dão as poupanças de uma vida a
agenciadores corruptos para comprar esse sonho, ela não é senão isso: sonho
proibido. Que logo vira pesadelo danado.
25 mil mortos na viagem de
uma vida, nos últimos 20 anos, são o rosto desse pesadelo. Mortos de frio, de
asfixia, de afogamento, de assassinato. Tudo por causa de uma terra prometida
que vira terra danada para os sobreviventes que a alcançam e são depois
roubados, violados ou mantidos no cárcere da prostituição forçada.
Uma Europa
que olha para Lampedusa e responde com polícia é estúpida e covarde. Porque
sabe que não há cortejo de naufrágios que demova um jovem condenado a viver na
rua ou a trabalhar em regime de escravatura para ter um prato de comida por dia
de tentar a sorte. Mais falta dela não terá, essa é a sua única certeza.
Danada.
(*) artigo publicado
originalmente no "Diário de Notícias".
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