Os loucos, os normais e o Estado
Os “loucos” são aqueles que dizem mais dos “normais” do que de si
mesmos: o livro 'Holocausto Brasileiro' conta um capítulo tão tenebroso quanto
escondido da história recente do Brasil – e que está longe de ser encerrado
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Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista. Autora de um romance - Uma Duas (LeYa) - e de três livros de reportagem: Coluna Prestes – O avesso da lenda (Artes e Ofícios), A vida que ninguém vê (Arquipélago, Prêmio Jabuti 2007) e O olho da rua - uma repórter em busca da literatura da vida real (Globo).
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Twitter: @brumelianebrum
(Foto: Lilo Clareto/ Divulgação) |
Antônio Gomes da Silva soltou a voz ao empolgar-se com a
Banda da Polícia Militar. Ao seu lado, o funcionário levou um susto:
– Por que você nunca disse que falava?
E Antônio:
– Uai, mas ninguém nunca perguntou.
Ele tinha passado 21 anos como mudo na instituição batizada
de“Colônia”, considerada o maior hospício do Brasil, no pequeno município
mineiro de Barbacena. Em 21 anos, nenhum médico ou funcionário tinha lhe
perguntado nada. Aos 68 anos, Antônio ainda não sabe por que passou 34 anos da
vida num hospício, para onde foi despachado por um delegado de polícia.
“Cada
um diz uma coisa”, conta. Ao deixar o cárcere para morar numa residência
terapêutica, em 2003, Antônio se abismou de que era possível acender e apagar a
luz, um poder que não sabia que alguém poderia ter. Fora dos muros do
manicômio, ele ainda sonha que está amarrado à cama, submetido a eletrochoques,
e acorda suando. A quem escuta a sua voz, ele diz: “Se existe um inferno, a
Colônia é esse lugar”.
Antônio ganhou nome, identidade e história em uma série
excepcional de reportagens. Publicado na Tribuna de Minas, de Juiz de Fora
(MG), o trabalho venceu o prêmio Esso de 2012 e foi ampliado para virar um
livro que chega às livrarias nesta semana. Na obra, a jornalista mineira
Daniela Arbex ilumina o que chamou de “holocausto brasileiro”: a morte de cerca
de 60 mil pessoas entre os muros da Colônia ao longo do século XX. Convidada
por Daniela para fazer o prefácio de seu livro, abri uma exceção e aceitei,
pela mesma razão que me move a escrever esta coluna: a importância do tema para
compreender nossa época.
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O horror: enfiadas num vagão de trem, mulheres como esta tinham as roupas arrancadas e os nomes esquecidos ao entrar no hospício para serem apagadas da história (Foto: Luiz Alfredo/FUNDAC. ) |
Em Holocausto Brasileiro (Geração Editorial), Daniela Arbex
devolve aos corpos sem história, que eram os corpos dos “loucos”, uma história
que fala deles, mas fala mais de nós, os ditos “normais”. Durante décadas, as
pessoas eram enfiadas – em geral compulsoriamente – dentro de um vagão de trem
que as descarregava na Colônia. Lá suas roupas eram arrancadas, seus cabelos
raspados e, seus nomes, apagados. Nus no corpo e na identidade, a humanidade
sequestrada, homens, mulheres e até mesmo crianças viravam "Ignorados de
Tal".
Qual é a história dos corpos sem história? Esta é a questão
que Daniela se propõe a responder pelo caminho da investigação jornalística.
Eram Antônio Gomes da Silva, o mudo que falava, Maria de Jesus, encarcerada
porque se sentia triste, Antônio da Silva, porque era epilético. A estimativa é
de que sete em cada dez pessoas internadas no hospício não tinham diagnóstico
de doença mental.
Quem eram eles, para além dos nomes apagados? Epiléticos,
alcoolistas, homossexuais, prostitutas, mendigos, militantes políticos, gente
que se rebelava, gente que se tornara incômoda para alguém com mais poder.
Eram
meninas grávidas, violentadas por seus patrões, eram esposas confinadas para
que o marido pudesse morar com a amante, eram filhas de fazendeiros que
perderam a virgindade antes do casamento. Eram homens e mulheres que haviam
extraviado seus documentos. Alguns deles eram apenas tímidos. Cerca de 30 eram
crianças.
Qual era o destino de quem o Estado determinava que não
podia viver em sociedade, que era preciso encarcerar, ainda que não tivesse
cometido nenhum crime? Homens, mulheres e crianças às vezes comiam ratos,
bebiam esgoto ou urina, dormiam sobre capim, eram espancados e violados. Nas
noites geladas da Serra da Mantiqueira, eram atirados ao relento, nus ou
cobertos apenas por trapos. Instintivamente faziam um círculo compacto, alternando
os que ficavam no lado de fora e no de dentro, na tentativa de não morrer.
Faziam o que fazem os pinguins imperadores para sobreviver ao inverno na
Antártica e chocar seus ovos, como se viu num documentário que comoveu milhões
anos atrás. Os humanos da Colônia não comoviam ninguém, já que sequer eram
reconhecidos – nem como humanos nem como nada. Alguns não alcançavam as manhãs.
Os pacientes da Colônia morriam de frio, de fome, de doença.
Morriam também de choque. Em alguns dias os eletrochoques eram tantos e tão
fortes que a sobrecarga derrubava a rede do município. Francisca Moreira dos
Reis, funcionária da cozinha, conta no livro sobre o dia em que disputou uma
vaga para atendente de enfermagem, em 1979. Ela e outras 20 mulheres foram
sorteadas para realizar uma sessão de eletrochoques nos pacientes masculinos do
Pavilhão Afonso Pena, escolhidos aleatoriamente para o “exercício”. As
candidatas à promoção cortavam um pedaço de cobertor e enchiam com ele a boca
da cobaia, amarrada à cama. Molhavam a testa, aproximavam os eletrodos das
têmporas e ligavam a engenhoca na voltagem de 110. Contavam até três e
aumentavam a carga para 120. A primeira vítima teve parada cardíaca e morreu na
hora. A segunda, um garoto apavorado aparentando menos de 20 anos, teve o mesmo
destino. Francisca, cuja vez de praticar ainda não tinha chegado, saiu
correndo.
Nos períodos de maior lotação, 16 pessoas morriam a cada
dia. Morriam de tudo – e também de invisibilidade. Ao morrer, davam lucro.
Entre 1969 e 1980, mais de 1.800 corpos de pacientes do manicômio foram
vendidos para 17 faculdades de medicina do país, sem que ninguém questionasse.
Quando houve excesso de cadáveres e o mercado encolheu, os corpos passaram a
ser decompostos em ácido, no pátio da Colônia, na frente dos pacientes ainda
vivos, para que as ossadas pudessem ser comercializadas. Dos homens e mulheres
do hospício, encarcerados pelo Estado e oficialmente sob sua proteção, até os
ossos se aproveitava.
Daniela Arbex salvou do esquecimento um capítulo que muitos
gostariam que seguisse nas sombras, até o total apagamento, no qual parte dos
protagonistas ainda está viva para refletir tanto sobre seus atos quanto sobre
suas omissões. Entrevistou mais de 100 pessoas, muitas delas nunca tinham contado
a sua história. Além de sobreviventes do holocausto manicomial, Daniela escutou
o testemunho de funcionários e de médicos.
Um deles, Ronaldo Simões Coelho,
ligou para ela meses atrás:
“Meu tempo de validade está acabando. Não quero
morrer sem ler seu livro”. No final dos anos 70, o psiquiatra havia denunciado
a Colônia e reivindicado sua extinção: “O que acontece na Colônia é a
desumanidade, a crueldade planejada.
No hospício, tira-se o caráter humano de
uma pessoa, e ela deixa de ser gente. É permitido andar nu e comer bosta, mas é
proibido o protesto, qualquer que seja a sua forma”. Perdeu o emprego.
Em 1979, o psiquiatra italiano Franco Basaglia, pioneiro da
luta pelo fim dos manicômios, esteve no Brasil e conheceu a Colônia. Em
seguida, chamou uma coletiva de imprensa, na qual afirmou: “Estive hoje num
campo de concentração nazista. Em lugar nenhum do mundo, presenciei uma
tragédia como essa”. Hoje, restam menos de 200 sobreviventes da Colônia. Parte
deles deverá ficar internada até a morte: são aqueles que foram tão torturados
por uma vida dentro do hospício que já não conseguem mais viver fora. Parte foi
transferida para residências terapêuticas para reaprender a tomar posse de si
mesma. Sônia Maria da Costa está entre os que conseguiram dar o passo para além
do cárcere. Às vezes ela coloca dois vestidos para compensar a nudez de quase
uma vida inteira.
Ao empreender uma investigação jornalística para escrever
este livro, Daniela leva adiante pelo menos três trabalhos fundamentais de
documentação contemporânea: as 300 fotos feitas pelo fotógrafo Luiz Alfredo,
para a revista O Cruzeiro, a primeira a denunciar a Colônia, em 1961(duas
fotografias deste acervo são publicadas nesta coluna); a reportagem
transformada no livro Nos porões da loucura (Pasquim), do jornalista Hiram
Firmino; e o documentário Em nome da razão, de Helvécio Ratton, filmado em
1979, que se tornou o símbolo da luta antimanicomial.
Ao ler Holocausto Brasileiro – vida, genocídio e 60 mil
mortes no maior hospício do Brasil, é prioritário resistir à tentação de
acreditar que essa história acabou. Não acabou. Ainda existem no Brasil
instituições que mantêm situações semelhantes às da Colônia, como algumas
reportagens têm denunciado – ainda que não de forma maciça como no passado
muito, muito recente, e com nomes mais palatáveis do que “hospício” ou
“manicômio”. As conquistas produzidas pela luta antimanicomial, que botou fim
às situações mais bárbaras, estão hoje sob ameaça de retrocesso. É nesse
momento que entramos nós, a sociedade.
Se não quisermos continuar sendo cúmplices da barbárie
descrita por Daniela Arbex neste livro, é preciso refletir sobre o nosso papel.
É bastante óbvio perceber que fábricas de loucura como a Colônia só persistiram
por um século porque podiam contar com a cumplicidade da sociedade. Mesmo
quando o holocausto foi denunciado na revista de maior sucesso da época, O
Cruzeiro, no início dos anos 60, passaram-se décadas até que a realidade do
hospício começou – muito lentamente – a mudar. E outras gerações foram aniquiladas
entre seus muros. Como é possível? É possível porque a sociedade prefere que
seus indesejados sejam tirados da frente de seus olhos. Não enxergar, para
muitos, ainda é solução. E esta é uma das razões pelas quais a tese do
encarceramento sempre encontra ampla ressonância – e tem sido largamente
manipulada por políticos ao longo da história do Brasil, e inclusive hoje.
Tivesse a sociedade disposta a enxergar o que estava
estampado na revista preferida das famílias brasileiras, em 1961, e muitas
tragédias teriam sido impedidas. Como a de Débora Aparecida Soares. Ela foi um
dos cerca de 30 bebês roubados de suas mães. As mulheres trancafiadas na
Colônia conseguiam proteger sua gravidez passando fezes sobre a barriga, para
não serem tocadas. Mas, logo depois do parto, os bebês eram tirados de seus
braços e doados. Débora nasceu em 23 de agosto de 1984. Dez dias depois, foi
adotada por uma funcionária do hospício. A cada aniversário, sua mãe, Sueli
Aparecida Resende, epilética, perguntava a médicos e funcionários pela menina.
E repetia: “Uma mãe nunca se esquece da filha”.
Em 2005, aos 21 anos, Débora nada sabia sobre a sua origem,
mas não conseguia pertencer de fato à família de adoção. Tentou o suicídio.
Como os comprimidos demoravam a fazer efeito, dirigiu-se à estrada de ferro, a
mesma onde décadas antes havia passado o trem que levara sua mãe ao inferno.
Foi salva por uma amiga, que a carregou para o hospital no qual mais uma
coincidência seria descoberta tarde demais. Dois anos depois, Débora iniciou uma
jornada em busca da mãe. O que alcançou foi a insanidade da engrenagem que
mastigou suas vidas. Sua busca pela mãe é um dos momentos mais trágicos e
reveladores do livro, ao unir passado, presente e futuro no corpo em movimento
desta filha.
Há uma tendência no senso comum de considerar que categorias
como “loucos” são determinadas, imutáveis, indiscutíveis e, principalmente,
isentas dos humores do processo histórico. Não são. Cada sociedade cria seus
proscritos – uma construção cultural que varia conforme o momento e as
necessidades de quem detém o poder a cada época. Há um livro essencial sobre
este tema: Os infames da história – pobres, escravos e deficientes no Brasil
(Faperj/Lamparina). Na apresentação, a autora, a psicóloga Lilia Ferreira Lobo,
que escreve sob a inspiração de Michel Foucault, faz uma descrição primorosa:
“Existências infames: sem notoriedade, obscuras como milhões
de outras que desapareceram e desaparecerão no tempo sem deixar rastro –
nenhuma nota de fama, nenhum feito de glória, nenhuma marca de nascimento,
apenas o infortúnio de vidas cinzentas para a história e que se desvanecem nos
registros porque ninguém as considera relevantes para serem trazidas à luz.
Nunca tiveram importância nos acontecimentos históricos, nunca nenhuma transformação
perpetrou-se por sua colaboração direta. Apenas algumas vidas em meio a uma
multidão de outras, igualmente infelizes, sem nenhum valor. Porém, sua
desventura, sua vilania, suas paixões, alvos ou não da violência instituída,
sua obstinação e sua resistência encontraram em algum momento quem as vigiasse,
quem as punisse, quem lhes ouvisse os gritos de horror, as canções de lamento
ou as manifestações de alegria.”
Aqueles que foram encarcerados dentro da Colônia e de outros
hospícios do Brasil, em algum momento perturbaram alguém ou a ordem instituída
com a sua voz – ou apenas com a sua mera existência. Em vez de serem escutados
no que tinham a dizer sobre a sociedade da qual faziam parte, foram arrancados
dela e trancafiados para morrer – primeiro pelo apagamento simbólico, depois
pela falência do corpo torturado. A pergunta que vale a pena fazer neste
momento, diante da história documentada pelo Holocausto Brasileiro, de Daniela
Arbex, é: quem são os proscritos de nossa época?
Vale a pena repetir que, na Colônia, sete em cada dez não
tinham diagnóstico de doença mental. O diagnóstico, além de não representar
nenhuma verdade absoluta sobre alguém, perde qualquer possível valor num lugar
como o hospício descrito. Sua única utilidade seria como justificativa oficial
para retirar pessoas incômodas do espaço público, aquelas cujo sofrimento não
poderia existir, violando neste ato seus direitos mais básicos. Mas o fato de
70% dos internos não ter nem sequer um diagnóstico é um dado importante para
perceber com que desenvoltura os manicômios serviram – e ainda servem – a um
propósito não dito, mas largamente exercido pelo Estado: o de ampliar as
categorias das pessoas que não devem ser escutadas, calando todos aqueles que
dizem não apenas de si, mas de toda a sociedade.
Vivemos um momento histórico muito delicado,em que está
sendo determinado quais são os novos infames da história – e qual deverá ser o
seu destino. E também em que medida o Estado tem poder sobre os corpos. Me
arrisco a dizer que, se ontem os proscritos eram os epiléticos, as prostitutas,
os homossexuais, as meninas pobres e grávidas, as esposas insubmissas, hoje os
proscritos que se desenham no horizonte histórico são os drogados – e
especificamente os “craqueiros”.
E o destino apresentado como solução tem sido,
de novo, a internação. Inclusive a compulsória. A tarja de dependência química
funciona como um silenciamento, já que não teriam nada a dizer nem sobre a
sociedade em que vivem, nem sobre sua própria vida. São apenas um corpo
sujeitado ao Estado para ser “curado”. E, para a maioria, nada melhor do que
tirá-los da frente – às vezes literalmente.
É bom aprender com a história. Holocausto Brasileiro é um
excelente começo para uma reflexão não apenas sobre o passado, mas sobre o
presente. Como afirma Daniela Arbex: “O descaso diante da realidade nos
transforma em prisioneiros dela. Ao ignorá-la, nos tornamos cúmplices dos
crimes que se repetem diariamente diante de nossos olhos. Enquanto o silêncio
acobertar a indiferença, a sociedade continuará avançando em direção ao passado
de barbárie. É tempo de escrever uma nova história e de mudar o final”.
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Campo de concentração: uma das 300 cenas do holocausto brasileiro, registradas pela primeira vez pelo fotógrafo Luiz Alfredo, para salvar a história do esquecimento (Foto: Luiz Alfredo/FUNDAC) |
Marcelo Ferla
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