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quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Sabia dessa.





A origem.


A luta contra a opressão do poder estabelecido é um momento importante na história das nações, quando se reafirma a identidade dos povos. Para consolidar essa imagem, os líderes desses movimentos são transformados em mitos carregados de simbologias que podem transcender os fatos. Assim foi com nomes como Tiradentes, Simon Bolívar, Che Guevara, Armínio e até Mao Tsé Tung. Esse tipo de conflito está na base da criação dos heróis e encontra grande destaque na cultura pop, em obras tão diversas como Star Wars, Robin Hood, Zorro e Jerônimo - o Herói do Sertão.

No sentido inverso, o mesmo acontece na criação de vilões, que podem representar o poder estabelecido, os que traem o movimento ou, ainda, aqueles que lutam pela mudança e perdem, sem alcançar o seu intento. Foi o caso de Guy Fawkes, integrante da Conspiração da Pólvora, uma ação planejada em 1605 que pretendia explodir o Parlamento inglês, matando todos os seus membros e o Rei da Inglaterra. O objetivo era iniciar um levante, organizado por católicos insatisfeitos com a repressão e a perseguição que sofriam desde a instauração do anglicanismo, em 1534.


Guy Fawkes


Antes de ser levada a cabo, a conspiração foi descoberta e todos os seus participantes, presos e executados. Fawkes não era um dos líderes, mas o encarregado de detonar a pólvora e o primeiro a ser preso, delatando os companheiros ao ser torturado. Com isso, tornou-se a encarnação do traidor. 

O evento acabou sedimentando a imagem dos católicos como inimigos do Estado e passou a ser relembrado na Inglaterra todo dia 5 de novembro, com a celebração da Noite das Fogueiras (Bonfire Night), em que bonecos com vestimenta e visual de Fawkes são surrados e queimados.

A opinião sobre Fawkes começou a mudar em 1840, com a publicação de uma série de histórias, escritas por Willian Harrison Ainsworth. Reunidas em uma trilogia de grande sucesso, ali Guy Fawkes é retratado com simpatia e a tolerância religiosa é a tônica de suas aventuras. Mais tarde, ainda no século 19, ele aparece como herói em livros infantis e revistas baratas de contos de aventura, semelhantes aos pulps americanos.

A grande virada na aceitação pública do personagem, porém, aconteceu bem mais tarde, em 1988, quando a América, e depois o resto do mundo, conhece V de Vingança (V for Vendetta, no original), a minissérie em quadrinhos concebida pelo roteirista Alan Moore e pelo desenhista David Lloyd. A saga havia surgido seis anos antes na Inglaterra, na revista em quadrinhos Warrior, quando Moore ainda não havia criado as obras que o levariam ao estrelato: as lendárias aventuras do Monstro do Pântano ou a minissérie Watchmen para a editora americana DC Comics.

Baseada na luta de um homem contra um estado opressor num futuro não muito distante, Moore desenvolveu uma saga acobertada pelo que parecia ser um desejo de vingança e representada por uma imagem imersa no inconsciente do povo inglês há mais de 350 anos. Com o cancelamento da Warrior, onde foi publicada em capítulos em 26 exemplares, seus fiéis seguidores ficaram na mão até que, com o imenso sucesso de Watchmen e aproveitando o destaque dado ao roteirista, a editora DC comprou os direitos da história e deu a Moore e Lloyd carta branca para que a concluíssem.

Como se passa em 1997, quinze anos no futuro em relação à sua criação, quinze anos no passado enquanto digito este texto, alguns detalhes originais da história ficaram antiquados. Se câmaras de vigilância espalhadas pelas ruas pareciam absurdas em 1982, hoje são lugar comum, mas o cerne da obra está mais atual agora do que na época de seu lançamento – o que a torna ainda mais impactante.

A saga narra a trajetória de “V”, personagem carismático e sem nome com um uniforme e uma máscara inspirada em Guy Fawkes, que elabora e coloca em prática um complexo plano para derrubar o estado totalitário que governa a Inglaterra. Em paralelo, acompanhamos a história de Evey Hammond, uma jovem da classe trabalhadora e sem perspectiva, que luta para sobreviver e vê sua vida ser virada pelo avesso após cruzar seu caminho com o protagonista.

A obra é complexa, ambiciosa e recheada de simbolismos. Há claras referências a obras da literatura como Fahrenheit 451, O Conde de Monte Cristo e 1984. Como em Watchmen, Moore mexe com os cânones do gênero super-herói, mas não para questioná-lo ou subvertê-lo. Aqui ele dá justificativas palpáveis para a máscara, a identidade secreta, a ação à margem da lei, a teatralidade do uniforme, o esconderijo do herói com sua galeria de souvenires, e até para a inclusão de um jovem parceiro para ajudá-lo em suas ações – no caso, parceira. Os temas abordados são bem mais densos e elaborados do que na maioria das aventuras do gênero: o valor da ação do indivíduo para transformar a sociedade; o questionamento do papel do estado na vida do cidadão; a manipulação da mídia; a importância da cultura para a construção dos valores e da noção de liberdade em cada um de nós; o debate entre regimes políticos diametralmente opostos - o totalitarismo e a anarquia.

A HQ foi um grande sucesso, reforçando a fama de Moore e dando mais motivo para que muitos o coloquem no topo da lista dos melhores roteiristas de quadrinhos de todos os tempos. Lloyd também ganhou fama internacional com a minissérie. Além de ter elaborado o visual icônico do personagem central, seu traço sombrio e praticamente sem meios tons ressalta as características opressoras da história. Ainda assim, a fama da obra era restrita aos fãs de quadrinhos. Isso mudou com a adaptação para as telas, com roteiro dos irmãos Wachowski – as mentes por trás da trilogia Matrix.

Bastante fiel à obra original, o filme atualiza algumas situações da trama, como a intervenção americana em outras nações e a substituição da guerra nuclear por um atentado terrorista como motivação do aumento do poder do estado e da consequente perda progressiva das liberdades individuais. Em compensação, a anarquia desaparece dos debates políticos e Evey torna-se mais questionadora e independente.

O filme levou a história a um público mais amplo e deu maior alcance às discussões que levanta. Diversos grupos políticos viram nele uma alegoria sobre governos opressivos e o grupo de hackers Anonymous, que luta pela livre circulação de informações na internet, adotou a máscara de Guy Fawkes pelos mesmos motivos apresentados pelo protagonista: não é o indivíduo que importa, mas as ideias que ele quer transmitir. Ao diminuir a importância do indivíduo, a máscara personifica a ideia e pode ser assumida por qualquer um, independente do tempo e do lugar, como um símbolo de contestação que não pode ser destruído com a eliminação de quem a usa.

Assim, 400 anos depois, Guy Fawkes volta à ativa envolvido numa conspiração menos letal e mais ampla do que a Conspiração da Pólvora. Um retorno que não passaria pela cabeça do mais louco dos profetas. Diferente do que diz a frase famosa, em V, mais importante do que a degustação da vingança é a sua articulação e preparo.


Saiba mais:

As histórias estreladas por Guy Fawkes, lançadas em 1840 e escritas por Willian Harrison Ainsworth, foram publicadas em capítulos na Miscellany Bentley – revista literária que também publicou desta forma o romance Oliver Twist, de Charles Dickens.

No século 19, Fawkes foi retratado como herói em diversas edições de Penny Dreadfuls – revistas inglesas baratas de contos de aventura, semelhantes aos pulps americanos. O personagem retorna em 1982 quando o editor de uma nova revista em quadrinhos – a Warrior - pede a Lloyd uma série estrelada por um personagem que remetesse aos pulps.

O diretor do filme V de Vingança é James McTeigue. Avesso a qualquer adaptação de seus quadrinhos para outro meio de difusão e em briga com a DC Comics, Alan Moore renegou o filme e impediu que seu nome aparecesse nele.

A frase "A vingança é um prato que se pode comer frio" aparece pela primeira vez no romance A Modern Dick Whittington, escrito pelo inglês James Payn e publicado em 1892.

V de Vingança foi lançada pela primeira vez no Brasil em formato de minissérie pela Editora Globo, em 1989. Depois disso, já foi relançada três vezes, encadernada em uma única edição. A mais recente versão, com direito a extras, foi lançada pela editora Panini em 2009.


Texto: Vinicius Marins


Post: Marcelo Ferla


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