FERNANDA TORRES - Chame o
ladrão
A contar pela quantidade
de assaltos a residência, arrastões e paradinhas de sinal de que tenho tido
notícia, o efeito colateral das UPPs começa a se fazer sentir nas ruas do Rio
de Janeiro.
Talvez as estatísticas
provem o contrário. É um parâmetro subjetivo, o de se basear no que se vê ao
redor, mas são tantas ocorrências com pessoas próximas que desconfio não estar
enganada.
Meu filho gosta de andar
de skate na bem-vindíssima pista recém-inaugurada na Lagoa. Por anos, o Gil,
professor que dava aulas na quadra improvisada, organizou abaixo-assinados
pedindo a construção de uma rampa ao lado do antigo bowl. Hoje, centenas de
praticantes lotam o espaço semanalmente. A iniciativa da população e a boa
escuta das autoridades funcionaram harmonicamente. Tudo exemplar.
O problema é que o lugar
virou um foco de assaltos leves que visam, justamente, a moleques como meu
filho.
Um amigo dele já foi
abordado tantas vezes que criou técnicas para escapar.
Outro dia, mentiu
dizendo que havia acabado de entregar tudo a um assaltante. O bandido acreditou
e o deixou andar. Até os larápios estão conscientes de que a concorrência anda
acirrada. De outra vez, esse mesmo menino se livrou da limpa porque lembrou o
pivete de que havia pago um refrigerante a ele dois dias antes. E ainda teve um
homem que o mandou deixar o par de tênis atrás da árvore e sair descalço. Esse
se autoproclamava o Robin Hood da Rodrigo de Freitas e não deu espaço para
conversa.
Tenho um casal de amigos
que mora há mais de dez anos em uma casa nas cercanias da Rocinha, em São
Conrado. Eles jamais haviam enfrentado invasões até que, um mês atrás, deram de
cara com um vulto tentando escalar a palmeira para alcançar o 2º andar. A casa,
agora, está cercada por arame farpado, um rottweiler bebê foi agregado à
família e um vigia faz a ronda 24 horas por dia.
Não é muito diferente das
paliçadas dos portugueses do Brasil Colônia, em pânico com os ataques dos
nativos comedores de gente.
Do lado de cá da divisa
dos Dois Irmãos, a casa de outro conhecido, no Alto da Gávea, foi a única que
só sofreu tentativa de roubo; os dois vizinhos foram amarrados e depenados em
duas madrugadas seguidas. Um dos ladrões teria dito que não gostava do que
estava fazendo, mas, no momento, não lhe sobrava outra opção.
O fim do lorde da
bandidagem, que controlava o território com poderes de rei e coração de
carrasco, sofreu um baque considerável. A velha ordem de não criar problema com
a vizinhança acabou. Agora, o cada um por si e Deus contra todos virou o lema
da contravenção.
São Paulo, ao contrário,
enfrenta investidas armadas proporcionais ao seu poderio. São ações organizadas
e execuções precisas. Apavorantes. A violência de São Paulo cresceu em
estratégia; a do Rio, tudo indica, ficou mais primitiva.
Na Rua Marquês de São
Vicente tem um homem atrás de um poste no longo muro da PUC especializado em
furtar estudantes que descem a ladeira em direção à zona comercial do bairro. Ele
trabalha no local. Como policiar tantas esquinas?
Para espanto meu, um amigo
francês afirmou que nenhuma mulher anda sozinha à noite em Paris. Não visito a
Cidade Luz há um bom tempo e, se não fosse pelo alerta, certamente me
arriscaria a levar facadas no Quartier Latin.
O perigo das ruas é a única real
frustração que sinto de viver no Brasil. Andar sem medo era um dos grandes
prazeres da velha Europa e da rica América. Não mais.
A civilização trouxe a
ilusão de que o pavor atávico de fazer parte do cardápio habitual dos grandes
carnívoros havia chegado ao fim. Pura ilusão. Hoje, as leis anti-imigração do
Primeiro Mundo e os condomínios fechados do Brasil são duros paliativos para a
mesma desgraça.
O verso “Chame o ladrão”
da canção se referia ao pavor da repressão policial durante a ditadura militar.
Diante dela, melhor o ladrão. Quarenta anos depois, o contexto muda, mas os
versos continuam oportunos. Com tristeza, dá vontade de chamar o ladrão para
organizar o exército de desesperados que se viu obrigado a viver de bico.
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