13
anos, drogada, prostituída: a vida de Christiane F. 40 anos depois de seu livro.
por: Vitor Paiva
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Christiane Vera
Felscherinow, a Christiane F., em 2013
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O muro de Berlim não havia
completado um ano de sua construção e a Alemanha era então o epicentro
simbólico da guerra fria quando Christiane Vera Felscherinow nasceu, em 20 de
maio de 1962, na cidade de Hamburgo – a cerca de 288 quilômetros da então
dividida capital alemã.
Hamburgo fazia parte da Republica Federal da Alemanha,
ou Alemanha Ocidental, o lado “capitalista” do muro.
Tendo o segundo maior
porto da Europa e sendo a segunda maior cidade do país, à época Hamburgo vivia
um efervescente e complicado momento sociocultural, com a pobreza e a
criminalidade em alta, ao redor de uma forte e interessante cena musical para
as insurgentes bandas de rock de então.
Uma das bandas que mais se
apresentaram na cidade durante o início dos anos 1960 foram os Beatles, então
somente um esforçado e talentoso novo grupo do noroeste da Inglaterra.
A banda
se apresentaria em Hamburgo entre 1960 e o fim de 1962 mais de 250 vezes –
quando Christiane completou 7 meses de idade, em dezembro de 1962, os quatro
rapazes de Liverpool tocaram por lá pela última vez antes do sucesso, deixando
Hamburgo para ganharam o mundo nos meses seguintes.
Curiosamente a música teria
um papel importante na vida de Christiane, mas a herança mais direta que se
poderia supor de sua infância em Hamburgo seria o submundo da violência, da
criminalidade e das drogas que tomavam conta de sua cidade natal quando os Beatles
se apresentavam por lá – e quando ela nasceu.
A jovem alemã cresceria rumo a um
destino especialmente precoce, marcado pelas drogas e pela prostituição antes
mesmo de completar 14 anos.
Outra marca de seu destino, porém seria o sucesso
de seu relato, contando justamente essa dura história de infância e
adolescência, no livro autobiográfico Eu, Christiane F., 13 anos, drogada,
prostituída.
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Christiane aos 13
anos, em foto que se tornaria capa de seu livro
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O livro, lançado há 40 anos,
venderia milhões de cópias instantaneamente, chocando e fascinando não só a
austera sociedade alemã do final dos anos 1970, como a todo o mundo, contando
quatro anos da vida de Christiane – dos 12 aos 15 anos de idade – atravessados
entre o vício de heroína e outras drogas e a prostituição infantil, e revelando
a dura realidade das ruas da Berlim ocidental da época, onde ela vivia.
Três
anos depois de seu lançamento, em 1981 a história seria adaptado para um filme,
estrelado por David Bowie, também alcançando vasto sucesso e transformando a
personagem de Christiane em um ícone do aspecto pop que as drogas podem trazer,
assim como do lado sombrio – e real – que sua história revelava sobre a
juventude do mundo todo.
Christiane se tornava ao mesmo tempo uma junkie star e
uma bandeira sobre o mal das drogas; uma estrela e uma denúncia.
Aos 15 anos, época em que
escreveu o livro com dois jornalistas
Por trás de toda essa
incrível e assombrosa trajetória, havia, no entanto, uma pessoa – uma menina,
passando por tais imensas dores do crescimento sob os holofotes do mundo,
lutando contra o vício e as curvas de sua própria história, migrando
violentamente da pobreza extrema e da dureza das ruas de Berlim para a fama e a
riqueza sem qualquer preparo ou apoio.
Quando livro foi lançado, Christiane
tinha somente 16 anos – quando o filme chegou às telas, ela tinha 19.
Ninguém
acreditava, então, que aquela jovem perdida sobreviveria muitos anos – e até
hoje não acreditam que ela ainda está viva.
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Em entrevista aos 18
anos
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Os 40 anos de seu histórico
relato (lançado em 1978, com mais de 5 milhões de cópias vendidas desde então)
são, no entanto, também símbolo de seus 56 anos de vida, a serem completados em
maio próximo.
Christiane Vera Felscherinow segue viva, ainda lutando contra as
drogas, vivendo dos direitos de sua história, com uma das mais famosas
histórias de vício em todo o mundo.
“Eu sou e vou continuar
sendo uma junkie star”, ela diz, a respeito do fato das pessoas até hoje lhe
pedirem autógrafos e fotos.
“Um animal de feira”.
Quando tinha somente 6 anos
de idade sua família se mudou para Berlim, e foi aí que tudo desmoronou.
Filha
de um pai abusivo e de uma mãe negligente, com a separação de seus pais
Christiane passou a se aventurar pelas pobres e perigosas ruas da cidade.
Antes
dos dez anos já estava envolvida em pequenos furtos e começando a beber.
Aos 12
anos consumia haxixe e LSD, e conheceu Detlef, seu namorado de então (assim
como diversos outros personagens imortalizados no livro) na boate Sound.
Aos
13, descobriu a heroína em um show de David Bowie, e aos 14 já se prostituía.
Aos 15, encontrou-se com os jornalistas Kai Herrmann e Horst Rieck e com eles
dividiu sua história de vida.
O livro seria desenvolvido em uma parceria entre
os jornalistas e Christiane.
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Berlim em meados dos
anos 1970, com a entrada da boate Sound à direita
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O livro revelou as
experiências de uma geração na Alemanha que, em muito, refletia as experiências
de diversos jovens pelo mundo.
Ela e outros adolescentes frequentavam a estação
Bahnhof Zoo, próxima ao zoológico, na região mais decadente de Berlim, onde se
prostituíam, comprovam, vendiam e consumiam drogas.
O estilo cru e direto com
que o livro foi escrito – a força da franca e fluente exposição de uma vivência
tão dura e intensa por uma criança, como que revelando um lado real, assustador
inclemente e especialmente próximo da juventude de modo geral – não só ajudou
no sucesso da publicação como fez de Christiane F…. um importante documento
sobre o tema.
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A estação de metrô
Bahnhof Zoo no final dos anos 1970
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Desde o lançamento e até
hoje Christiane admite que jamais esteve totalmente longe das drogas – entre
períodos limpos e recaídas intensas, em 2013 ela confirmou que seguia bebendo,
fumando maconha e lutando contra o vício em metadona.
Mesmo se livrando
eventualmente da heroína, o álcool e a cocaína seguiram como seus parceiros de
vida – ela confirma que jamais quis de fato desistir das drogas.
“Eu não
conheço nada além disso”, afirmou há cinco anos, quando do lançamento de seu
último livro, Eu, Christiane F., a vida apesar de tudo – espécie de segunda
biografia, em continuação primeiro, lançada em 2013.
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A atriz Natja
Brunckhorst vivendo Christiane em cena do filme baseado no livro
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É difícil encontrar notícias
a seu respeito depois de 2013, quando ganhou a atenção da mídia novamente por
conta do lançamento, mas não é difícil supor que sua vida siga sendo de luta e,
em paradoxo, resignação diante do vício – talvez com o aniversário de seu
primeiro livro ela volte a atualizar sua história.
Cinco anos atrás ela dizia
que ainda bebia e fumava maconha pois, sem isso, “a vida na Terra não seria
suportável”.
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Christiane no início
dos anos 1980, já após o sucesso de seu relato
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Depois do sucesso,
Christiane contraiu hepatite C em uma seringa compartilhada, no início dos anos
1980, teve cirrose hepática, foi presa algumas vezes, teve um filho em 1996,
perdeu, reconquistou e novamente perdeu a custódia de sua criança.
Na abertura
de seu último livro, ela diz:
“Eu morrerei em breve.
Eu sei disso.
Mas eu não deixei
de fazer nada em minha vida.
Estou bem com isso.
Então, eu não recomendaria:
essa não é a melhor vida para se viver, mas é a minha vida”.
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Em sua casa, à época
de seus 18 anos
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E, sendo sua essa vida, ela
luta para não ser aprisionada na personagem que foi criada no imaginário
coletivo a partir do que viveu e contou.
“O que mais me incomoda é
essa coisa sobre Christiane F.
‘Será que ela está limpa agora, ou não?’.
Como
se não houvesse nada mais para ser dito sobre mim.
E eu não consigo ficar
limpa.
É o que todos sempre esperaram de mim.
Os médicos reclamam, mas eu tenho
uma vida, no fim das contas”, ela diz, expondo o paradoxo a respeito da grande
vivência de sua história ser também seu maior problema.
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Cena do filme
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E é a partir de tal paradoxo
que sua vida se constituiu, para o mal e para o bem.
Talvez não reconhecer a
ambiguidade do uso de drogas em geral seja um dos mais graves e alienantes
preconceitos ao se pensar sobre o tema – e que a história de Christiane ajuda a
iluminar.
Para além da questão policial e de sua relação direta com a violência
(provocada não pelos consumidores, mas sim pela proibição e falta de
regulação), as drogas podem ser, para muitos, um alento, algo que lhes permite
atravessar as contrariedades que a vida sempre tem.
Seu perigo está justamente
no imenso prazer e alívio que podem trazer – no quanto elas podem fazer bem,
enquanto ao mesmo tempo podem destruir a vida de quem as usa em excesso.
Assim, uma das mais famosas
viciadas em todos os tempos admitiu, em 2013, não carregar nenhum arrependimento.
“A heroína é parte de quem eu sou, como poderia me arrepender?
Ela me fez rica,
me fez famosa.
Eu viajei no jatinho do David Bowie, e tudo por causa dela”.
Christiane F. se tornou uma referência para a moda, a cultura pop e jovem, e um
personagem importante no debate sobre as drogas e sua época.
Por trás da personagem,
porém, Christiane Vera Felscherinow seguiu e segue sua vida, lutando contra o
vício que ela própria admite que a ajuda a ainda estar aqui, tentando ter uma
vida que não se defina somente pelas substâncias que ingeriu e ingere, mas sim
por quem ela é – uma mulher corajosa e forte, que decidiu oferecer ao mundo as
próprias feridas para que, quem sabe, outras como ela não precisem atravessar o
mesmo calvário pesado.
A vida, apesar de tudo –
como seu livro diz – pode ser sempre mais do que somente nossas dores e vícios.
post: Marcelo Ferla
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