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quarta-feira, 11 de janeiro de 2017
Jornalista brasileira registra o 'horror' de uma caminhada de duas horas.
Jornalista brasileira
registra o 'horror' de uma caminhada de duas horas.
Jornalista
faz experimento e sofre humilhação e assédio por duas horas andando em
Teresina.
Experiência filmada com câmera escondida estimula a reflexão sobre o
machismo de todos os dias.
por Sávia Barreto, O Olho
/ Teresina-PI
Eram 10h36 de uma manhã de
sábado.
Teresina, quente, tão quente, que não sei se suei apenas de calor ou de
terror.
Vestida de uma calça jeans e uma blusa preta, andei só e calada,
olhando preocupada, muitas vezes, para os lados e sem o sorriso que pouco antes
eu distribuía aos meus colegas de redação (vídeo abaixo).
Duas horas e pelo menos 15
assédios depois sinto bolhas nos pés e dor na alma: o machismo de todo dia,
assim, filmado e legendado, parece que expõe mais as vísceras de uma sociedade
desigual em gêneros, onde a mulher está vulnerável a assobios, olhares e
expressões sussurradas por desconhecidos como “gostosa”, “bundinha” e
“delícia”.
O EXPERIMENTO
Tirando o microfone
escondido na bolsa, usei o tipo de roupa que eu e milhares de teresinenses (incluindo
as mães, filhas e irmãs dos meus assediadores) usamos todos os dias para ir à
rua.
Meu produtor caminhava à frente, sempre a alguns passos de distância,
permitindo me filmar com uma câmera escondida acoplada em sua mochila.
Vídeo:
Mesmo acompanhada de um
produtor e do motorista que compõem a equipe do O Olho, tive a sensação de leve
desamparo por estar “sozinha”, sujeita aos assédios dos quais eu fugia sempre
que precisava estar em algum local público, passando por homens.
Meu temor não era motivado
por me considerar gostosa, linda e estonteante (porque não sou e porque mesmo
uma mulher que é, não merece receber nenhum tipo de agressão verbal e sexual),
mas porque basta ser mulher, estar andando sozinha nas ruas, que quase
prontamente alguns homens sentem-se no direito de avaliar a forma física e até
de fazer convites sexuais.
Lá está você pagando o
plano de saúde da sua mãe no Centro da cidade, quando alguém que você nunca
viu, e que sequer cruzou os olhos, alheio aos seus problemas e vontades, grita:
“Vamos lá em casa delícia?”.
Não é um convite, é uma invasão.
A “CARCAÇA” QUE VESTIMOS
PARA IR À RUA
Antes de sair à rua, é
preciso vestir, além da roupa, um outro acessório, quase invisível, mas
essencial se você for mulher: uma expressão fechada, de quem não quer conversa.
Nós, mulheres, costumamos mantê-la enquanto temos que perambular por espaços
públicos, principalmente se estivermos sozinhas e houver homens desconhecidos
por perto.
É tolhendo pequenas
liberdades diárias femininas, inclusive a de sorrir e se vestir como bem
entender, que o machismo vai trancando as mulheres em calabouços pisicológicos.
“Não olhe para os lados,
evite passar perto de homens, se falarem algo sobre seu corpo, não responda”.
Esse não é um ensinamento passado verbalmente de mãe para filha, ou entre
amigas.
É um comportamento quase intrínseco à quem pertence ao sexo feminino no
mundo ocidental.
Tanto faz se você está numa pequena e quente capital no
Nordeste brasileiro, ou na fria Nova York norte-americana.
É quase meio-dia. Passo
por vários homens na porta de um bar e sinto um grande alívio por ter sido
apenas olhada, como se passasse por um raio-X de aeroporto, mas sem nenhum
comentário verbal.
Mais a frente, ainda
degustando uma tranquilidade que eu mal sabia que seria fulgaz, passo por um
homem branco de uns 50 anos.
Ele fala baixo, mas eu ouço: “b******** gostosa”.
Gelo imediatamente, fico com as mãos tensas e tenho vontade de chorar.
Parece que volto no tempo
e lembro de ter 20 anos, descer do ônibus no bairro Saci, zona Sul de Teresina,
enquanto caminho várias quadras até minha casa.
Também era meio-dia e eu vinha
da Universidade Federal do Piauí, onde cursava Ciências Sociais.
Aquele caminho
era comum para mim, e quase todo dia eu o fazia intercalando ônibus e longas
caminhadas até minha casa.
Naquele dia, há sete anos,
um homem pára, pergunta as horas, eu olho para o relógio e antes de responder
ele coloca a mão debaixo da minha saia, fala “b*********” e sai correndo.
Fico
atônita.
Ainda tenho forças para gritar enquanto ele corre para a outra rua:
“Infeliz, maldito”, falo bem alto com a revolta, humilhação e ódio engasgados.
Chego em casa me culpando
por ter respondido a um estranho na rua.
Eu era jovem demais para saber que a
culpa não era minha.
Só muitos anos depois consigo contar essa história para
meu noivo, amigos e amigas.
As mulheres, quando ouvem,
solidarizam-se imediatamente e passam a relatar também suas histórias.
S.R.,
uma amiga jornalista, por exemplo, conta que chegou a ameaçar com pedras um
homem que a assediou nas ruas a chamando de “gostosa”.
Os homens, por outro
lado, ouvem a mesma história e acabam rindo.
Acham que é apenas uma anedota.
Não é.
Violência sexual não tem graça.
COMO SE SENTIR UM “NADA”
Logo eu, que me considero
uma jovem mulher de 27 anos, empoderada, firme, forte (quase sempre), me senti
um “nada”.
Ocupo um cargo de chefia em um universo onde 80% dos colegas de
profissão em posição de comando são homens.
Não choro fácil e não abaixo a
cabeça porque alguém não gostou de algo que fiz ou disse. Na rua, porém, eu
baixei.
Quando passava por grupos
de homens, tentava instintivamente atravessar a rua e ficar o mais longe
possível deles, mesmo sabendo que minha missão nessa reportagem era seguir em
frente e registrar caso fosse importunada.
Homens bem arrumados,
homens desarrumados, mais novos, mais velhos, brancos, negros, mulatos.
Não há
um perfil para o assediador.
Em comum, a sensação de impotência.
No assédio,
ficou claro para mim, há uma relação de poder em que se tenta colocar as
mulheres em uma posição submissa.
Na rua, dificilmente encaro
alguém, olho nos olhos, nada que possa ser interpretado erroneamente como um
“convite”.
Percebo nas mulheres próximas a mim, uma espécie de solidariedade
quando tenho que passar por grupos de homens.
Uma troca de olhares assustados
antecedem meus passos, como se me perguntassem: “Menina, tem certeza que vai
por aí?”.
Sim, eu poderia responder,
retrucar, e algumas vezes já fiz isso na rua (quando estava perto de outras
pessoas a quem poderia recorrer para manter minha segurança).
O medo de ser
seguida e (mais) agredida é ainda maior, e na maior parte das vezes as mulheres
se calam já que muitos homens, ao ouvir um “não”, se revoltam, xingam e partem
para a violência.
Quando a experiência chega
ao fim, me sinto exausta.
Não pelos calos no pé ou pela roupa quase ensopada de
suor.
O que cansa é todo o desgaste emocional de sentir medo e vulnerabilidade
por ser mulher.
Um exemplo disso foi
retratado em 2012, quando uma jovem belga de 25 anos decidiu gravar o que ouvia
dos homens enquanto caminhava pelas ruas de Bruxelas – e principalmente de sua
vizinhança, em um bairro pobre da cidade.
O resultado foi o documentário Femme
de la Rue (Mulher da Rua, em tradução livre). Um dos homens chega pelas suas
costas, dizendo que ela é linda.
Outro, simplesmente a cruza na
calçada, vira o rosto em sua direção e a chama de “vadia”.
COMENTÁRIOS ABUSIVOS NÃO
SÃO CANTADAS
Comentários sexuais
abusivos e ameaçadores não são cantadas.
Assédios sexuais em
locais públicos são um problema social.
Não tem a ver com “fulano de tal” que é
grosseiro, ou aquele outro indivíduo que é machista.
Não são casos isolados.
Cada “fiu-fiu” e “meu bem”
direcionados à mulheres na rua que não são conhecidas de quem profere o
“elogio” é, na verdade, apenas mais um sintoma de uma cultura que incentiva e
considera a misoginia (a repulsa, desprezo ou ódio contra às mulheres) algo
inofensivo.
E mesmo essa sendo minha
opinião pessoal, em um texto assinado por mim contando uma experiência pessoal
com todos os viés decorrentes dela, não estou só nessa ideia.
Pesquisa
divulgada em 2013 aponta que 83% das mulheres brasileiras não gostam das
cantadas de rua.
A pesquisa feita pelo site Olga, aponta que quase oito mil
mulheres responderam o questionário elaborado pela jornalista Karin Hueck, e
99,6% relataram já terem sofrido assédio na rua.
“A gente acha que o
machista e o assediador é esse homem sem rosto, esse homem desconhecido que
abusa das mulheres nas ruas escuras.
Não é.
Esses assediadores são pais, são
filhos, são profissionais competentes que estão mais perto do que a gente
imagina. […]
Por quê?
Porque o assédio é legítimo culturalmente.
Ele é
entendido como algo que faz parte do homem.
Ele é entendido como algo bom, como
flerte.
Mas não é”, relata a jornalista Juliana de Faria em sua palestra no TED
São Paulo.
Ela é criadora de uma
página no Facebook chamada “Chega de Fiu Fiu”, que expõe, entre outras
situações, atos que as mulheres deixam de fazer por conta do assédio.
Um
exemplo disso é que sair de casa vestindo o que quiser, independente do destino
e do meio de transporte escolhido, ou então olhar quando alguém lhe chama na
rua.
“Ah mas eu sou homem e
adoro quando uma mulher me ‘elogia’ na rua”, pode argumentar um.
A diferença é
que crimes sexuais contra mulheres são estratosfericamente maiores do que em
relação aos homens.
Numericamente, temos motivos para temer.
É possível, sendo homem,
ouvir um “elogio” sem medo de ser perseguido, seguido ou até mesmo violado
contra a própria vontade – como ocorre com muitas mulheres.
Em outubro de 2013, a
estudante Anne Melo, chegou a ser presa por agentes da Tropa de Choque após ser
chamada por um dos policiais de “gostosa”, durante o protesto realizado no
centro do Rio de Janeiro.
Um vídeo divulgado nas
redes sociais mostra o momento em que a jovem foi detida sob acusação de
desacato.
Segundo a estudante relatou, depois de receber o suposto “elogio” de
um PM que estava na garupa de uma moto do Choque, ela respondeu ao policial de
forma “agressiva”.
Terminou presa por não ter aceitado a “gracinha” proferida
por uma figura de autoridade.
“ASSEDIE A SUA MÃE”
Uma campanha (relembre
aqui) realizada pela empresa Everlast do Peru, selecionou homens que, constantemente,
assediavam mulheres na rua e localizou suas mães.
Decidindo por participar da
campanha, elas foram produzidas com acessórios como perucas e vestimentos
tornando-as mais jovens e quase irreconhecíveis.
Resultado: foram alvos de
cantadas dos próprios filhos.
Ao descobrirem a real identidade de quem eles
estavam cantando, os assediadores pediram desculpas e alegaram arrependimento e
constrangimento.
A pergunta que não quer calar: homens que assediam mulheres
gostariam que suas mães ou filhas fossem assediadas da mesma forma?
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