Eu morava numa favela de
Vitória, o Morro da Fonte Grande. Num domingo, 3 de dezembro de 1972, eu e meu
companheiro na época, Marcelo Netto, estudante de Medicina, acordamos cedo para
ir à praia do Canto, próxima ao centro da capital. Acordei para ir à praia e
acabei presa na Prainha.
É o bairro que abriga o Forte de Piratininga, essa
construção bonita do século 17.
Ali está instalado o quartel do 38º Batalhão de
Infantaria do Exército, do outro lado da baía.
Eu tinha dado quatro
plantões seguidos na redação da rádio Espírito Santo e já tinha quase um ano de
profissão.
Eu vestia uma camisa branca larga, de homem, sobre o biquini
vermelho.
Caminhando pela Rua Sete em direção à praia, alguém gritou de
repente:
– Ei, Marcelo?
Nos viramos e vimos dois
homens correndo em nossa direção com armas.
Eu reconheci um rosto que vira em
frente à Polícia Federal.
Meu ônibus sempre passava em frente à sede da PF e eu
tentava guardar os rostos.
– É a Polícia Federal – avisei ao Marcelo
Em instantes estávamos
cercados.
Apareceram mais homens, mais um carro. Voltei a perguntar:
– O que está acontecendo?
Eles nos algemaram e
empurraram o Marcelo para o camburão.
Era uma camionete Veraneio, sem
identificação.
Eu tive uma reação curiosa: antes que me empurrassem sentei no
chão da calçada e comecei a gritar, a berrar como louca, queria chamar a
atenção das pessoas na rua.
Mas ainda era cedo, manhã de domingo, havia pouca
gente circulando.
Achava que quanto mais gente visse aquela cena, mais chances
eu teria de sair viva.
Como eu berrava, me puxaram pelos cabelos, me agarraram
para me colocar no carro. Eu, ainda com aquela coisa de Justiça na cabeça,
reclamei:
– Moço, cadê a ordem de
prisão?
O homem botou a
metralhadora no meu peito e respondeu com outra pergunta:
– Esta serve?
As algemas eram
diferentes, eram de plástico, e estavam muito apertadas, doíam no pulso.
Viajamos sem capuz, eu e Marcelo, em direção a Vila Velha, onde fica o quartel
do Exército.
Eu ainda achava que não era nada comigo, que o alvo era o Marcelo.
Ele estava no quarto ano de Medicina e tinha acabado de liderar a única greve
de estudantes do país daquele ano, que trancou por dois dias as aulas na
universidade de Vitória e paralisou os trabalhos no Hospital de Clínicas.
Achei
que estava presa só porque estava indo à praia com o Marcelo.
A Veraneio entrou no pátio
do quartel, o batalhão de infantaria.
Nos levaram por um corredor e nos
separaram.
Marcelo foi viver seu inferno, que durou 13 meses, e eu o meu.
Sobre
mim jogaram cães pastores babando de raiva.
Eles ficavam ainda mais enfurecidos
quando os soldados gritavam:
“Terrorista, terrorista!”.
Pareciam treinados para
ficar mais bravos quando eram incitados pela palavra maldita.
De repente, os
soldados que me cercavam começaram a cantar aquela música do Ataulfo Alves:
“Amélia não tinha a menor vaidade/ Amélia é que era mulher de verdade”.
Só
então percebi que minha prisão não era um engano.
“Amélia” era o codinome que o
meu chefe de ala no PCdoB tinha escolhido pra mim:
“Você, a partir de agora,
vai se chamar Amélia”.
Quis reagir na hora, afinal não tenho nada de Amélia,
mas não quis discordar logo na primeira reunião com o dirigente.
O comandante do batalhão
era o coronel Sequeira [tenente-coronel Geraldo Cândido Sequeira, que exerceu o
comando do 38º BI entre 10 de março de 1971 a 13 de março de 1973], que fingia
que mandava, mas não via nada do que acontecia por lá.
O homem que de fato
mandava naquele lugar, naquele tempo, era o capitão Guilherme, o único nome que
se conhecia dele.
Ele era o chefe do S-2, o setor de inteligência do batalhão.
Todos os interrogatórios e torturas estavam sob a coordenação dele.
Ele
pessoalmente nada fazia, mas a ele tudo era comunicado.
Nesse primeiro dia me
deu um bofetão só porque eu o encarei.
– Nunca mais me olhe
assim! – avisou.
Fui levada para uma grande
sala vazia, sem móveis, com as janelas cobertas por um plástico preto.
Com a
luz acesa na sala, vi um pequeno palco elevado, onde me colocaram de pé e me
mandaram não recostar na parede.
Chegaram três homens à paisana, um com muito
cabelo, preto e liso, um outro ruivo e um descendente de japonês.
Mandaram eu
tirar a roupa. Uma peça a cada cinco minutos. Tirei o chinelo.
O de cabelo
preto me bateu:
– A roupa! Tire toda a
roupa.
Fui tirando, constrangida,
cada peça.
Quando estava nua, eles mandaram entrar uns 10 soldados na sala.
Eu
tentava esconder minha nudez com as mãos.
O homem de cabelo preto falou:
– Posso dizer a todos eles
para irem pra cima de você, menina. E aqui não tem volta. Quando começamos,
vamos até o fim.
Os soldados ficaram me
olhando e os três homens à paisana gritavam, ameaçando me atacar, um clima de
estupro iminente.
O tempo nessas horas é relativo, não sei quanto tempo durou
essa primeira ameaça. Viriam outras.
Eles saíram e o homem de
cabelo preto, que alguém chamou de Dr. Pablo, voltou trazendo uma cobra grande,
assustadora, que ele botou no chão da sala, e antes que eu a visse direito
apagaram a luz, saíram e me deixaram ali, sozinha com a cobra.
Eu não conseguia
ver nada, estava tudo escuro, mas sabia que a cobra estava lá.
A única coisa
que lembrei naquele momento de pavor é que cobra é atraída pelo movimento.
Então, fiquei estática, silenciosa, mal respirando, tremendo.
Era dezembro, um
verão quente em Vitória, mas eu tremia toda.
Não era de frio.
Era um tremor que
vem de dentro.
Ainda agora, quando falo nisso, o tremor volta.
Tinha medo da
cobra que não via, mas que era minha única companhia naquela sala sinistra.
A
escuridão, o longo tempo de espera, ficar de pé sem recostar em nada, tudo
aumentava o sofrimento.
Meu corpo doía.
Não sei quanto tempo durou
esta agonia. Foram horas.
Eu não tinha noção de dia ou noite na sala escurecida
pelo plástico preto.
E eu ali, sozinha, nua. Só eu e a cobra. Eu e o medo.
O
medo era ainda maior porque não via nada, mas sabia que a cobra estava ali, por
perto.
Não sabia se estava se movendo, se estava parada.
Eu não ouvia nada, não
via nada.
Não era possível nem chorar, poderia atrair a cobra.
Passei o resto
da vida lembrando dessa sala de um quartel do Exército brasileiro.
Lembro que
quando aqueles três homens voltaram, davam gargalhadas, riam da situação. Eu
pensava que era só sadismo.
Não sabia que na tortura brasileira havia uma
cobra, uma jiboia usada para aterrorizar e que além de tudo tinha o apelido de
Míriam.
Nem sei se era a mesma.
Se era, talvez fosse esse o motivo de tanto
riso. Míriam e Míriam, juntas na mesma sala. Essa era a graça, imagino.
Dr. Pablo voltou, depois,
com os outros dois, e me encheu de perguntas.
As de sempre: o que eu fazia,
quem conhecia.
Me davam tapas, chutes, puxavam pelo cabelo, bateram com minha
cabeça na parede. Eu sangrava na nuca, o sangue molhou meu cabelo.
Ninguém
tratou de minha ferida , não me deram nenhum alimento naquele dia, exceto um
copo de suco de laranja que, com a forte bofetada do capitão Guilherme, eu
deixei cair no chão.
Não recebi um único telefonema, não vi nenhum advogado,
ninguém sabia o que tinha acontecido comigo, eu não sabia se as pessoas tinham
ideia do meu desaparecimento.
Só três dias após minha prisão é que meu pai
recebeu, em Caratinga, um telefonema anônimo de uma mulher dizendo que eu tinha
sido presa.
Ele procurou muito e só conseguiu me localizar no fim daquele
dezembro.
Havia outros presos no quartel, mas só ao final de três semanas fui
colocada na cela com a outras presas: Angela, Badora, Beth, Magdalena,
estudantes, como eu.
Fiquei 48 horas sem comer.
Eu entrei no quartel com 50 kg de peso, saí três meses depois pesando 39 kg.
Eu
cheguei lá com um mês de gravidez, e tinha enormes chances de perder meu bebê.
Foi o que médico me disse, quando saí de lá, com quatro meses de gestação.
Eu
estava deprimida, mal alimentada, tensa, assustada, anêmica, com carência aguda
de vitamina D por falta de sol.
Nada que uma mulher deve ser para proteger seu
bebê na barriga.
Se meu filho sobrevivesse, teria sequelas, me disse o médico.
– A má notícia eu já sei,
doutor, vou procurar logo um médico que me diga o que fazer para aumentar as
chances do meu filho.
Mas isso foi ao sair.
Lá
dentro achei que não havia chance alguma para nós.
Eu era levada de uma sala
para outra, numa área administrativa do quartel, onde passava por outras
sessões de perguntas, sempre as mesmas, tudo aos gritos, para manter o clima de
terror, de intimidação.
Na noite seguinte, atravessei a madrugada com uma
sessão de interrogatório pesado, o Dr. Pablo e os outros dois berrando, me
ameaçando de estupro, dizendo que iam me matar.
Um dia achei que iria morrer.
Entraram no meio da noite na cela do forte para onde eu fui levada após esses
dois dias.
Falaram que seria o último passeio e me levaram para um lugar
escuro, no pátio do quartel, para simular um fuzilamento.
Vi minha sombra
refletida na parede branca do forte, a sombra de um corpo mirrado, uma menina
de apenas 19 anos.
Vi minha sombra projetada cercada de cães e fuzis, e pensei:
“Eu sou muito nova para morrer. Quero viver”.
Um dia, um outro militar,
que não era nenhum daqueles três, botou um revólver na minha cabeça e falou:
“Eu posso te matar”.
E forçou aquele cano frio na minha testa.
Me deu um
sentimento enorme de solidão, de abandono.
Eu me senti absolutamente só no
mundo.
Pela falta de notícias, imaginava que o Marcelo estava morto.
Entendi
que iria morrer também e que ninguém saberia da minha morte, pensei.
Mas não
quis demonstrar medo. Lembro que o homem do revólver tinha olhos azuis.
Olhei
nos seus olhos e respondi:
“Sim, você pode pode me matar”.
E repeti, falando
ainda mais alto, com ar de desafio:
“Sim, você pode!”
Um dos interrogatórios foi
feito na sala do capitão Guilherme, o S-2 que mandava em todos ali.
Era noite,
ele não estava, e me interrogaram na sala dele.
Lembro dela porque havia na
parede um quadro com a imagem do Duque de Caxias.
Estava ainda com o biquíni e
a camisa, era a única roupa que eu tinha, que me protegia.
Nessa noite, na
sala, de novo fui desnudada e os homens passaram o tempo todo me alisando, me
apalpando, me bolinando, brincando comigo.
Um deles me obrigou a deitar com ele
no sofá.
Não chegaram a consumar nada, mas estavam no limite do estupro,
divertindo-se com tudo aquilo.
Eu estava com um mês de
gravidez, e disse isso a eles.
Não adiantou.
Ignoraram a revelação e minha
condição de grávida não aliviou minha condição lá dentro.
Minha cabeça doía,
com a pancada na parede, e o sangue coagulado na nuca incomodava.
Eu não podia
me lavar, não tinha nem roupa para trocar.
Quando pensava em descansar e dormir
um pouco, à noite, o lugar onde estava de repente era invadido, aos gritos, com
um bando de pastores alemães latindo na minha cara.
Não mordiam, mas pareciam
que iam me estraçalhar, se escapassem da coleira.
E, para enfurecer ainda mais
os cães, os soldados gritavam a palavra que enlouquecia a cachorrada:
“Terrorista, terrorista!…”
As primeiras três semanas
que passei lá foram terríveis.
Só melhorou quando o Dr. Pablo e seus dois
companheiros foram embora. Entendi então que eles não pertenciam ao quartel de
Vila Velha.
Tinham vindo do Rio, é o que chegaram a conversar entre eles, em
papos casuais:
“E aí, quando voltarmos ao Rio, o que a gente vai fazer lá…”
Isso fazia sentido, porque o quartel de Vila Velha integra o Comando do I
Exército, hoje Comando do Leste, que tem o QG no Rio de Janeiro.
Quando o trio voltou para
o Rio, a situação ficou menos ruim.
Eles já não tinham mais nada para
perguntar.
Me tiraram da cela da fortaleza e me levaram para a cela coletiva.
Foi melhor.
Na cela do forte não havia janelas, a porta era inteiriça e minhas
companhias eram apenas as baratas.
Fiz uma foto minha, agora em 2011, ao lado
da porta.
Até que chegou o dia de
assinar a confissão, para dar início ao IPM, o inquérito policial-militar que
acontecia lá mesmo, dentro do quartel.
Me levaram para a sala do capitão
Guilherme, o S-2, e levei um susto.
Lá estava o Marcelo, que eu pensava estar
morto.
Os militares saíram da sala e nos deixaram sozinhos.
Quando eu fui falar
alguma coisa, o Marcelo me fez um sinal para ficar calada.
Ele levantou, foi
até a parede e levantou o quadro do Duque de Caxias.
Estava cheio de fios e
microfones lá atrás. Era tudo grampo.
Depois disso, o Marcelo
foi levado para o Regimento Sampaio, na Vila Militar, no Rio de Janeiro, e lá
ficou nove meses numa solitária.
Sem banho de sol, sem nada para ler, sem
ninguém para conversar.
Foi colocado lá para enlouquecer.
Nove longos e
solitários meses…
Nós, todos os presos, e os que já estavam soltos nos
encontramos mais ou menos em junho na 2ª Auditoria da Aeronáutica, para o que
eles chamam de sumário de culpa, o único momento em que o réu fala.
Eu com uma
barriga de sete meses de gravidez.
O processo, que envolvia 28 pessoas, a
maioria garotos da nossa idade, nos acusava de tentativa de organizar o PCdoB
no estado, de aliciamento de estudantes, de panfletagem e pichações.
Ao fim, eu
e a maioria fomos absolvidos.
O Marcelo foi condenado a um ano de cadeia.
Nunca
pedi indenização, nem Marcelo.
Gostaria de ouvir um pedido de desculpas, porque
isso me daria confiança de que meus netos não viverão o que eu vivi.
É preciso
reconhecer o erro para não repeti-lo.
As Forças Armadas nunca reconheceram o
que fizeram.
Nunca mais vi o capitão
Guilherme, o S-2 que comandou tudo aquilo.
Uma vez ele apareceu no Superior
Tribunal Militar como assessor de um ministro.
Marcelo foi expulso do curso de
Medicina, após a prisão, e virou jornalista.
Fomos para Brasília em 1977.
Por
ironia do destino, Marcelo só conseguiu vaga de repórter para cobrir os
tribunais. E lá no STM, um dia, ele reviu o capitão Guilherme.
Depois disso,
não soubemos mais dele. Nem sei se o S-2 ainda está vivo.
O que eu sei é que mantive
a promessa que me fiz, naquela noite em que vi minha sombra projetada na
parede, antes do fuzilamento simulado.
Eu sabia que era muito nova para morrer.
Sei que outros presos viveram coisas piores e nem acho minha história
importante.
Mas foi o meu inferno. Tive sorte comparado a tantos outros.
Sobrevivi e meu filho
Vladimir nasceu em agosto forte e saudável, sem qualquer sequela.
Ele me deu
duas netas, Manuela (3 anos) e Isabel (1).
Do meu filho caçula, Matheus, ganhei
outros dois netos, Mariana (8) e Daniel (4). Eles são o meu maior patrimônio.
Minha vingança foi
sobreviver e vencer.
Por meus filhos e netos, ainda aguardo um pedido de
desculpas das Forças Armadas. Não cultivo nenhum ódio.
Não sinto nada disso.
Mas, esse gesto me daria segurança no futuro democrático do país. [Depoimento a
Luiz Cláudio Cunha]
******
Luiz Cláudio Cunha é
jornalista, autor de Operação Condor – O Sequestro dos Uruguaios: uma
reportagem dos tempos da ditadura.
post: Marcelo Ferla
CHOCADA COM TUDO OQUE LI,porém,grata por saber que independente de quem somos, e oque passamos...oque REFLETE em nossa vida, É A FORMA COMO A ENCAREMOS APARTIR DOQUE NOS ACONTECEU!eu já admirava essa jornalista sem sabernada disso,agora então...obrigado, amigo,por compartilhar conosco todas as diversidades de assuntos.
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