Livro de fotógrafo
português retrata atuação de ditaduras no Cone Sul durante Operação Condor.
Em 1973, o chileno de 17
anos Fernando Mora Gutiérrez ajudou a desatolar um caminhão do Exército com uma
pá, perto da fronteira com a Argentina. Perguntou para onde os oficiais estavam
levando um grupo com 17 homens da vizinhança, que contava com seu pai, Sebastián.
Os militares não responderam, mas convocaram o rapaz para acompanhá-lo.
Ele
assentiu e subiu no veículo.
O caminhão regressou no
dia seguinte para devolver à família somente a pá de Fernando.
O jovem e os
outros homens, trabalhadores sindicalistas da zona madeireira, haviam sido
fuzilados pela “Caravana da morte” no que ficaria conhecido como o massacre de Chihuío,
e seus corpos desapareceram.
Quem conta a história é o português João Pina, que
conversou e fotografou Alterneriana (ou 'María') Mora, mãe de Fernando e viúva
de Sebastián, e sua filha Sonia.
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'María' Mora com filha Sonia Mora Gutiérrez: marido e filho foram fuzilados pela Caravana da Morte em 1973, no Chile. |
Este é um dos 18 perfis
traçados em primeira pessoa e fotografados por Pina. Durante quase uma década,
ele percorreu países da América Latina atrás do rastro da Operação Condor, um
plano secreto de extermínio a esquerdistas financiado pelos Estados Unidos nos
anos 1970 e 1980 e que uniu as ditaduras militares do Cone Sul, deixando um
saldo de 60 mil mortos.
O projeto, parcialmente
financiado por crowdfunding, resultou no livro "Condor", que chega às
livrarias nesta sexta-feira (19/09).
A obra de 300 páginas traz documentos,
depoimentos e fotografias em preto e branco de dezenas de lugares e
personagens, todos entrelaçados por um cuidadoso projeto gráfico.
Uma exposição
ampliada do projeto estreia dia 23 de setembro no Paço das Artes, em São Paulo.
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Antigos
militares acusados pelo Ministério Público da Argentina durante sessão de
julgamento por crimes contra a humanidade.
“A pouca consciência
coletiva que existe em vários países, como a Bolívia e o Brasil, faz com que o
tema seja muito ignorado, e logo mais complexo de investigar”, afirmou o
fotógrafo de 34 anos a Opera Mundi.
Se a pesquisa às vezes esbarrava na
burocracia de alguns Estados, do lado das vítimas sempre houve vontade de
falar: “Elas querem contar suas histórias”, disse.
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Pina colheu da sua vida
pessoal e da paixão pela América Latina a ideia do livro: é neto de militantes
do Partido Comunista Português presos e torturados durante o regime autoritário
que governou Portugal por 48 anos.
Entre as façanhas do fotógrafo, esteve a de
vasculhar o “Arquivo do Horror”, com três toneladas de documentos sobre a
Operação Condor, incluindo 11 mil fichas de presos.
O acervo foi encontrado no
Paraguai em 1992 por Martín Almada, um dos depoentes do livro.
Por acompanhar as vítimas
durante tanto tempo, Pina pôde acessar lados ainda frágeis dessas pessoas: o
fosso entre sobreviventes e filhos, desde cedo separados pela prisão ou pelos
efeitos devastadores da tortura; a atmosfera de medo e as ameaças anônimas que
ainda acossam ex-presos e familiares de desaparecidos; e a incessante luta por
reparação histórica.
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Na
praia de Blancarena, no Uruguai, encontraram-se alguns dos poucos casos
documentados de argentinos lançados de aviões.
O fato de o coronel da
reserva brasileiro Sebastião Rodrigues de Moura, o Curió, ser o único
torturador a falar, talvez mostre algo sobre a situação do Brasil.
Na
Argentina, onde a Lei da Anistia foi revogada, os militares tapam a cara ao
fotógrafo com mãos e cadernos; no Brasil, Curió posa e olha (de lado) a câmara.
Ele coordenou o plano contra a Guerrilha do Araguaia, no sul do Pará,
resultando na morte de 59 guerrilheiros.
Curió deu o testemunho em
casa, localizada em um bairro de classe alta em Brasília – o mesmo bairro onde
ele buscou moradia para o ex-ditador paraguaio Alfredo Stroessner, exilado no
Brasil por 17 anos.
Em mais um sinal da distância entre as duas faces da
guerrilha, os camponeses brasileiros retratados no livro em imagens ou
histórias – aqueles que apoiaram ou lutaram na guerrilha – vivem em estado de
penúria financeira, sequelas físicas e psicológicas ou em constante medo, sem
saber se e quando terão resolvidas suas contas com o passado.
Olimpo, Argentina: sala de
tortura do antigo centro clandestino de detenção em Buenos Aires.
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post: Marcelo Ferla
fonte: Opera Mundi
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