Trote universitário, ou:
“A idiotice humana pra todo mundo ver.”
Victor
Gomes
“Aqui a gente segue uma
hierarquia e a gente apanhou há seis anos atrás. O povo do sexto ano da
faculdade.Hoje é o dia de vocês apanharem, porque você são bichos da faculdade
e vocês vão apanhar hoje para bater amanhã”.
Assim um veterano do
estudante Luiz Fernando justificou o trote brutal pelo qual os calouros da
Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto foram coagidos a passar este
ano. O trote se deu numa festa de três dias, onde as boas-vindas se deram com
gestos como urinar em cima dos calouros, agredi-los fisicamente e obrigá-los a
tirar a roupa em cima de um palco, na frente dos donos do pedaço.
O rapaz ficou traumatizado
e desmaiou ao lado da piscina, seminu, coberto de vômito e urina. No dia
seguinte, recusou-se a participar da festa novamente e declarou que denunciaria
o evento. Foi ameaçado de morte e convocado a retornar. Assustado, Luiz
Fernando fugiu de volta para a cidade natal, onde realiza tratamento
psicológico e tenta se recuperar para ter condições de retornar à faculdade.
Meu foco aqui não é o caso
específico deste aluno. O caso dele é revoltante, sem dúvida alguma. Mas não é
esporádico; é comum. A notícia, que li neste feriado, me fez pensar na tradição
de trotes ao redor do país. Em como isso tudo é doentio e idiota.
Já ouvi todo tipo de
justificação. Desde a que se pretende como mais embasada (“é um ritual de
iniciação”) até a mais comum e estúpida, beirando a imbecilidade patológica
(“calouro burro, vamo mostrar quem é que manda aqui!”). Mostrar quem manda. É
ridículo. A sensação de poder, de estar no topo da organização universitária.
Eu sou veterano, me respeita!
Quanta estupidez. Eu espero sinceramente que
essas pessoas se graduem e trabalhem para um chefe que curta aquele assédio
moral básico. Diariamente, se possível . Um chefe que goste de afirmar a
autoridade o tempo inteiro, e rebaixar os subalternos com mais frequência
ainda. E não vale reclamar, hein? Questão de hierarquia.
E tem a desculpa do ritual
de iniciação. Sério que esse é o melhor modo que se pode ter de iniciar alguém
na vida universitária? Quando eu entrei na universidade, meus veteranos se
ofereceram pra pagar a conta do bar. Sem brincadeira. Apertaram minha mão, me
deram as boas-vindas e chamaram pro bar, no qual não paguei um centavo da
conta, porque não deixaram.
Juro pra vocês que foi um
modo interessante de me iniciar na universidade. Juro que não me deu vontade de
fugir quando isso aconteceu. Mais importante de tudo, garanto que não dava pra
denunciar os veteranos ao Ministério Público.
O trote que usei no começo
da postagem é só um exemplo de barbárie. Conheço vários outros. Temos, por
exemplo, as expressões repugnantes de machismo, exteriorizadas em um LEILÃO DE
CALOURAS. Isso aí, um leilão. Os calouros davam lances nas calouras e, quem
ganhasse, oferecia de presente pra um veterano, que tinha o direito de sair com
a menina pelo resto do dia.
Não, não é brincadeira. Pois é, século XXI.
Os exemplos não param.
Volta e meia, relembram que já houve coma alcoolico, humilhação pública e até
morte.
Mas, poxa, só estamos nos divertindo, né? Dando as boas-vindas. É uma
tradição da universidade, eu passei por isso quando entrei, então todo mundo
tem que passar. Né não, brother?
Sério, isso é doentio.
A universidade não exige
trote. É completamente desnecessário organizar um evento para denigrir e
humilhar os recém-chegados, forçando-os a entoar musiquinhas enquanto se anda
de cócoras ou engolir um litro de cachaça, para passar mal logo em seguida. Não
só desnecessário, é errado. Por qualquer ângulo que se olhe, não é legal.
De onde tiraram que os
trotes violentos praticados por aí são “maneiros”? Qual é a lógica? Pelo amor
de qualquer coisa em que vocês acreditem, dá pra explicar?
Porque tudo o que vejo é
um bando de idiotas que se aproveita da vontade de inserção dos calouros para
humilhá-los e afirmar a própria autoridade. Que se aproveitam do ambiente a seu
favor para oprimir as calouras.
(Gatinha, tem que dar pra
mim porque sou veterano, né?)
Quem nunca viu acontecer?
É desprezível.
O caso do Luiz Fernando só
ganhou repercussão. Tem vários outros acontecendo por aí a cada semestre, que
ninguém comenta. Porque uma porrada de gente acha normal.
Isso não simboliza a
universidade. Não deveria, pelo menos. Integração, formação de conhecimento,
pesquisa, ensino e extensão. Um ambiente onde se produz intelectualmente o que
nos ajuda a crescer como seres humanos. Isso a universidade deveria simbolizar.
Não o local onde um grupo
de animais marca território e reafirma aos gritos ébrios a própria
imbecilidade.
Universidade. Dizem que de
lá sairão as grandes mentes do futuro brasileiro. Pois é. Concordo. Nós estamos
fodidos.
VICTOR
GOMES
Victor
Gomes está no último ano de Filosofia pela Universidade de Brasília e tem a
esperança de que seja também a reta final da revisão do seu primeiro romance.
Sua coluna no Literatortura vai ao ar nas terças-feiras e ele dá seus pitacos
sobre o que acontece nos sábados ao redor do mundo através do Crônicas de um
ano inteiro.
post: Marcelo Ferla
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