Éramos uma ilusão em 64
A
ideologia “revolucionária” era um ensopadinho feito de JK, Marx, Getúlio, Iseb
e sonho.
O golpe de 64 aconteceu
porque nós não existíamos. Éramos uma ilusão. A esquerda era uma ilusão no
Brasil (já imagino as “cerdas bravas do javali” se eriçando em alguns
cangotes). Pois não existíamos em 64. Mas, existia o quê? Existia uma revolução
verbal. A ideologia “revolucionária” era um ensopadinho feito de JK, Marx,
Getúlio, Iseb e sonho. Existia uma ideologia que nos dava a sensação de que o
“povo do Brasil marchava conosco”, um wishful thinking de que éramos o “ sal da
terra”.
Havia a crendice de que
nossos inimigos estavam todos “fora” de nós e fora das estruturas políticas
arcaicas (até hoje é difícil arrancar isso de dentro das cucas fóbicas ).
Existia um “bacalhau português” em nosso discurso, um forte ranço ibérico em
nossa postiça ideologia “franco-alemã”: o amor ao abstrato, ao uno totalizante.
A população nem sabia que existíamos. Não havia nenhuma base material,
econômica ou armada, “condições objetivas” para qualquer revolução. Por trás de
nossas utopias, o Brasil escravista e patrimonialista dormia a sono solto. Nós
éramos uma esquerda imaginária, delegando ao Estado a tarefa de fazer uma
revolução contra o Estado. Como sempre em nossa história, até nas revoluções
precisamos do governo.
Havia apenas um
sindicalismo de pelegos e dependentes do presidente, que deu a grande festa de
13 de março (o comício da Central, com tochas da Petrobras). Eu estava lá,
olhando para Thereza Goulart, linda de vestido azul e coque anos 1960, e vendo
depois, com calafrio na espinha, as velas acesas em protesto em todas as
janelas da chamada classe média “reacionária” do Flamengo até Ipanema. Essa era
a verdadeira “sociedade civil” que acordava. Hoje, acho que o único que sacava
a zorra toda era o próprio Jango, o mais brasileiro, mais sábio e que preferiu
o exílio, já que não pôde segurar o trem, entre os gritos de Darcy Ribeiro
falando do “Brasil, nossa Roma tropical!”. Havia uma espécie de “substituição
de importações dentro da alma”: a crença de que éramos “especiais” e de que
podíamos prescindir do mundo real, fazendo uma revolução pela vontade mágica.
Mas, existia o quê, de concreto?
Existiam os outros. Os
“outros” surgiram do nada. Surgiram categorias esquecidas pelos “ideólogos”. O
óbvio de nossa cultura pipocou do “nada” em 64. Fantasmas seculares refloriram.
Surgiu uma classe média reacionária e burra, que sempre esteve ali. Surgiu um
exército ignorante e submisso às exigências externas e repressivas da Guerra
Fria na América Latina.
A sensação que eu tive foi
de acordar de um sonho para um pesadelo. Um pesadelo feito de milicos grossos,
burrice popular e pragmatismo de gringos do “mercado”. (Foi inesquecível o
surgimento de Castelo Branco, feio como um ET de boné verde na capa do “O
Cruzeiro”). Um pesadelo feito de realidade.
E agora, outra “heresia”
(mais cerdas eriçadas): eu acho que 64 foi “bom” para nos acordar. Foi uma
porrada necessária. 64 abriu cabeças. Aprendemos muito. Ficamos conhecendo a
ignorância do povo (que idealizávamos); descobrimos que a resistência
reacionária de minhas tias era igual à dos usineiros e banqueiros. Descobrimos
a burocracia endêmica, a “burguesia” nacional adesista a qualquer grana externa
(que achávamos “progressista”). Descobrimos o óbvio do mundo.
Foi o início de uma
possível maturidade. Despertamos para a bruta mão do money market, que
precisava nos emprestar dinheiro, para que o Estado pós-getulista-verde-oliva
avalizasse a instalação das multinacionais aqui. Ou vocês acham que iam nos
emprestar US$ 150 bilhões para o Jango fazer a reforma agrária com o Darcy?
Aprisionaram-nos para contrairmos a dívida como, 20 anos depois, nos libertaram
para pagá-la. 64 ensinou que o buraco é muito mais embaixo. Em 64, vimos que a
esquerda tinha “princípios” e “fins”, mas não tinha “meios”.
Em 64, descobrimos que o
mundo anda sozinho e independe de conspirações individuais. Claro que a CIA
armou coisas com direitistas daqui, mas foram apenas os parteiros de um “desejo
material da produção” no momento capitalista do mundo. Nossos paranoicos acham
que o “neoliberalismo” é uma trama da IBM e da Microsoft em Washington.
1964 foi um show de
materialismo histórico, ali, na bucha. Mas ibérico não gosta de ver estas
coisas. E logo tapamos os olhos e nos consideramos as “vítimas” da ditadura,
lutando só pela “liberdade” formal. E não enxergávamos que faltava liberdade
“real” em nossas instituições políticas de 400 anos. Com 64, poderíamos ter
descoberto que um país sem sociedade organizada morre na praia. E deveríamos
ter descoberto que não adianta nada analisar os “erros” de nossa esquerda “revolucionária”.
O conceito de “esquerda” no Brasil tem de ser repensado ab ovo, pois é
impossível trancar a complexidade de nossa formação nacional numa falange
unificada. 1964 devia nos lembrar que uma esquerda aqui tem de ser dialogal,
atenta aos vícios culturais do país, complexa e libertada da “ganga impura” do
patrimonialismo tradicional do Sarney ou do novo patrimonialismo de Estado que
o PT inventou.
Como os EUA lutaram contra
o racismo, Vietnã, direitos civis, temos de lutar dentro da democracia. Nossa formação
nos condena à democracia. O tempo não para, e as forças produtivas do mundo
continuarão agindo sobre nossa resistência colonial que o PT preserva.
Quando entenderemos que a
verdadeira revolução brasileira tem de ser endógena, democrática, porque as
instituições seculares são a causa de nosso atraso e fracasso? As velhas
palavras de ordem continuam comandando o governo atual. O medo à “globalização
neoliberal” (ah... palavras mágicas da hora...) desloca o alvo do problema: o
verdadeiro inimigo de uma nova esquerda deve ser a velha estrutura oligárquica
e e burocrática do país, alojada no bunker do Estado. E aí vai o terceiro
eriçamento das “cerdas bravas do javali”: o Estado não é a solução; o Estado é
o problema. Só um banho de “liberalismo” pode ajudar a sanear esta “bosta
mental sul-americana”, como disse Oswald de Andrade.
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