O mundo cruel (e rentável)
da distopia infantojuvenil.
Comum no início do século XX, livros com governos controladores e falta de liberdade voltaram às livrarias e conquistaram o gosto dos jovens que, céticos, não se identificam mais com finais felizes
Raquel Carneiro
Nos
últimos anos, os best-sellers da literatura infantojuvenil vêm gradativamente
ganhando tons mais escuros. Do resgate dos vampiros pela série Crepúsculo aos
personagens enfermos da chamada sick-lit, o mercado de livros para jovens se
aquece com histórias que, à medida que abdicam de enredos e finais felizes,
ultrapassam também as prateleiras das livrarias e se transformam em bilheterias
milionárias no cinema. Pelo mesmo caminho, segue o filão da literatura
distópica, aquela com histórias contrárias às utopias: o cenário é quase sempre
um mundo em frangalhos, a partir do qual o futuro é projetado de forma
negativa, sem esperanças. São séries como Feios, Destino e Divergente, outra a
caminho do cinema, além de Jogos Vorazes, a maior estrela do grupo, que na
próxima sexta-feira, 15 de novembro, faz no Brasil a estreia mundial de seu
segundo longa, Em Chamas.
Em
comum, essas sagas têm protagonistas adolescentes acossados por governos
totalitários e ambientes violentos. Além de boa vendagem, claro. Juntas, as
séries já tiveram mais de 800.000 exemplares comercializados no Brasil, especialmente
a partir de março de 2012, quando a história da americana Suzanne Collins, com
Jennifer Lawrence à frente, chegou às salas de exibição. Jogos Vorazes,
sozinha, teve meio milhão de livros vendidos no Brasil (confira mais números na
lista abaixo). De carona no lançamento do segundo filme da
franquia, que chega aqui antes do restante do mundo, a Rocco, editora dos
livros no país, vai lançar nesta semana um box digital com os três títulos
originais, de uma vez.
“Os
jovens leitores imaginam a possibilidade de estar inseridos em uma sociedade
que cerceará sua liberdade pessoal. Como isso acontece em determinadas partes
do mundo, a ficção se torna verossímil”, explica Ana Martins, gerente editorial
da Rocco Jovens Leitores, responsável no Brasil pelas sagas Jogos Vorazes e
Divergente.
Durante
as manifestações ocorridas no Brasil em junho, era comum encontrar nas ruas — e
em fotos sorridentes postadas nas redes sociais —, adolescentes segurando
cartazes com as frases “Toda revolução começa com uma faísca” e “Se nós
queimarmos, você queimará conosco!”, ambas retiradas da trilogia Jogos Vorazes.
Com
o sucesso de vendas, outros títulos no estilo estão previstos para chegar ao
Brasil, que já conta com pelo menos sete representantes importantes do filão. A
Galera Record, que editou no Brasil a série Feios, a primeira a desembarcar por
aqui, em 2010, junto com Jogos Vorazes, tem agendado para o fim deste mês o
lançamento de Eva, saga da autora Anna Carey, em que homens e mulheres vivem
segregados e atuam em campos de trabalho forçado. Em 2014, a Rocco lança a
distopia sobrenatural Bone Season (ainda sem título em português), da jovem
autora inglesa Samantha Shannon.
As
distopias infantojuvenis que são destaque no Brasil
Composta
pelos livros Jogos Vorazes, Em Chamas e A Esperança, a trilogia distópica
escrita pela americana Suzanne Collins foi lançada em 2008 nos Estados Unidos e
em 2010 no Brasil. É a mais bem sucedida do filão, com mais de 50 milhões de
cópias impressas vendidas nos Estados Unidos e 500 mil exemplares no Brasil. A
história se passa em um futuro sombrio e apresenta o país fictício de Panem.
Localizado onde atualmente é a América do Norte, ele é formado por 12 distritos
e pela Capital, sede do governo ditatorial que limita a liberdade e impõe
deveres a cada região.
Para
validar o seu poder, uma vez por ano a Capital promove os Jogos Vorazes, um
reality show televisado em que 12 pares de jovens, entre 12 e 18 anos, são
sorteados em cada distrito e levados para uma arena onde devem lutar até a
morte. Entre os selecionados, está Katniss, que se voluntaria para participar
dos jogos quando a sua irmã de 12 anos é sorteada. Ao demonstrar coragem desde
esse momento, a jovem de 16 anos se torna um símbolo para a população cansada
de viver sob o regime totalitário. Ao longo dos três livros, ela se torna, como
diz um trecho de um dos volumes, a fagulha que inicia a revolução pela
liberdade de Panem.
Jovens
adultos – O filão, na verdade, não é novo. Embora esteja em alta mais uma vez,
a distopia teve os seus maiores representantes na primeira metade do século XX,
após a Primeira Guerra Mundial, período de clássicos como Admirável Mundo Novo,
de 1932, de Aldous Huxley, e 1984, de George Orwell, lançado em 1949. A
novidade, agora, reside no interesse de jovens entre 14 e 23 anos que nunca
conviveram com governos totalitários. Público diferente do que presenciou o
lançamento de 1984, quando o mundo testemunhava a escalada do comunismo e o
temor da aproximação de um futuro ditatorial.
Nos
Estados Unidos, o nicho em que as distopias estão inseridas foi apelidado de “YA”,
sigla em inglês para “Young Adults” (jovens adultos, em português). A
classificação, no entanto, diz pouco sobre esse público, formado por leitores
conectados e engajados. “Eles são bastante ativos na internet. Quando vêm à
livraria ou visitam o site, já sabem o título que buscam. Quando se tornam fãs,
mobilizam clubes e páginas especializadas com conteúdo e comentários e os
divulgam”, conta Benjamin Magalhães, gestor de marketing da Travessa, rede de
livrarias do Rio de Janeiro.
Outra
grande rede de livrarias, a Nobel, também tem um olhar especial para esse
público. Os jovens leitores de distopias respondem por 10% das vendas da
empresa, de acordo com seu diretor operacional, Guilherme Netti. “Hoje, os
jovens leem, na média, muito mais do que seus pais liam na mesma idade”, diz
Netti. Ele ressalta como trunfo do nicho o fato de um livro nunca vir sozinho.
Conhecidas como sagas, as histórias possuem no mínimo três livros. “Sequências
conseguem um destaque maior no ponto de venda, pois todos os títulos ficam
expostos juntos e possuem capas com identidade visual similar, o que facilita a
identificação pelo consumidor.”
No
Brasil – Para a brasiliense Bárbara Morais, 23 anos, que lançou em setembro A
Ilha dos Dissidentes (Gutenberg , 303 páginas, 34,90 reais), primeiro volume da
trilogia brasileira Anômalos, a literatura distópica se destaca por fugir dos
finais felizes. “Na adolescência, você fica desiludido e cético, percebe que os
adultos não são heróis e que não há muito no que acreditar”, explica a jovem
que estuda economia e frequenta cadeiras de ciência política na Universidade de
Brasília (UnB).
Outras
obras do segmento podem ser citadas na literatura brasileira. “Não Verás País
Nenhum de Ignácio de Loyola Brandão, lançado em 1981, é um clássico desse tipo
de literatura no Brasil. O futuro é triste, o meio ambiente está destruído e a
população é dividida em castas. Até mesmo Monteiro Lobato se aventurou em algo
parecido no livro A Chave do Tamanho, de 1942”, conta João Ceccantini,
professor de literatura brasileira da Universidade Estadual Paulista (Unesp)
sobre o livro em que a personagem Emília, do Sítio do Picapau Amarelo, tenta
desligar a “chave da guerra”, para tirar Dona Benta da depressão causada pela
Segunda Guerra Mundial.
Em
um passado mais recente, Monte Veritá, de Gustavo Bernardo, é um exemplo de
distopia lançado pela Rocco em 2009. Assim como Blecaute, de Marcelo Rubens
Paiva, editado pela Objetiva em 2007.
Desilusão
– Segundo a psicóloga Vera Zimmermann, coordenadora do Centro de Referência da
Infância e Adolescência da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o
grande interesse por distopias está relacionado a uma contradição. “Por se
sentirem demasiadamente livres e às vezes até mesmo abandonados pela família e
pelo governo, os jovens se sentem atraídos por histórias com líderes
controladores”, diz ela.
As
séries em geral retratam sociedades repressoras. O melhor exemplo dessa linha
está na leitura de Destino, primeiro livro da trilogia escrita pela americana
Ally Condie e lançada em 2010. Na história, os personagens vivem em uma
sociedade que cuida de cada detalhe da vida de seus membros, desde a comida
diária, as opções de entretenimento (são cerca de três por dia) e o matrimônio,
decidindo com quem cada um deve se casar. Em certo momento, os leitores
percebem que no fundo, assim como os personagens que acompanham, preferem a
liberdade.
“Esses
livros estabelecem uma relação em que o leitor cresce junto com o personagem”,
diz Guilherme Netti, das livrarias Nobel.
post: Marcelo Ferla
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