Retrocesso
Mais um dia de trabalho,
lá vou eu a meu escritório para mais um dia de trabalho. Um início de manhã sem
muito movimento. Como é de costume, os advogados são seres que por natureza,
são solitários, possuem única e exclusivamente como companhia as letras, as
doutrinas, jurisprudências e, no meu caso, uma televisão da qual não abro mão e
minha linda e a cada dia mais magnífica cadela Pitty que insiste em sentar a
meus pés e ser fiel como minha companheira que é a quase 8 anos.
Lugares como escritórios
de advocacia costumam ser também bastante silenciosos, salvo quando da visita
de clientes querendo saber como vão suas demandas ou quando de um novo cliente
a ser atendido.
Eis que nesta manhã,
estava eu em minha cadeira quando ouço alguém á porta. Levantei-me, como de
costume, me alinhei para atender quem quer que fosse e ao me dirigir a porta me
deparei com uma moça e uma senhora, ambas, com livretos nas mãos. A primeira
com seus trinta e poucos e a segunda com seus cinquenta e poucos me entregaram
dois livretos, ambos de cunho religioso, um questionando qual a necessidade de
tantas manifestações e da violência que estas vêm trazendo consigo nas ruas e,
o outro, que trazia o assunto da desconfiança das pessoas em relação às
religiões de hoje em dia, tudo em decorrência de seu cunho financeiro e nada
religioso.
Mas o que me chamou
atenção de imediato foi o primeiro livreto que na capa trazia a ilustração de
dois manifestantes, um em primeiro plano, negro e, o outro, em um segundo plano
da ilustração com o rosto coberto por uma camiseta.
Confesso que de imediato
me perguntei por que um negro na capa, antes do branco, como manifestante e com
uma pedra na mão?
São somente os negros que
estão usando de violência nas manifestações? Alias, há pessoas negras sendo
violentas nas manifestações?
Confesso que não presto
atenção nestes detalhes ao acompanhar notícias sore o assunto e, por isso, vi
de imediato um forte apelo preconceituoso de quem fizera o desenho que
ilustrava o fino livreto.
Fico impressionado com o
grau de preconceito que as pessoas ainda têm umas com as outras, bem como com a
falta de paciência e velocidade que estas possuem de julgar outras pessoas que
são agentes de certos atos e que ficam na mira de muitos, após certos
comentários. É a questão do racismo que ainda grita forte em nosso país, a
questão do selinho entre amigos e amigas, a homofobia, a xenofobia, a retirada
de liberdade expressão das pessoas e meios de comunicação, enfim, noto que
estou diante de uma enxurrada de preconceitos em pleno século XXI e que, por
mais incrível que possa parecer, todos estes tratam, ainda, de assuntos que a
muito duram e não evoluem, ou melhor, não se diluem, desaparecem, as pessoas
não evoluem, não há dialogo, esclarecimento, formação de opinião ou qualquer
tipo de ação que cesse estes preconceitos, alguns centenários, como o racismo.
Continuei. Após atender as
moças e receber um “Deus te abençoe”, ao abrir o jornal, me deparei com o caso
do neto da coreografa internacionalmente conhecida Deborah Colker, sim, aquela
que ficou famosa por dançar nas paredes do teatro pendurada em cordas elásticas.
O fato que se pusera a
minha frente era o que se passara com seu neto, Theo, filha (Clara Colker), e o
pai (Peu) em voo da companhia Gol, com destino de Salvador ao Rio de Janeiro.
Estava parte da família da
estrela dos palcos a viajar quando um dos funcionários da companhia vai ao
encontro de Clara, mãe do pequenino Theo e desfere o golpe:
- Você tem atestado?
Clara prontamente
responde:
- Do que?
O funcionário:
- Do médico sobre a
criança! - de onde aponta com dedo em riste para o pequenino Theo;
Responde a mãe:
- Ele está bem, tem um
problema genético, sou mãe dele e responsável por ele.
Nisto, o funcionário
retorna a cabine da aeronave de onde, logo depois, surge desta vez outra
funcionária. Esta ao se aproximar de Clara, já escutou em tom mais ríspido da
mãe ferida pela maldita situação:
- Ele é meu filho tem eb e
não tem problema nenhum em viajar, sua doença não é contagiosa ele está bem, já
viajei inúmeras vezes com ele para dentro e fora do Brasil. Nunca passei por
isso, basta olhar para mim, para a avó e para o pai dele que vivem agarrados
com ele e não tem nada.
A funcionária então, sem
piedade e rancor algum, desfere mais um golpe e diz que a aeronave só sairá do
chão com o aval de um médico em solo a respeito da situação do menino.
Vou clarear os olhos da
gateada.
Theo, o pequenino, é portador
de uma doença genética, não transmissível por nenhuma meio, chamada
epidermólise bolhosa, que consiste na formação de bolhas na pele que tem uma
sensibilidade muito alta, sendo que as bolhas provocam ardor e desconforto em
quem as possui. Se concentram estas, via de regra, nos locais de maior atrito
do corpo. Trazem grandes problemas para o portador em decorrência da sua
ruptura e, em decorrência destas, de possíveis infecções graves. Nada mais, ou
melhor, como se já não fosse o suficiente.
Ao se deparar com o
pequenino Theo e seu problema, o avião e sua tripulação de cinco monstros,
simplesmente não decolou por decisão unânime, ou melhor, por decisão que fora
fruto de um conluio desta, infundada, contra o pequenino Theo, o que resultou,
ainda, da vinda e invasão de agentes da policia federal para dentro da aeronave
para que assim, fosse efetuada a retirada (entenda-se expulsão) do menino do
avião. Pronto, o constrangimento, o choro de uma mãe ferida em seus sentimentos
e um pequenino Theo assustado, pois estava entendendo ser ele o problema de
tudo, quando não era, nem deveria ser, causava pânico em sua mãe, avó e pai que
já se encontravam nervosos, envergonhados, constrangidos moralmente, humilhados,
eis que seu filho e neto parou a máquina de metal por mais de uma hora, eis que
era diferente para a tripulação do avião, era uma besta de circo.
Então chega o médico. Deborah e sua filha, já
exaltadas, explicam tudo novamente e este, por sua vez, compreende tudo e diz
não haver problema algum, mas havia. Em um ato arbitral e abominável, mais uma
vez, o comandante da aeronave diz que eles só sairiam do chão com um atestado
médico, ao que o médico responde, dizendo que não tinha atestado ali para ser
preenchido. O que fazer? O comandante, de uma forma inesperada diz ao médico
que este se vire, que dê um jeito de encontrar caneta e papel para atestar a capacidade
de seguir viagem do pequenino Theo, no que o médico o obedece cumprindo a
exigência em um papel qualquer, fornecido por passageiros do voo sem sequer ser
este timbrado.
A vontade de Clara neste
momento era de descer do avião e assim ela se manifestou, ao que uma
passageira, a umas três filas de clara grita: “Chama o MP, isso é preconceito e
discriminação”. Junto com esta passageira os demais, se manifestam dizendo que
se o Theo descesse todos eles desceriam juntos, o acompanhariam e, daí sim, o
maldito avião não sairia dali mesmo.
Todos os passageiros se
voltaram em favor do pequenino Theo e em uma só voz, reivindicaram sua vontade
em um verdadeiro manifesto, uma rebelião dentro de um avião em favor do bom
senso, da compreensão e do não ao preconceito e discriminação banal, leviana e
desumana. Ao final o voo seguiu e todos chegaram a seus destinos.
Fim.
Não, começo.
O absurdo, pois esta foi a
palavra utilizada por Deborah em entrevista cedida ao canal Globonews sobre o
caso, não pode ocorrer da forma como o fora. Neste caso, na medida em que o
pequenino Theo, aceita os ignorantes e desprovidos de cérebro que o cercam em
certas situações de sua vida e o pior, ao que tudo indica isso perdurará, eis
que a doença do pequeno Theo é congênita, as pessoas que circulam o pequenino
Theo também tem que o aceitar sem sequer questionarem a sua moléstia, assim
como o fez, a passageira que entoou voz de reprovação a tudo naquele momento
estava ocorrendo, ao dizer que se ele descesse, todos desceriam.
O que me deixa aliviado,
por um lado e, bem sei como é ter um problema assim, eis que sou diabético e já
sofri com isto por meio de mentes e bocas sujas, se dá com o fato da revolta
dos passageiros do voo.
Como pode a aceitação de
uma situação que é lapidada pela ignorância sem fim de um grupo de pessoas que
não conseguem raciocinar que, pessoas como Deborah, sua filha e seu genro,
jamais agiriam de má fé ou são terroristas ao ponto de embarcar em local
fechado, uma criança que tem doença de fácil transmissão e grave, me poupem,
todos estavam, como bem disse Clara, com o pequenino Theo a tira colo, todos
bem, sem problemas, mais saudáveis do que nunca, mas a ignorância, o
preconceito e a discriminação descontrolados e alimentados pela sensação de
superioridade tornam facilmente o ser humano cego.
Mesmo assim, ao que vejo
as pessoas não tem mais, definitivamente, o mínimo de paciência com abusos de
pessoas que se sentem no posto de autoridades em determinadas situações e que,
por questões suas, pessoais, mal resolvidas, desgostosas da vida que são,
acabam sendo protagonistas de uma patacoada destas, uma palhaçada que não faz
rir a ninguém.
Com atos assim, exemplos
assim, sendo multiplicados, há sim possibilidade de pormos as coisas um pouco
mais em seus devidos lugares, assim como as pessoas que as promovem, são com
atos de cidadania assim, juntos, unidos, que um povo faz de um país um lugar
melhor para se viver, um lugar mais harmônico para seus habitantes, respeitável
para com o próximo. De um lado, uma situação ridícula, cruel e covarde de
pessoas que deveriam dar exemplo e confortar os passageiros durante o voo da
vergonha e, do outro, um mutirão de verdadeiros cidadãos de bem que tiveram a
iniciativa acertada de dizer não, não vai ser como vocês acham que deve ser,
será como deve ser de direito e de forma justa e será, basta.
Quanto a empresa? Mil
desculpas, retratações por meio de comunicados escritos e frios a imprensa,
ligação de seu presidente a Deborah, enfim, o de praxe vindo de quem não está
nem ai para os outros neste país.
Quanto ao negro na capa do
folhetim lá de cima? Típico de quem diz aceitar todos como filhos de Deus, na
casa de Deus, mas que ao propagar a palavra de Deus a destorce sendo infeliz
com um exemplo clarividente de preconceito e racismo.
Senhoras e Senhores, eis o
Brasil, ainda o Brasil dos tortos e ignorantes, dos infelizes e desprovidos de
conhecimento, dos arrogantes, amargurados, secos, amargos, mas que ainda assim
reúne forças para mostrar a quem quiser ver, que aqui existem pessoas de bem e
que não querem desistir diante de coisas que podem mudar.
Marcelo Ferla.
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