MARCIA TIBURI- Sem limites
Critica-se por aí a falta
de limite das crianças.
Reclama-se dos adolescentes criados sem limites. No
quarto escuro do caos, esperamos que a luz do limite venha por a bagunça em
ordem. Nem adultos escapam da exigência geral.
Impõe-se leis rígidas contra o consumo
do álcool, fecham-se as casas de jogo, grita-se contra as drogas. Um submundo
de tensões mais clandestinas aqui, menos ali, atrapalha a expectativa de um
mundo ordenado. Tudo o que se diz contra os excessos destrutivos é em nome de
limites.
De tanto gritar limites
ficamos surdos para nossos próprios gritos. Onde foi parar o bom-senso é
questão que é preciso retomar. Quem pára pra pensar no porquê de tantas
imposições? A rigidez das atitudes é a resposta fácil no desespero. O desespero
é o descaminho que se explica pela falta de limites e pela tentativa de
criá-los, a cada vez, pela força. É o limite que ficou sem limite. A excessiva
proibição nos torna incompetentes para a vida.
Onde estão os limites?
Para muitos basta dar
“limites” para realizar uma boa educação. Como se a experiência do limite
sozinha pudesse ser a salvação para alguém que se perdeu. Um não dito em tom
solene aqui, ou acolá, e estaria feita a mágica.
Sabemos que não funciona
assim. Professores contam com soluções vindas de casa. Pais desatentos ou
ocupados esperam que os limites sejam produzidos na escola como se encontrar o
“limite” fosse tarefa da educação formal. Nem uma coisa nem outra. Parece que o
limite tornou-se uma palavra mágica a carregar a culpa para o lado oposto onde
cada um está. A tarefa de dar limite é uma das tantas que esperamos dos outros.
Todos sabemos que ela dá muito trabalho. Muitas vezes nem sabemos, os
responsáveis, do que se trata.
Mas no fundo, talvez a preguiça de agir
demonstre mais do que cansaço ou descaso. Talvez não confiemos na possibilidade
de que um limite seja a resposta para nossos problemas na educação, nos
relacionamentos, pois nós mesmos não nos damos limites. Somos auto-indulgentes,
auto-piedosos, sempre prontos a perdoar as nossas falhas. A revolta contra as
leis é sinal de que não vemos vantagem dos limites para nós mesmos. A culpa – e
o problema – é dos outros.
Limite para tudo
Os filósofos antigos
usavam o termo “peras” para expressar os limites. Tanto nos pré-socráticos,
quanto em Platão e Aristóteles, este conceito tinha uma função metafísica, ou
seja, servia para explicar como as coisas existiam, porque elas eram o que eram
e não diferentes. Por exemplo, Aristóteles dizia que qualquer coisa não existe
para além do limite. Tudo o que existe precisava de um limite para existir.
Para saber o que algo é e onde está se usa a noção do limite. Limite é sinônimo
de forma. Afinal não podemos saber o que é uma casa se não reconhecemos seus
limites concretos, arquiteturais, que são, afinal, formais. Até a beleza era
entendida como uma espécie de limite. Se pensarmos bem, toda a nossa forma de
ver o mundo, de pensar, de entender as coisas, depende deste conceito.
Em termos éticos,
aparentemente menos abstratos para a nossa mentalidade atual, os antigos
entendiam o limite como auto-domínio, capacidade de controlar as próprias
paixões (mais tarde chamadas de pecados), de viver no meio-termo. Limite era
tudo que tanto impedia como possibilitaria movimentos. Qualquer ação depende de
limites no espaço e no tempo. Mas também dos limites externos ou internos de
que agia.
Respeito ilimitado
Todo limite é uma
experiência que se formula na relação com o outro. Entre eu e o outro há sempre
um espaço imponderável. Neste vazio entre “eu e tu” a melhor coisa a ser
colocada é o respeito. Se o limite é a experiência que permite saber até onde
se pode chegar e, com sorte, a protetora dor de saber aonde não se deve ir, o
respeito é a única de todas as experiência que não pode ter limite. Por que
respeito é o modo de olhar para o outro como algo positivo, ver nele sua
potência de ser, como alguém que, mesmo me sendo próximo, carrega em si algo
que não pode dizer sobre si mesmo para mim, e, por isso mesmo, sempre será
intocável.
Nenhum respeito
A total ausência de respeito
pelo outro é o que caracteriza a figura do perverso. O perverso é aquele que,
por algum motivo que apenas pode ser ponderado caso a caso, rompeu com o
limite. Ele vive da crença de que é capaz de submeter o outro. No entanto,
mesmo quando destrói o outro, não deixa de enganar a si mesmo. Ele vive da
crença de que tomou posse de sua vítima, mas é apenas uma crença e, como tal,
não se sustenta na negação de quem não crê. A crença é sustentável apenas
enquanto a vítima sustenta a posição do perverso. Em momento algum, no entanto,
ele atingirá o âmago da outra pessoa. O perverso é um eterno logrado. Um
frustrado que ilude o outro pelo medo. Quem se deixa levar é também iludido. E
frustrado porque é impossível atingir o fundo irreconhecível de cada pessoa.
Aquilo que justifica que somos seres humanos e que podemos sempre chamar de
dignidade. Só esta convicção pode aniquilar um olhar e uma atitude perversas.
Limite é, no fundo, o lugar intangível de cada um.
Marcelo Ferla
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