Não atirem no Coringa
A ficção não é culpada
pelos crimes da vida real, como o do matador do cinema do Colorado. Pelo
contrário: desde a infância, ela nos ajuda a lidar com as sombras que habitam o
mundo de fora – assim como o mundo de dentro. O mal permanente e cotidiano não
é praticado pelos loucos que confundem fantasia com realidade, mas por homens e
mulheres bem racionais, que sabem o que fazem.
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Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem. É autora de um romance - Uma Duas (LeYa) - e de três livros de reportagem: Coluna Prestes – O Avesso da Lenda (Artes e Ofícios), A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua (Globo). E codiretora de dois documentários: Uma História Severina e Gretchen Filme Estrada. elianebrum@uol.com.br
@brumelianebrum (Foto: ÉPOCA)
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Quando eu tinha 8 anos,
minha mãe fez uma oferta inédita. Ela tinha ganhado um dinheiro extra em algum
trabalho como professora, talvez corrigindo redações de vestibular, e me levou
a uma loja dizendo: “Escolha o que você quiser”. Fiquei extasiada. Na minha
infância, ao contrário de hoje, se você pertencia a uma classe média remediada,
só ganhava presentes no Natal e no aniversário – e eram limitados.
Assim, a
oferta da minha mãe equivalia à abertura da caverna de Ali Babá de repente, sem
aviso e num dia de semana. Olhei para um lado, olhei para o outro, e fui
atraída por um objeto reluzente, a réplica exata de um revólver calibre 38, tão
fiel que muitas vezes depois seria confundido com um de verdade. “Quero o
revólver”, eu disse, para espanto geral da minha mãe, da vendedora da loja e, depois,
do restante da família. Você não quer uma boneca? “Não, eu quero o revólver.”
Eu não era estranha às
armas de mentira. Passara os últimos anos matando ou sendo morta pelo meu irmão
do meio, assim como pelos amigos. Morria ora como cowboy, ora como índio. Por
influência ideológica, lá em casa os índios tinham seus dias de glória ao
vencer a cavalaria americana. Mas também fui assassinada pelo martelo do Thor,
asfixiada pela teia do Homem Aranha e trespassada pela espada do Zorro. Morri
dezenas, talvez centenas de vezes, antes de completar 10 anos. E comandei
massacres quando ainda era menor de idade. Alguns dos melhores momentos da
minha infância foram vividos quando matava ou morria alegremente nas
brincadeiras, ressuscitando a tempo de comer o bolinho de chuva da minha mãe.
Mas nunca matei um
único passarinho real na minha infância, em uma época na qual isso era comum.
Aprendi a pegar os insetos que apareciam em casa pelas asas ou pelas patas e
devolvê-los ao lado de fora sem lhe causar danos, exceto baratas e pernilongos.
No dia em que matei um filhote de barata, porém, fiquei tão culpada que tentei
imortalizá-lo em uma pobre novela escrita em um caderno decorado. Jamais tive
ou teria uma arma de verdade, inclusive porque jamais conseguiria usá-la. Votei
pela proibição do comércio de armas de fogo e munição no plebiscito de 2005. E,
como jornalista, dediquei uma parte significativa da minha vida a denunciar a
violência contra os mais fracos e os invisíveis. O que não me impede de ainda
hoje explodir cabeças no videogame sempre que possível.
Se fosse eu – e não o
americano James Holmes – a entrar no cinema da cidade de Aurora, no Colorado,
em 20 de julho, com um arsenal de armas de verdade, e assassinar 12 pessoas e
ferir 58, algum jornalista apressado possivelmente investigaria a minha
infância e encontraria mais indícios de um futuro violento do que foram
encontrados na vida do matador. O massacre na estreia de Batman, o Cavaleiro
das Trevas Ressurge, protagonizado por uma pessoa que teria se apresentado como
o “Coringa”, um dos vilões mais perturbadores da ficção, poderia se esclarecer,
por exemplo, a partir da compra do revólver de brinquedo aos 8 anos de idade.
Dá até para imaginar a chamada: “Em vez de uma boneca, a assassina pediu um
revólver”. Ou: “O hobby da matadora era explodir cabeças de zumbi no
videogame”. Ou: “Desde pequena, ela vivia me assassinando”, diz o irmão.
“Quando brincávamos de polícia e ladrão, ela sempre queria ser o ladrão”,
revela uma colega de primário.
Logo, descobririam minha
fixação no Alien, um dos monstros mais violentos da história do cinema, tão
profunda que tenho um boneco na escrivaninha onde escrevo essa coluna. Sem
contar meus estudos sobre vampirismo e um interesse já superado por psicopatas.
Para piorar, não tive cabelo laranja – mas roxo, verde, azul e rosa. O que
quero dizer é que, sabendo o que procurar, numa interpretação ligeira dos
fatos, é possível encontrar prenúncios de um futuro serial killer ou matador de
cinema na vida pregressa de cada um de nós.
Digo isso porque,
sempre que alguém entra em um cinema matando gente, aparece muitos alguéns para
culpar a ficção. Desta vez, não foi diferente. Em vez de Batman ressurgir das
trevas, como o título do filme promete, o que ressurgiu foi a entrevada tese de
que o “excesso” de violência no cinema (e na TV, games etc etc ) é o culpado
pela tragédia. Essa tese recorrente, que faz ninho inclusive na cabeça de
pessoas bem inteligentes, serve para muitas coisas, especialmente explicar o
(quase) inexplicável (e assim dormir tranquilo) – e reivindicar interferência e
controle sobre o conteúdo das obras de ficção. Quando não, sua proibição.
O efeito imediato desse
tipo de tese é a redução de cada um de nós a alguns estágios anteriores da
evolução. Seríamos adultos tão estúpidos e incapazes que, se alguém – um “tio”
ou o Estado – não cuidar do que estamos assistindo, lendo ou jogando, não
saberemos distinguir a realidade da fantasia. Impressionado com alguns textos
que lera sobre a relação entre a violência da ficção no cinema e a violência do
matador do cinema da vida real, um amigo que assistia comigo a um seriado
policial na TV, comentou: “Olha só, o cara matou cinco pessoas só ao arrombar a
porta, e a gente não sentiu nada”.
O que isso prova? Nada,
me parece. Respondi ao meu amigo: “Sim, mas isso faz com que você saia da minha
casa e assassine cinco dos meus vizinhos com uma faca de pão ou pegue teu carro
e atropele todos que estiverem na faixa de segurança? Se você visse alguém
matando cinco pessoas na vida real, bem aqui na rua, agora, você não sentiria
nada? Ou isso marcaria a tua vida para sempre?”. Poderia ter dito também que,
se o diretor do filme tivesse contado a história de cada um dos mortos, ele
estaria soluçando diante da TV.
A maioria dos adultos e
também das crianças sabe distinguir muito bem o que é realidade, o que é
fantasia. E, os que não sabem, não se tornarão mais violentos por conta da
violência a que assistiram no cinema, que praticaram nos videogames e nas
fantasias de infância, ou que leram nos livros e nas HQs. Quem não sabe, não
sabe. Nestes casos, a questão é de outra ordem.
O perigo maior é partir
do princípio de que as pessoas, crianças ou adultos, são incapazes de
diferenciar a fantasia da realidade. E, em nome disso, interferir na ficção,
“purificando-a”. Como sabemos, dos contos de fadas a Harry Potter, a ficção
cumpre a função importantíssima de nos ajudar a lidar tanto com aquilo que nos
aterroriza quanto com as pulsões de morte que nos habitam. É no ambiente
controlado das histórias, no qual podemos ter certeza do enredo, que vamos
aprendendo a conviver com a realidade interna e externa, com nossas
contradições e sentimentos mais obscuros. É pelo ódio à madrasta da Branca de
Neve que uma criança pode lidar com a raiva que muitas vezes sente pela mãe na
vida real. É também matando e morrendo em embates de brincadeira que escapamos
de aniquilar e sermos aniquilados no mundo concreto. E isso até a vida adulta,
de várias maneiras.
O problema começa
quando não há espaço para lidar com aquilo que é do humano. Tenho grandes
dúvidas se é realmente educativo, numa sociedade armada como a nossa na vida
real, reprimir armas de brinquedo, por exemplo, eliminando a possibilidade de
lidar, pela fabulação, com um elemento presente no cotidiano. Já cansei de ouvir
pedagogas em matérias na imprensa afirmando coisas como esta aqui:
“Mesmo uma
aparentemente inofensiva pistola de bolhas de sabão incentiva a violência e
poderá alterar a personalidade na vida adulta”. Hoje, o pai ou mãe que aparecer
em casa com uma metralhadora de brinquedo para presentear o filho será
condenado sem julgamento pela opinião pública. Mas, sempre que o bom senso é
esquecido, novas brechas são encontradas porque é preciso lidar com a vida como
ela é: ou o que é a varinha mágica do Harry Potter, a do livro e as vendidas
nas lojas, além de uma arma com potencial letal? (Assim como sabres luminosos e
armas estrambóticas de super-heróis...?)
E se J. K. Rowling tivesse botado uma
metralhadora na mão de Harry, em vez de uma varinha, para que pudesse lidar com
as infindáveis ameaças mortais que rondam seu destino, graças à ambição dos
adultos? A escritora jamais teria saído daquele café onde escreveu o primeiro
livro, aproveitando a calefação que não tinha em casa. Mas a varinha de Harry
Potter e de seus amigos paralisa, deforma, queima e pulveriza seus inimigos,
mais potente do que qualquer metralhadora real. E Harry Potter só se tornou o
sucesso que é porque o personagem é tratado com respeito pela autora: Harry é
um menino sensível e bondoso, mas também inteligente, autônomo e capaz de
defender-se das ameaças vindas do mundo dos adultos. E não um tolinho
choraminguento agarrado à barra da saia da mãe, exigindo um videogame de última
geração.
Há duas crenças
perigosas em jogo quando se culpa a ficção pelas atrocidades da vida cotidiana.
A primeira é a de que a fantasia poderia invadir a realidade de uma forma
literal. É claro que a fantasia invade a realidade (e vice-versa) – sempre –,
mas pelo simbólico. E é por sermos capazes de simbolizar que não cometemos
atrocidades na vida real. A segunda crença é a de que aniquilar os “maus”
sentimentos e impulsos na ficção seria suficiente para eliminá-los na
realidade. Como se negar o “mal” fosse o suficiente para fazê-lo desaparecer.
Isto sim é confundir fantasia com realidade.
Arrisco-me a acreditar
que tem mais chance de se tornar um adulto decente aquela criança que matou e
morreu muitas vezes nas brincadeiras de infância do que aquela que foi obrigada
a reprimir todos os seus “maus” instintos na fabulação cotidiana. Como não é
possível eliminar nossos sentimentos e pulsões mais sombrios por decreto, de
algum modo esse caldeirão vai transbordar, mais cedo do que tarde.
De fato, as crianças
acabam dando um jeito de sobreviver – também subjetivamente – às sandices dos
adultos. Dias atrás, uma conversa no pátio do prédio de classe média de uma
amiga nos chamou a atenção. “Agora, você é o traficante”, disse uma menina de
mais ou menos 10 anos para o companheiro da mesma idade. Ela, como explicou,
seria a viciada em crack. Ficamos ali, na janela, ouvindo e imaginando o que
aconteceria se os respectivos pais estivessem no nosso lugar.
O que as crianças
faziam era tentar lidar, pela brincadeira e pela fantasia, com as notícias que
vinham do mundo real pelo noticiário e pelas conversas, já que o crack é a
droga mais falada do momento no mundo que elas também habitam. Ao tentar
fabular sobre o que as impactava, estavam fazendo algo bastante saudável. Mas
seria muito provável que parte dos pais e professores interpretasse a
brincadeira como o prenúncio de um futuro de delinquência ou drogadição. Ao
reprimir o que era natural como se fosse um problema, confundindo, agora sim,
fantasia com realidade, poderiam causar um problema de verdade.
Para terminar, o que me
parece arriscado não é quando a ficção espetaculariza a realidade. Esta é, com
mais ou menos talento, uma das funções da ficção. O problema é quando a
realidade é tratada não como a realidade que é, mas como espetáculo. Isto, sim,
banaliza a vida humana. E temos convivido o tempo todo com a espetacularização
da realidade em programas sensacionalistas travestidos de jornalísticos, em
coberturas de ocupação de favelas em que repórteres e comentaristas comemoram a
morte de supostos traficantes, como se suspeitos fossem culpados e culpados não
fossem pessoas.
A espetacularização da
realidade acontece sempre que a imprensa, responsável por documentar a vida
cotidiana de homens e mulheres reais, anula a história que faz cada um ser o
que é – e transforma gente encarnada em números sem carne. Mas a crescente
espetacularização da realidade só vinga porque rende muita audiência – ou seja,
porque recebe o aplauso de boa parte dos ditos “cidadãos de bem”, de muitos de
nós.
Nestas últimas semanas,
em minha opinião, a notícia mais chocante não foi a do matador do cinema do
Colorado. Eu sei que há poucos James Holmes por aí. E que a maioria de nós,
aqui ou nos Estados Unidos, vai continuar entrando e saindo vivo do cinema.
Para mim, é muito mais chocante constatar, mais uma vez, que homens, mulheres e
crianças estão sendo assassinados em conflitos nos lugares mais pobres,
sofridos e violentos do mundo, neste momento e dia após dia, com armas
fabricadas e vendidas pelo Brasil, como mostrou o jornalista Rubens Valente, na
Folha de S. Paulo de 22 de julho.
Em 2001, o Brasil
vendeu US$ 5,8 milhões em bombas de fragmentação e incendiárias para o ditador
do Zimbábue, Roberto Mugabe. Cada uma delas pode espalhar, ao ser detonada, até
120 mil esferas de aço por uma área equivalente a sete campos de futebol,
matando indiscriminadamente combatentes e civis. Na lista de compradores das
empresas brasileiras de armamento já estiveram Muammar Khadafi e Saddam
Hussein. Em 2011, cartuchos de bombas de gás lacrimogêneo fabricados no Brasil
foram usados pela polícia turca em campos de refugiados sírios.
O aumento das
exportações de material bélico é um dos objetivos do governo brasileiro, que
criou para as empresas um programa de incentivos fiscais e condições especiais
de financiamento. Na semana passada, fracassaram as negociações para um tratado
internacional da ONU que obrigaria os países exportadores de armas a manter um
registro das transações e avaliar se o material bélico vendido poderia ser
usado para violar direitos humanos, cometer atentados ou alimentar o crime
organizado. O Brasil foi um dos países que se manifestaram contra a
“transparência absoluta”.
No início de julho, eu
contei nesta coluna a história brutal da congolesa Marie Nzoli (leia aqui), com
grande mobilização de leitores perguntando o que é possível fazer para “ajudar
as mulheres do Congo”, vítimas de uma guerra complexa, prolongada e com
múltiplas causas que já matou 5 milhões de pessoas. Para começar, é possível
ligar os pontos. Já sabemos que os assassinatos, as torturas e os estupros que
massacram o povo congolês foram – e talvez ainda sejam – praticados também com
armas fabricadas e vendidas pelo Brasil. Afinal, ao comprar as bombas de
fragmentação brasileiras, em 2001, o ditador Mugabe tinha como passatempo
manter tropas do Zimbábue atuando na República Democrática do Congo. Esta é uma
das realidades que podemos mudar – e que merece toda a nossa atenção.
É importante pensar em
assassinos como James Holmes. Não porque a ficção supostamente teria
influenciado suas ações e portanto seria preciso controlar a ficção – mas
porque ele diz da realidade de nosso mundo. O caminho mais fácil é acreditar
que o maluco não tem nada a dizer – e, assim, podemos fingir que basta
removê-lo para que o mundo fique bom de novo. Mas o louco é aquele que diz
explicitamente do mundo em que vive. E, ao dizê-lo, sacrifica várias vidas, mas
também a sua. A tragédia do louco é que, ao denunciar a insanidade do mundo,
colabora para manter tudo como está.
O mal cotidiano,
permanente e insidioso, porém, é praticado por homens e mulheres que não
cometem loucuras. Talvez os donos e executivos e funcionários das fábricas de
armamentos do Brasil, que produzem as bombas que explodem crianças nos rincões
esquecidos do planeta, proíbam seus próprios filhos de brincar com armas de
brinquedo e assistir a filmes violentos na TV ou no cinema. É com a realidade –
e não com a ficção – que temos de nos preocupar.
texto: Eliane Brum
Marcelo Ferla
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