MARTHA MEDEIROS - A melhor coisa que não me aconteceu
Antes do ator Daniel Craig ser confirmado como o primeiro James Bond loiro do cinema, em 2006, havia uma onda de boatos que prenunciava Clive Owen no papel. Lendo uma entrevista com Owen, ele disse que essa foi a melhor coisa que nunca lhe aconteceu, pois quanto mais ele negava a informação, mais se falava sobre ele. É uma maneira de se divertir com o destino, mas a frase que ele usou é tão boa que deixemos o bonitão pra lá e vamos adiante: qual foi a melhor coisa que nunca lhe aconteceu?
Comigo, acho que foi aos 14 anos de idade. Eu iria para a Disney com a família e alguns primos. Estava ansiosa pela viagem, quase não dormia à noite. Seria minha primeira vez no Exterior, um acontecimento. No entanto, uns 10 dias antes de embarcar, o governo estabeleceu um tal imposto compulsório que tornou a viagem proibitiva. Fim de sonho: não haveria grana para bancar a aventura. Os passaportes novinhos em folha foram para o fundo da gaveta e eu passei mais algumas noites sem dormir, só que dessa vez de tristeza.
Era julho e minhas férias escolares se resumiriam a ficar em casa. Porém, haveria uma excursão do colégio para a Bahia, e muitas de minhas colegas de aula iriam. Pensei: nada mal como prêmio de consolação, trocar o Mickey pelo Pelourinho. O preço era uma merreca se comparada a uma viagem aos States. De ônibus até Salvador, imperdível! Virei, mexi, implorei, consegui a última vaga e fui. Resultado: voltei com meia-dúzia de amizades tão fortalecidas que, até hoje, somos como irmãs. Tenho certeza de que se eu não houvesse viajado com elas, eu jamais teria entrado para o grupo a que pertenço com orgulho até hoje. A Disney foi a melhor coisa que nunca me aconteceu.
Fico imaginando as histórias que podem não ter acontecido com você. Namorar uma pessoa por oito anos e romper dias antes de subir ao altar: não ter casado pode ter sido a melhor coisa que nunca lhe aconteceu, vá saber o que o destino lhe ofereceu em troca. Ou você não ter passado num concurso. Nunca ter recebido a ligação que tanto esperava. Nunca ter recuperado um objeto perdido que o deixava preso a lembranças paralisantes. Ter ficado com fama de ter sido o grande amor de uma modelo espetacular: na verdade, ela nunca olhou pra você, mas um mal-entendido fez com que muitos acreditassem na lenda e até hoje você recebe os dividendos: foi a melhor coisa que nunca lhe aconteceu.
É uma visão generosa da vida: imaginar que os não-acontecimentos fizeram diferença, que você está onde está não só por causa das escolhas que fez, mas também pelas especulações que nunca se confirmaram. Ao manter esse caráter desestressado, eliminamos a palavra derrota do nosso vocabulário e a alma fica mais aliviada, o que não é pouca coisa nesse mundo em que tanta gente parece pesar toneladas devido ao mau-humor e ao pessimismo. Cá entre nós, viajar de Porto Alegre até Salvador de ônibus para passar três dias e voltar, e achar isso uma beleza, é a prova de que ter o espírito aberto funciona.
Marcelo Ferla
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