MÁRCIA TIBURI - O que é bonito para mim?
Em nossos dias o sentimento do belo foi reduzido à mera apreciação de mercadorias. Ninguém se preocupa com o que é “belo” para si mesmo, ou com o que “parece belo”. Dizemos que algo é bonito sem muita reflexão. Sem grandes investigações internas e pessoais sobre o modo como “eu mesmo” sou capaz de formular este juízo sobre alguma coisa ou mesmo uma pessoa. Como posso julgar a beleza de algo? E como posso dizer que alguém é ou não belo, ou “bonito”? Esta questão nascida com a cultura até hoje não foi resolvida.
Terceirizamos a beleza há muito tempo. Por um lado porque nunca foi fácil tê-la. Por outro lado, não foi simples dizer o que ela era e definir seu rumo. Até hoje padecemos da confusão em relação a um parâmetro. Cada época inventou o seu. E sempre evitamos uma apreciação original que parta da sensibilidade própria a cada um. Por isso, tantos de nós pedem desculpas quando, em exposições ou diante de um filme mais complexo, percebem que “não entendem de arte”. Mas tentaram entender?
Decidir sobre a beleza ou usá-la é algo que não fazemos sem o aval de especialistas. Chamamos os filósofos, os críticos, e até os artistas que nem sempre conhecem as teorias da arte. É claro que ninguém precisa conhecê-las. O público leigo também não tem esta obrigação. Porém, enquanto isso, os especialistas comandam o gosto coletivo e individual, definem o que é o bom e o mau gosto. Aquele que determina o gosto é dono de um poder importantíssimo. Ele administra o reino da aparência e, com ele, do desejo das pessoas pelas coisas. Mas se alguém administra meu desejo estou perdendo de fazer algo importante na vida.
Os gregos representavam Afrodite, a deusa da beleza, como uma bela jovem. Junto dela aparecia Eros, o deus do amor, na forma de um querubim a portar uma flecha e de olhos vendados sempre pronto a ferir aquele que, encantado pela beleza, mirava-a perplexo. A beleza sempre esteve junto do amor e foi a sua maior isca. Até hoje, ela desperta paixões naturais ou, bem administrada é capaz de produzi-las.
Querer a beleza, decidir sobre ela
Todos querem a beleza. Até hoje, quem consulta o galerista para saber que obra de arte acompanhará a decoração das paredes, até quem segue as dicas de um cabeleireiro, passando por quem se veste de acordo com a moda e faz a ginástica indicada, todos somos reféns de padrões estéticos que não elegemos, mas pelos quais pagamos o preço. No pacote vem o direito de não precisar decidir. E não se trata de uma obrigação da qual nos desincumbimos. Mas de um direito que não desejamos. E, mais do que um gosto que perdemos, é porque perdemos justamente “o gosto”, a capacidade da apreciação estética que sustenta a sensibilidade e evita a anestesia geral para o prazer e também para o sofrimento em relação a si mesmo e o outro.
De um lado temos, em nossa vida cotidiana, que decidir sobre a beleza das coisas. É difícil pensar que algo seja belo independente de seu valor de mercado, seja o mercado dos bens materiais, dos objetos de decoração, das roupas, da arquitetura, dos carros. Se todos querem as coisas belas pagam pelo belo e o obtém. Hesíodo, o poeta grego, conta que as musas diziam que “o que é belo é caro, o que não é belo não é caro”. Talvez o valor neste caso não fosse o da riqueza material apenas, mas também espiritual. Neste ponto, o único sofrimento em relação ao alcance do belo é o do poder de compra de cada um. Mas isso não reduz o sentido do que é realmente “belo” para cada um de nós?
A beleza de nossos corpos
De outro lado, além de julgar a beleza das coisas, há um julgamento sobre a beleza que se dirige ao corpo de cada um. Acostumamos a pensar a beleza de nossos corpos também dentro de um mercado que, tanto quanto a medida e a forma dos objetos em geral, também estabelece a forma dos corpos. Mas o corpo humano não pode ser pensado como uma coisa. Isto seria reduzi-lo a objeto que podemos manipular, trocar e vender: a conseqüência seria a legitimação da prostituição, da escravidão e até da tortura.
As obras de arte nos ajudam a recriar sentimentos
A padronização do gosto atual sobre nossos corpos é proporcional à desvalorização de nosso sentimento para o belo. É o próprio valor do belo e, antes dele, o valor do sentimento que ruiu em nossa sociedade. É claro que, diante disso, o corpo de cada um é esquecido por ele mesmo.
A desvalorização do sentimento do belo em favor de sua aplicação à mera qualidade das coisas que podem ser vendidas ou compradas mostra o declínio da subjetividade nos dias de hoje. As obras de arte ainda nos ensinam o gosto. Quem tem paciência para a contemplação ou coragem para o desafio que elas implicam poderá descobrir a sutileza da experiência estética. A experiência com o olhar ou a audição, e também com a gustação, o olfato e o tato, podem nos ajudar a chegar mais perto das coisas e descobrir nelas a “beleza”, ou seja, aquilo que nelas nos toca e tem a chance de colocar poesia em nossa vida e nos salvar das meras mercadorias.
Marcelo Ferla
fonte: Cult Carioca
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