Filhos
do cárcere
Milhares de bebês e crianças
vivem hoje em prisões brasileiras com suas mães, condenadas pela Justiça. Esses
são os verdadeiros inocentes presos - e a pena é severa.
Por Nana Queiroz
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Dulla (/)
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A mãe faz caretas e treme os
lábios em barulhinhos divertidos.
Entrega um brinquedo nas mãos do menino e o
agita. Acaricia a barriguinha.
Não adianta. Luca não sorri.
A pediatra, Mara
Botelho, está preocupada com seu desenvolvimento psicológico:
“Ele não tem
reações emotivas normais desde que apanhou da polícia, há dez meses”, ela
desabafa.
“Não ri, não chora, não se interessa pelas coisas…”
Aos três meses de vida, Luca
apanhou da polícia nos braços da mãe, Tamyris*, uma goiana que foi pega
transportando drogas para Belém do Pará.
Tamyris nunca soube o quanto de
intenção havia no ato, mas ela segurava o menino e o protegia com o corpo
enquanto o policial a agredia.
No meio da confusão, sobrou para Luca um golpe
de algema de ferro no olho, que sangrou e inchou.
O ferimento sarou, mas Luca
nunca mais foi o mesmo.
Prestes a completar 1 ano, ele cumpria pena com a mãe
na Unidade Materno-Infantil da Penitenciária de Ananindeua, no Pará - sem
sorrir.
Como Luca, quase 2 mil bebês
e crianças cumprem pena ao lado das mães nas prisões do Brasil.
São bebês ainda
no período de amamentação ou crianças de até 7 anos que não têm parentes que
assumam a guarda.
Há também centenas de gestantes, detidas já grávidas.
Ou
seja, muitas crianças que já nasceram, ou nascerão, atrás das grades.
Durante
os quase cinco anos em que rodei as penitenciárias femininas do Brasil para
escrever o livro Presos Que Menstruam, ouvi e presenciei situações chocantes a
que esses bebês são sujeitados, que vão da tortura à fome.
Aqui eu conto suas
histórias.
O direito de estar preso
Por mais contraditório que
pareça, o direito de estar preso com a mãe é uma conquista dos bebês
brasileiros.
Naturalmente, viver numa cadeia não é a infância ideal, mas
especialistas têm debatido o tema por anos e concluído que é melhor nascer
preso do que sem mãe.
Estudos conduzidos desde
2003 por pesquisadores da Escola de Amamentação da Universidade de Columbia,
nos EUA, mostraram que crianças que são criadas pelas mães, mesmo dentro de
presídios, têm vantagens no curto e no longo prazo.
Liderados pela pesquisadora
Mary Byrne, os especialistas acompanharam cem crianças que viviam em uma prisão
de Nova York com as mães e descobriram que 73% tinham desenvolvido um senso de
segurança e estabilidade comparável a crianças livres e bem cuidadas de classe
média.
Em contraste com bebês separados da mãe condenada pouco após nascer,
eles sofriam menos de ansiedade e depressão.
Mais: o índice de reincidência
criminal das mães que puderam cumprir pena com os bebês naquele local foi de
0%.
Cristina Magadan, psicóloga
que trabalha na Penitenciária Estadual Feminina de Guaíba, no Rio Grande do
Sul, explica:
“Nos primeiros meses de vida, a relação do bebê com a mãe é
simbiótica.
E durante todo o primeiro ano de vida continua indispensável.
Claro, eles perdem muito quando não têm familiares que possam levá-los para
passear, mas, em geral, vemos que a convivência com a mãe ajuda esses bebês a
serem relativamente calmos e saudáveis”.
Varia, no mundo inteiro,
como os países lidam com isso.
Apesar de todos esses indícios, a maioria dos
Estados dos próprios EUA retiram o bebê das mães condenadas quase que
imediatamente após o nascimento.
Já outros países garantem até creche e
educação para as crianças, como é o caso da Alemanha.
No Brasil, a história era
parecida com os EUA até 2009, quando foi sancionada a lei que assegura aos
bebês de presas um período de amamentação de, no mínimo, seis meses.
Seios de pedra
A indígena Glicéria
Tupinambá já dormia há duas noites no chão de um cubículo superlotado no
Conjunto Penal de Jequié, no sudoeste da Bahia, quando começou a sentir dores
no seio.
O peito empedrou e a pele começou a queimar em febre.
Ela pediu ajuda
às carcereiras, que disseram que não tinham pessoal para levá-la ao hospital.
Enquanto a febre ardia mais alto, aumentavam também os gritos de fome de Eru,
que já estava quase sugando pus junto com o leite da mãe.
“Mal conseguia
dormir.
E o peito empedrado, que doía. Entrei em pranto”, lembra Glicéria.
Poucos dias depois, ela começou a delirar.
As presas e Eru berraram por ajuda
e, junto com as carcereiras, organizaram uma coleta de leite em pó e
mamadeiras.
O torpor da mãe durou 15 dias, nos quais ela teve a sorte do corpo
se curar sozinho.
Até hoje, ela não sabe o que teve, pois ninguém a levou ao
hospital.
São nas cadeias públicas,
delegacias de polícia e presídios mistos, como aquele em que viveram Glicéria e
Eru, que os bebês e gestantes passam as piores situações.
Esses locais não são
construídos para abrigar mulheres – e muito menos crianças.
Não há berçários,
enfermarias, vasos sanitários ou sequer camas. São celas pequenas e úmidas, que
comportam o dobro de pessoas do que foram destinadas e por muito mais tempo do
que o planejado.
Nessas situações, muitas presas preferem devolver seus filhos
à família ou entregar para adoção a vê-los vivendo em tais condições.
São nessas prisões
improvisadas nos grotões do País que acontecem as piores violações de direitos
humanos do Brasil.
São comuns, por exemplo, os relatos de grávidas que sofrem
tortura física e psicológica.
Certa vez, em visita à Unidade Materno-Infantil
de Ananindeua, no Pará, perguntei a cerca de 20 mães com seus bebês quem ali
havia sido presa grávida e sofrido algum tipo de agressão.
A metade delas
levantou a mão.
“Bater em grávida é algo normal para a polícia”, respondeu
Aline, que cumpria pena com a filhinha de dez meses.
“Eu apanhei horrores e
tava grávida de seis meses. Um polícia ficou batendo na minha barriga com uma
ripa.
Nem sei qual foi a intenção desse doido, se era matar o bebê ou eu.”
Outras presas confirmam o que disse Aline.
Michelle, já de barrigão
protuberante, apanhou de uma escrivã.
Na hora da detenção, Mônica recebeu socos
de um policial, que disse que filho de bandida tinha que morrer antes de
nascer.
Antes de vir ao mundo, essas crianças já enfrentam um ódio social
intenso.
Valdirene Daufemback,
diretora de Políticas Penitenciárias do Ministério da Justiça, afirma que
adequar e construir presídios para crianças e gestantes está entre os objetivos
do Programa Nacional de Apoio ao Sistema Prisional e 16 novas unidades com
creches e playgrounds já estão em construção.
Mas o Ministério da Justiça
enfrenta a própria sociedade brasileira para melhorar a situação dessas
crianças.
“O governo reflete o que a sociedade pensa sobre políticas públicas
e, infelizmente, a população não prioriza esse setor”, diz.
“As pessoas
precisam entender que recuperar os presos e dar condições adequadas a seus
filhos é algo feito para diminuir a violência no futuro.”
Recentemente, alguns
ativistas têm sugerido que as mães de bebês de até 1 ano que não representam
riscos à sociedade fiquem em prisão domiciliar, com tornozeleiras eletrônicas,
enquanto amamentam.
A sugestão se apoia nas estatísticas: apenas 10% das presas
cometeram crimes contra a pessoa, ou seja, violentos.
Assim, a criança viveria
em um ambiente mais saudável, não perderia a vivência familiar e poderia
passear com parentes e vizinhos.
Ao fim do período, a mãe voltaria a cumprir
pena em regime fechado, se assim determinasse sua sentença.
Uma preocupação, porém, é a
de que esse benefício levasse as presas a engravidar propositalmente.
Cristina
ri da suposição:
“Presas são mulheres abandonadas pelos companheiros. Elas iam
engravidar como?”.
De fato, o último levantamento feito sobre o tema pela
Pastoral Carcerária, em 2007, comprova: cerca de 47% das detentas não recebem
visitas ou as recebem menos de uma vez por mês.
Até o fim dos anos 1990, eram
proibidas visitas íntimas em presídios femininos e, ao longo de toda a minha
pesquisa, não ouvi relatos de nenhuma mulher que engravidou na cadeia.
A separação
Ser presa com o filho de
outro condenado na barriga é, sem dúvida, um drama, mas Carolina queria tanto
ter uma filhinha que aprendeu a curtir a experiência.
Logo todos se afeiçoaram
a Maria: uma bebê sorridente e iluminada.
Carolina não podia trabalhar nas
outras alas do presídio, já que não havia ninguém que cuidasse de seu bebê (não
existem creches na maioria das prisões brasileiras) e acabou se tornando
hipermãe em tempo integral.
Quando chegou a hora de deixar Maria com a família,
Carolina ficou deprimida.
Comia ainda menos, dormia picadinhos.
“Situações como
essa são superproblemáticas no Brasil, onde as mulheres viram nada além de
mães. Isso porque depois elas perdem todo o contato com os filhos”, comenta Raquel
da Cruz Lima, coordenadora do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania.
“É muito
prejudicial não ter a opção de trabalhar, tanto pela renda quanto pela
possibilidade de reduzir a pena.”
A lei demanda que ao menos
seis meses de amamentação sejam garantidos; depois disso, varia das condições
do presídio e da presa quanto tempo ela ficará com a criança.
Algumas crianças
chegam a ficar até os 7 anos, mas a maioria se vai entre seis meses e um ano.
O
drama é ainda maior quando não existe família que acolha os pequenos.
Os filhos
das presidiárias vão parar no sistema de adoção e abrigos, onde acabam
afastados para sempre das mães.
No caso de Carolina, a avó
levou Maria para visitá-la uma única vez.
A mãe não aguentou ver a pequena
passar pela humilhação de ficar nua para ser revistada por estranhos, como se
fosse uma transgressora.
Carolina só verá a filha de novo quando sair da
cadeia.
Não quer mais que Maria pague pena junto com ela.
Enquanto isso, os
dias passam lentos, em constante atraso.
Para as duas.
*Todos os nomes das presas
foram alterados para preservar a identidade das crianças
post: Marcelo Ferla
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