Os gays de Livramento
Nunca finquei o salto da
minha bota num CTG. Nunca entrei numa bombacha. Não sei andar a cavalo. Prefiro
peixe a churrasco.
Sou a favor do casamento
gay. Vejo homens andando de mãos dadas pelas calçadas perfeitas aqui dos
Estados Unidos e acho extremamente civilizado. Sou contra qualquer tipo de
discriminação sexual.
Feita essas ressalvas,
gostaria que alguém me respondesse a uma questão sem qualificar a pergunta ou o
perguntador, apenas para esclarecer minha mente obnubilada. A pergunta é a
seguinte:
Por que esse casal gay de
Santana do Livramento PRECISA casar-se num CTG?
Essas associações, os
CTGs, foram feitas pra cultuar TRADIÇÕES. Esse é o objetivo. O troço se chama
Centro de Tradições Gaúchas. O CTG é um clube, é uma entidade particular,
privada, um CTG não é público, nem estatal.
Eu, particularmente, não vou a CTG
porque não tenho nenhum interesse em cultivar tradições. Eles, lá os gaudérios,
eles têm.
Cerimônias de casamento
heterossexuais são realizadas em CTGs, porque fazem parte das tais tradições
deles.
Casamentos homossexuais não fazem parte das tradições deles. Nem usar
tênis. Nem cantar samba. Nem ser vegetariano.
Eu não sou vegetariano,
mas eventualmente calço tênis ou canto sambas. Se quiser fazer isso, não o
farei num CTG, porque nos CTGs eles não querem que as pessoas façam isso. É
como ir a um casamento de camiseta. Todo mundo de terno, e eu de camiseta. Vou
me sentir mal, e haverá quem ache que estou desrespeitando o casal em núpcias.
Se essas duas mulheres
nubentes de Livramento fossem minhas amigas e me convidassem para o casamento
delas, eu vestiria um bom terno e uma vistosa gravata, embora não goste de
vestir ternos e gravatas. Faria isso por consideração a elas.
Mas elas pretendem
realizar o casamento delas num Centro de TRADIÇÕES Gaúchas, embora, como já
disse e todo mundo sabe, casamentos gays não façam parte das tradições gaúchas,
mesmo havendo milhares, quiçá milhões de gaúchos gays, inclusive dançando a
dança do pezinho nos CTGs.
Vou repetir: um centro de
TRADIÇÕES é feito para que se cultuem as TRADIÇÕES. Entre as TRADIÇÕES não está
entrar lá de tênis, cantar samba ou realizar casamentos entre pessoas do mesmo
sexo. Logo, quem quer andar de tênis, cantar samba ou casar com alguém do mesmo
sexo não fará isso num centro de TRADIÇÕES.
Quando uma juíza determina
que um casamento gay seja celebrado num centro de tradições, ela está
afrontando essas tradições, está afrontando a própria natureza do tal centro.
Ela, a juíza, não está promovendo a tolerância, está fazendo uma provocação.
Tanto é provocação que, aparentemente, gaúchos defensores das tais tradições
preferiram tocar fogo no CTG a vê-lo abrigando um casamento gay. O que é uma
vasta ignorância e um crime, é óbvio, mas dá bem a medida do quanto essas
pessoas se sentiram insultadas.
Um casamento é um ato de
amor, é uma cerimônia de congraçamento, onde deve haver harmonia e alegria. Mas
esse casal quer celebrar sua união em meio à hostilidade, numa entidade em que
não são realizados casamentos gays, precisamente porque lá não é um lugar de
diversidade, de novidades ou modernidades: lá é um lugar de culto a tradições,
e as tradições são sempre as mesmas, ou não seriam tradições. As tradições são
até anacrônicas, porque não são mais desse tempo, são de outro, de um tempo que
não existe mais. Só que há quem goste disso.
Por que, então, casar-se
nesse lugar? Para quê?
Casem-se, gays. Casem-se!
Vivam o seu amor na plenitude, andem de mãos dadas pelas ruas, como fazem os
gays de Nova York e Boston, namorem, troquem beijos apaixonados, sejam felizes
para sempre, e deixem os gaudérios com suas tradições, sua picanha gorda, sua
milonga, sua dança do balaio e com seu passado que talvez jamais tenha
acontecido. Eles estão lá no clube deles, cultuando as tradições deles, achando
que o Rio Grande é o melhor lugar do mundo e que não existe homem mais homem do
que o gaúcho. É para isso que serve CTG. Deixem os tradicionais com suas
tradições, mesmo que sejam antiquadas.
Eles gostam! O problema é
deles. O mundo já está cheio de conflitos, as confusões nos procuram. Para que
ir atrás delas?
texto: David Coimbra
Marcelo Ferla
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