Demorou, mas aconteceu. Eu
virei uma estatística.
Hoje 15/05/2014 eu fui
agredida por um homem, por ser Travesti.
Eu estava indo para a
faculdade, onde curso psicologia... Quando senti que havia algo estranho entre
as minhas pernas, não tinha ninguém atrás de mim, só do meu lado. Quando virei
a cabeça para a direita e vi que o homem ao meu lado estava com a mão esquerda
pra baixo, e essa mão estava entre as minhas pernas. Ele afastou a mão quando
viu que eu olhei, só que como eu não havia dito nada, o fato voltou a
acontecer.
O motorista acabou parando o ônibus bruscamente em um sinal, e eu
pude sentir que a mão do rapaz havia subido e estava na minha bunda. Virei a
cabeça rapidamente, e os três dedos dele estavam encaixados entre a minha
bunda.
Sou alta, mais alta do que
ele, eu tenho 1,85.
O meu braço direito estava
na barra de cima do ônibus, foi esse mesmo braço que eu abaixei e dei uma
cotovelada no homem. Eu disse BEM ALTO:
"Você perdeu alguma
coisa com a mão na minha bunda?"
- E-e-eu não to com a mão
ai não, foi a bolsa.
"FOI A BOLSA O
CARALHO! VOCÊ VAI PASSAR VERGONHA AGORA PRA NÃO REPETIR ISSO COM MENINA NENHUMA!
ISSO QUE VOCÊ FEZ É UMA INVASÃO!"
- Moça você tá louca, tá
vendo coisa, foi a bolsa!
"NÃO ESTOU LOUCA, EU
VI A SUA MÃO! VOCÊ ESTAVA ME APALPANDO!"
Como vocês sabem, eu sou
TRAVESTI. Eu me identifico como Mulher. Mas não posso negar a realidade de que
a minha voz é masculina - ainda mais quando exaltada.
Um outro rapaz, ao me ver
gritando com esse POBRE HOMEM que não tinha "culpa de nada" (tadinho,
ele estava até chorando para não ser moralmente culpado)...
Começou a rir e
disse:
- Você não apalpou uma
mulher não rapaz, isso é um viado! Um traveco! Deve tá indo fazer programa!
Eu, respondi muito
perplexa com as pessoas - inclusive mulheres - do ônibus que estavam rindo da
situação, achando ENGRAÇADO que ele tenha se ENGANADO na hora de
"encoxar".
Como se eu não pudesse ter
direitos, eu já sou OUSADA o suficiente para viver.
"Eu sou TRAVECO sim!
Eu ESTOU INDO PARA A MINHA FACULDADE! E NINGUÉM! MESMO QUE EU FOSSE A MAIOR
PUTA DO BRASIL TERIA O DIREITO DE ENCOSTAR A MÃO NA MINHA BUNDA! VOCÊS MULHERES
DEVERIAM ME APOIAR AO INVÉS DE RIREM DE MIM, POIS ESSA MINHA REAÇÃO VAI IMPEDIR
QUE ESSE NOJENTO FAÇA COM VOCÊS, O QUE ELE FEZ COMIGO."
Esse rapaz que disse que
eu era traveco tirou uma faca da mochila que usava e mandou eu descer do
ônibus, ninguém disse nada. Segundo ele mesmo "Ele ia tirar o demônio do
meu corpo!" Deus é sempre usado como escudo pra quem quer justificar
preconceitos.
Todo mundo havia parado de
rir. Estavam de espectadores... Esperando "O Justiceiro" acabar com a
escória, acabar comigo. Eu - Que não tenho direito ao meu próprio corpo, que se
reclamar sou errada. Que devo agradecer que alguém me queira. Que sou usada
como referência pela sociedade - "Aquela mulher é tão feia que parece uma
travesti!" "Fulana é homem ou mulher?"
"Beltrano comeu um
traveco, deve tá cheio de doença!"
Não desci, esperei ele
guardar a faca e disse calmamente a ele que o ônibus tinha câmera. 3 meninas
pediram pra descer do ônibus e ele deu espaço pra elas descerem, aproveitei e
desci com elas. Nisso, ele me deu um chute enquanto eu estava no ultimo degrau.
Cai no chão. Riram de mim. Minhas mãos ralaram. Meu celular quebrou.
Fiquei
deitada na avenida Tancredo Neves (Em frente a faculdade onde estudo). O lixo.
Ele - não satisfeito - desceu e deu dois chutes na minha cabeça e disse que meu
lugar era ali. No asfalto. Que eu deveria agradecer porque ele não meteu a faca
em mim.
O ônibus foi embora.
Todos estavam na janela,
olhando pra mim. Nenhuma mulher gritou, nenhuma mulher me ajudou. Nenhuma
mulher. Haviam várias.
Uma senhora desceu do
carro que estava atrás e me deitou na calçada. Pegou meu celular e ligou pra
minha mãe.
Minha mãe só disse:
"Eu estou indo pra ai
agora! Porque você reagiu?"
- Mãe, eu cansei.
Vou amanhã ao IML e já fui
na empresa de ônibus da minha cidade, vou conseguir essas gravações.
Fiz também um B.O, a
delegada não acreditou que eu era uma Travesti. Ela me disse que eu lembrava a
filha dela... Só não na altura, me pediu pra deixar 30 cm pra filha que é
pequenininha... Mas só pude deixar minhas lágrimas.
Sociedade, você criou
pessoas doentes.
colaboração: Solange Pires Revorêdo
post: Marcelo Ferla
Sabe o que é mais triste nesta situação? A indiferença das pessoas. Não importa se mulheres ou homens, velhos, adolescentes ou crianças. Às vezes, me pergunto se não estamos vivendo um retrocesso: o desaprendizado do humano. A anulação da capacidade de tentar colocar-se no lugar do outro e, assim, deixar-se tomar pela indignação. Somos todos feitos de carne e osso e me parece que a única identificação seja esta. E os sentimentos, a sensibilidade? Onde ficam? Em que lugar, dentro de nós, decidimos, por assim dizer, adormecer nossa capacidade de sentir. Sempre digo que um dos piores crimes que podemos cometer, seja contra nós ou contra os demais, é anular essa capacidade tão sublime e que nos identifica como "seres humanos". O permitir-se sentir seja o amor, a dor, a alegria, a raiva... isso tudo nos aproxima do que trazemos de mais belo e mais feio em nós. Mas também nos aproxima do outro, cria laços, constrói pontes, nos coloca em conexão com a vida, nos faz crescer. Afinal, fomos feitos para isso também: expandir nossa capacidade de sentir, por que não? A anulação desta capacidade nos afasta do outro, nos torna indiferentes, intolerantes, donos da razão e/ou nutridos do sentimento idiotizante de superioridade. "Eu já sou ousada o suficiente para viver". Foi a parte do texto que mais me tocou. Coragem para nos assumirmos como realmente somos. Parabéns pelo post Marcelo! Abraço!
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