Cláudia Laitano: Terra em
Transe
Colunista
analisa as recentes atrocidades de presídio maranhense a partir de
curta-metragem de Glauber Rocha sobre Sarney
Sarney no curta-metragem
"Maranhão 66", de Glauber Rocha
claudia.laitano@zerohora.com.br
Em meados dos anos 60,
Glauber Rocha filmou a posse de um jovem político que prometia tirar seu Estado
do atraso e da miséria. O curta Maranhão 66, disponível no YouTube, contrapõe
as promessas de renovação do governador recém-eleito, José Sarney, a imagens
reais de pobreza, doença e abandono – chocantes até mesmo para os padrões
brasileiros de indigência.
À luz do que sabemos hoje
sobre a família Sarney e seu comovente empenho para diminuir a miséria do
Maranhão nos últimos 50 anos, é tentador encarar o filme como uma brilhante (e
premonitória) crítica social, capaz de denunciar não apenas as contradições do
jovem político em ascensão, mas a ingenuidade da massa de manobra que saudava
em êxtase o novo governador como se genuinamente acreditasse que lábia, bigodes
e gomalina fossem a solução definitiva para todos os problemas da nação.
O documentário é uma peça
de propaganda no mínimo ambígua: foi encomendado pelo próprio Sarney, que já
não era bobo, ao amigo Glauber, que já não era certo. Nele vemos um orador
cheio de energia parnasiana lendo um discurso que qualquer adversário assinaria
embaixo:
"O Maranhão não quer a desonestidade, a corrupção. O Maranhão não
quer a violência como instrumento da política. O Maranhão não quer a miséria, a
fome, o analfabetismo". Seria Sarney o salvador da pátria ou a nova cara
do continuísmo? É provável que os maranhenses da época não achassem tão
evidente o que hoje nos parece óbvio.
São muitas as lições que
podemos extrair do curta Maranhão 66. Uma delas é que nenhum artista é dono da
posteridade de sua obra. Um filme feito para defender uma ideia pode vir a
assumir o sentido exatamente oposto, sem que sua qualidade estética seja
questionada – um fenômeno parecido aconteceu com a diretora alemã Leni
Riefenstahl, a cineasta de Hitler, que filmou a Olimpíada de 1936 de forma a
exaltar a superioridade ariana e acabou se tornando um símbolo da estética
racista.
Outra é quase uma
obviedade: somos muito mais impactados por imagens do que por palavras – falsas
ou verdadeiras. O arrebatador discurso do jovem e vigoroso Sarney fala de um
Maranhão miserável, doente e corrupto, mas é a imagem de um único homem,
morrendo de fome e de abandono, que nos dá a real dimensão da tragédia que ele
descreve.
Algo parecido aconteceu
esta semana com a divulgação do vídeo com as atrocidades cometidas no presídio
de Pedrinhas. Imagens de virar o estômago, que muitos não tiveram coragem para
assistir, acabaram desencadeando a reação nacional e internacional que todas as
denúncias anteriores não foram capazes de provocar. Chocante, mas necessário.
Por permitir que o clã
Sarney se perpetue no poder, por dar as costas para o que acontece no coração
mais escuro da miséria nacional, por repetir sempre e de novo os mesmos erros,
o Brasil talvez precisasse mesmo enfrentar o mal-estar, a vergonha e a culpa de
ver corpos sem cabeça amontoando-se no chão.
Assista ao curta-metragem
Maranhão 66, de Glauber Rocha:
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