Tempestade quase perfeita
Incêndios de ônibus,
saques, bloqueios de estradas são sinais ominosos que deveriam preocupar mais
que o funk ostentação nos shoppings. Tudo isso acontecia antes esporadicamente.
Depois dos protestos de
junho de 2013, tornou-se rotina. Sugere deterioração grave da coesão social,
pois prejudica, sobretudo, os mais vulneráveis, os habitantes do mesmo bairro
que os perpetradores.
Revela também que o
respeito espontâneo à ordem pública, sem necessidade da repressão, base de todo
convívio civilizado, deixa de funcionar na ausência da polícia.
Põe por terra o mito da
passividade e incapacidade de reação da população brasileira. Começa a
aproximar-nos de dois vizinhos onde esse comportamento tem sido endêmico e
violento: a Argentina e a Venezuela.
No início, o ato de
destruição tinha como objeto o próprio causador da cólera: o trem que
descarrila, o ônibus que aumenta de preço. Agora, não; põe-se fogo no ônibus
porque houve alagamento. Ou como resposta a execuções sumárias pela polícia, a
atropelamentos seguidos nas rodovias.
Não adianta minimizar a
gravidade da tendência dizendo que o nível de vida melhorou e a população ficou
mais exigente. O que se deve perguntar é por que demanda e protesto assumem
formas destrutivas.
Incêndios de veículos e
bloqueios de ruas são certamente formas de expressão exacerbada. Querem nos
dizer algo, mas a linguagem escolhida indica que os canais normais de
representação e mediação não funcionam mais.
Bastaram seis meses sem
manifestações para que as promessas do governo federal, do Congresso, dos
governadores se dissolvessem no ar. Enquanto as soluções de emergência de
mobilidade urbana custam a sair do papel, continua-se a estimular a venda de
automóveis num país onde eles cresceram dez vezes mais que o aumento
demográfico!
As únicas medidas tomadas
foram as fáceis, que adiam e agravam o problema: suspender aumentos de
passagens, pedágios, gasolina, qualquer coisa que gere protesto.
Países afetados duramente
pelo desemprego e a crise econômica como a Espanha e a Grécia não oferecem nem
de longe o panorama de violência destrutiva que o Brasil.
Por que entre nós é tão
tênue o fio que separa a normalidade da lei da selva? Não será por que a
desmoralização dos governos e da representação política chegou a tal extremo
que não deixa ao povo senão a linguagem do desespero e da fúria?
Não é com novo tipo de
bolsa, salário mínimo ou melhora de renda que se dará satisfação ao que depende
de respostas práticas a questões concretas: mobilidade, transporte, segurança
contra criminosos e arbítrio policial, inundações, catástrofes como a da boate
Kiss.
O subdesenvolvimento
brasileiro se manifesta não no baixo crescimento do PIB. Ele reside na
incapacidade de lidar com a complexidade dos desafios da moderna sociedade
urbana. A exasperação do povo nasce desse fracasso.
A fim de evitar a
tempestade perfeita que se aproxima, o caminho não é impor ordem a todo custo,
é encaminhar soluções eficazes a problemas insuportáveis.
Rubens Ricupero
fonte: folha.com
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