A refugiada congolesa que
chegou ao Brasil por acaso.
Ornela Sebo conta como
chegou a Santos e pretende voltar à África para rever a família após quase três
anos
Ornela Mbenga Sebo tem
hoje 23 anos. Ela vivia com seus pais e duas irmãs em uma casa confortável na
cidade de Walikale, na província de Kivu do Norte, na República Democrática do
Congo. Era uma quarta-feira no mês de janeiro em 2011, quando sua vida mudou.
Como de costume, acordou cedo, tomou banho, fez a refeição com sua família e
despediu-se para mais um dia de trabalho sem saber que aquela seria a última
vez que veria seus parentes.
Desde a década de 90, o
Congo vive um conflito político e civil. Mobutu Sese Seko governou o país desde
1965. Após o seu exílio forçado, em 1997, o líder opositor Laurent D. Kabila
passou a ocupar o cargo da presidência. Foi neste momento que grupos de origem
ruandesa se revoltaram contra Kabila, que acabou assassinado em 2001 por seu
guarda-costas. Com isso, o filho, Joseph Kabila, assumiu seu lugar.
Após ser eleito presidente
em 2006, Kabila atuou para desmobilizar vários grupos opositores, mas o ano de
2011 marcou mais uma investida de crimes que assolaram várias cidades
congolesas.
A grave crise humanitária
que acometeu o Congo já deixou quatro milhões de mortos em razão de combates
armados, mas também devido a fome e doenças. Por pouco Ornela sobreviveu e teve
um destino que jamais poderia imaginar. Ela foi violentada e escravizada, mas
conseguiu fugir em um navio mercante rumo ao Brasil. No Rio de Janeiro, a jovem
do Congo contou sua história rica a Opera Mundi.
O
dia em que tudo mudou
Aos 21 anos de idade, Ornela
viu sua casa ser incendiada e se perdeu da família. “Começou o bombardeio e
tiros. A gente pensou que era uma coisa passageira, mas não passou. Quando
acalmou, saí do trabalho para tentar chegar em casa e vi minha casa pegando
fogo”, lembrou.
Desde pequena, seu pai lhe
contava que a guerra já acontecia havia tempos. “É muito difícil sentir na
pele. Fiquei desesperada. Pensava que meus pais estavam lá dentro da casa
pegando fogo. O governo não faz nada e a polícia é a primeira a sair da
cidade”, disse.
Walikale ficou
irreconhecível com prédios incendiados e destruídos. Embora a iminência de um
conflito em Kivu do Norte sempre estivesse presente e os moradores se
preparassem para fugir das cidades e seguir em direção à capital, Kinshasa, a
família de Ornela não previra o ataque. A onda de violência veio sorrateira e
devastou a vida de milhares de pessoas.
“Eram opositores de Ruanda
e Burundi. Desde que a gente mudou o presidente, esse conflito começou. Quando
a gente ouvia que ia ter guerra, saíamos da cidade e seguíamos para Kinshasa.
Dessa vez aconteceu assim de repente”, narrou.
Em choque e sem saber a
quem recorrer, a jovem se juntou a um grupo de pessoas,em direção a Kinshasa. A
esperança era encontrar avós que viviam na capital.
Foram longos dias de
caminhada debaixo de sol, chuva e vento. “Não tinha certeza se estavam vivos,
mas queria encontrar minha outra família. Fugi a pé. Andamos duas semanas.
Encontrei com pessoas que estavam fugindo também, eram idosos, crianças,
mulheres e homens”.
Ornela narra com detalhes
sua jornada. Ao longo dos dias, ela atravessava cidades inteiras a pé,
aparentemente fantasmas. “Não tinha mais ninguém, havia mortos pendurados.
Passamos numa cidade que tinha gente morta na rua, cachorros comendo corpos,
cidades destruídas. Tenho vivo na memória, quando conto, parece que volto no
lugar de novo”.
Ataques
Apesar das intempéries do
caminho, o maior perigo era ser atacada por grupos que “andavam de cidade em
cidade procurando gente para matar”.
“Fingi estar morta. Botei
sangue de alguém no meu corpo, coloquei uma pessoa morta em cima de mim e
prendi a respiração. Chegaram perto, me chutaram para ver se eu estava viva e
foram embora. Eu continuei a caminhada”, relatou.
Até que em mais um cerco,
a jovem não escapou e foi capturada. Perguntada se chegou a ter medo de morrer,
ela disse: “naquela hora não, não tinha mais sentimento, já que meus pais não
estavam, perdi a esperança, não sabia o que fazer”.
Em um grupo de 60 pessoas,
Ornela foi levada à força para a Tanzânia. Sua função era buscar água para os
sequestradores diariamente no porto de uma cidade que nunca soubera o nome.
“Fui para a Tanzânia sendo escravizada. Prendiam a gente com força para dormir
com eles, lavar roupa e fazer comida. Eles comiam e depois botavam a comida no
chão para a gente comer. Eu dormia no chão em um acampamento. Sofri moralmente,
física e mentalmente. Uma senhora que não queria dormir com eles, mataram
cortaram ela (sic) na frente da gente. Bateram em mim algumas vezes, levei
tapas, chutes”, descreveu.
Era um grupo de cerca de
30 pessoas, munidas de armas, granadas e facões. Ela lembra ouvi-los falar em
rádio no idioma swahili. “Acho que o governo sabia dessas coisas. Eles falavam
que iam matar todo mundo”.
Em uma de suas idas e
vindas ao porto para buscar água – eram mais de 30 baldes por dia – Ornela
conheceu um rapaz que ficou intrigado por ver sempre a moça com a mesma roupa.
“Foi o rapaz que me ajudou a fugir. Ele me via todo dia com a mesma roupa
quando eu ia pegar água. Tinha medo, não confiava mais em ninguém”.
O rapaz ganhou sua
confiança e, como trabalhava no porto, arranjou que ela embarcasse escondida em
um navio mercante e disse “você vai fugir para qualquer lugar que for”.
A
fuga
Era uma madrugada em fevereiro,
quando pulou o muro e entrou em um navio escondida. “Era uma questão de vida ou
morte. Ele me deu um saco de amendoim e fiquei onde estava o lixo do navio”.
Ele se chamava Papy.
Ornela nunca mais se esqueceu do nome do rapaz que salvou a sua vida. “É muito
difícil encontrar alguém que quer te ajudar sem nada de volta. Ele me ajudou
bastante”.
Foram duas semanas de
viagem no escuro sem poder sair do depósito de lixo. Sem perguntar para onde
ia, exausta e sem documentos, a jovem apenas sonhava em se ver livre dos
rebeldes.
Moribunda, dias depois
desembarcou numa cidade portuária. “Fui andando procurando alguma coisa para
comer. Perguntei: eu tô aonde? E responderam, você está no Brasil”.
Ela falava português por
ter estado em Angola anos antes. A jovem do Congo estava em Santos. “Fui
perguntando se tinha trabalho e o dono de um bar me deu um suco e um salgado.
Falei que vinha do Congo e tinha acabado de chegar. Um cara do lado disse que conhecia
um angolano me levou até ele. Tudo isso aconteceu no mesmo dia”. Foi acolhida
por um estudante angolano que se solidarizou com sua história e, em menos de um
mês, a chegava no Rio de Janeiro para ser recebida por conterrâneos.
“Me mandaram dinheiro para
comprar passagem de ônibus. Foi o momento mais feliz quando me receberam. Todos
choraram. Eles disseram que iam ajudar a procurar minha família. Foram meus
anjos da guarda”, disse.
No Rio, Ornela reconstruiu
sua vida. Ela vive no bairro de Irajá, no subúrbio carioca, com os quatro
amigos – Felly, Freddy, Raule e Rodrigue. Obteve o status de refugiada no
Brasil e tem o direito de viver e trabalhar como qualquer cidadão brasileiro.
Com a ajuda da Cáritas,
entidade que trabalha em parceria com o governo brasileiro e a ONU para acolher
refugiados, Ornela conseguiu um emprego de recepcionista no Parque Tecnológico
da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Lá fez inúmeras amizades, mas
faltava ainda uma coisa para que se sentisse com a vida reconstruída. Ela
queria encontrar algum parente.
O
reencontro
Desde 2011, nunca mais
falou com ninguém de sua família. Com uma conta do Facebook, seu tio que vive
na França a localizou e quase um ano depois seus pais também a encontraram.
“Mobilizaram gente para
encontrar meus pais, foi gente na minha cidade com fotos procurando. Demorou
uns 10 meses para encontrar. No ano passado eu estava no trabalho, meu celular
tocou e ouvi uma voz diferente. Era minha mãe. Chorei muito. Era tanta alegria,
tudo o que eu queria. Mãe você está viva? Eu parei aqui no Brasil... não sei
bem explicar”.
post: Marcelo Ferla
fonte: Opera Mundi.
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