A dor vinha represada há dias, a mulher desejava apenas
que não vazasse em hora imprópria, mas que controle poderia ter? Estava
dirigindo rumo ao supermercado, quando uma música escapou do rádio para
devorá-la inteira, e então, às dez e vinte de uma manhã de sexta-feira, numa
rua bastante movimentada, ela começou a chorar.
Buscou os óculos na bolsa, mas não desligou o rádio,
pois já não havia remédio, agora que desaguava. Os pensamentos aproveitaram a
correnteza e invadiram o cérebro, cristalinos. Todas as verdades emergiram
juntas: já que não havia mais como parar o sofrimento, ao menos seria prudente
estacionar o carro. Procurou uma rua calma, encostou no meio-fio, mas havia
pessoas na calçada. Arrancou. Em outra rua, estacionou diante de um prédio, mas
logo viu o porteiro levantando do banquinho e se aproximando, quem é essa
estranha a esta hora? Foi embora.
Deslizou por avenidas que exigiam mais velocidade, mas
não conseguia ultrapassar os quarenta quilômetros por hora, impossível ir
rápido para lugar nenhum. Ela passeava lentamente pela tristeza que finalmente
tinha vindo ao seu encontro, sem escolher o momento.
Perto do supermercado, quando já parecia que estava
começando a se controlar, uma nova implosão jogou mais e mais lágrimas pra
fora, precisava parar. Foi para os arredores de um coléio, mas ali não era
seguro, havia muitos conhecidos.
Tentou uma pequena e abandonada alameda residencial,
mas viu olhos espiando por trás das cortinas. Foi um pouco mais adiante, aprou
de novo em frente a um terreno baldio, e aí foi o medo que não permitiu que
ficasse, era só o que faltava ser vítima de alguma outra violência, já lhe
bastava o assalto dessa emoção que não cessava.
O ray-ban apoiado no nariz vermelho tentava esconder a
pele úmida. Que ninguém alinhe o carro ao lado do meu neste sinal fechado, ela
pensava enquanto pensava também em como estava vivendo a vida errada, a vida de
outra pessoa que não era ela. Por onde começar a procurar aquela outra que
havia sido um dia? Não se dava conta de que era exatamente o que acontecia, o
tumultuado encontro dela com ela mesma a lhe atropelar por dentro.
Diminuiu o ritmo perto de uma igreja, mas havia uma
parada de ônibus, impossível deter-se ali. Encostou diante de outro prédio, mas
já havia morado naquela rua. Na frente do parque, não. Alguém viria
cumprimentar, sempre há alguém que lembra de você de algum lugar.
Não conseguindo estacionar o carro, foi obrigada a
estancar o choro. Limpou o rosto com um lenço de papel que encontrou no
porta-luvas, olhou pelo retrovisor para ver se a aparência denunciava sua
situação, e resolveu que dava para enfrentar a vida, bastava não tirar o
ray-ban da cara.
Chegando ao supermercado, pegou um carrinho de compras
e consultou a lista que a empregada lhe dera. Farinha. Carne de segunda.
Azeite. papel higiênico. Cebola. A mulher que ela não era assumira de novo o
comando.
Martha Medeiros
post: Marcelo Ferla
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