MARCIA TIBURI - XXY, ou
adivinha quem é a mulherzinha?
As duas engenheiras viviam
muito bem dividindo as tarefas em um laboratório da universidade. Uma era a
chefe; a outra, aluna e admiradora. Vamos chamar a chefe do laboratório de X e
a técnica de X1. X1 fora aprovada em um concurso para um cargo técnico por seus
méritos como pesquisadora, currículo, experiência, aquelas coisas todas. Como
eram doutoras e uma mais estudiosa que a outra, logo X e X1 se tornaram grandes
parceiras nos trabalhos do cotidiano acadêmico. E viviam, X e X1, muito
felizes.
Até que um dia, havendo
uma vaga para o mesmo cargo técnico que X1 ocupava, foi aprovado um homem que
veio trabalhar no laboratório.
O homem, vamos chamá-lo de
Y, pois é importante que estejamos atentas ao senso de abstração que uma
história dessas requer. O homem, daqui para frente chamado de Y, pois bem, era
um corintiano praticamente fundamentalista. Sendo corintiana a maior parte da
população masculina do Brasil, não há nada demais nisso. Torcedor alucinado do
seu time, Y também jogava futebol toda semana e assistia aos jogos de outros
times.
Poderíamos dizer que Y é
um homem típico, mas isso nos faria cair na perigosa formulação do
essencialismo em que os diferentes não são contemplados, por isso é mais
adequado dizer que se trata de um “tipo de homem”. Fato é que Y é um tipo de
homem muito simples: gosta de cerveja e de mulheres, entendendo, de tanto ter
visto as propagandas de cerveja que o formaram subjetivamente, que esta é uma
equação em que os termos são necessariamente ligados um ao outro. E isso porque
esse tipo de homem que Y é tem um pequeno probleminha relativo ao seu jeito de
adquirir conhecimento: ao aprender algo, não aceita mais opiniões diferentes
sobre o assunto.
Em resumo, isso quer dizer
que Y é autoritário.
Aí começa o nosso
problema, como espectadores dessa cena. Y, sendo apenas graduado, foi trabalhar
num laboratório onde há duas mulheres, X e X1, que são doutoras. Ele não
entende que a equação mulher + cerveja não esteja exposta diante dele quando
trabalha com elas. Não é apenas a característica gnosiológica de Y que fica
comprometida neste momento. Sabemos, nós que assistimos à cena, que todo
aprendizado tem relação com os afetos, e, portanto, é mais do que claro que as
emoções de Y estão intensamente presentes, inclusive sua compreensão falsa
sobre as mulheres e seu autoritarismo fazem parte disso tudo. Pergunta que nos
fica: se Y é autoritário, ou seja, aquele que acha que tem razão em tudo, como
fica diante de duas mulheres doutoras, ou seja, que têm mais experiência e
conhecimento que ele?
Para compreendermos o que
se passa, vejamos alguns detalhes importantes.
Já sabemos que X1 é
doutora e Y não. Precisamos saber que X1 tem senso de duas coisas que
chamaremos aqui de “coleguismo” e “profissionalismo”. Logo, X1 sabe que, mesmo
não admirando o modo de ser de alguém com quem convive, ela precisa ser moral
ou eticamente correta em relação a esta pessoa, no caso Y. E este senso moral e
ético implica ajudar Y no próprio trabalho, posto que estando há mais tempo no
serviço, tendo experiência com as máquinas, e tendo feito pesquisa de ponta que
lhe rendeu seu doutoramento, X1, de fato, tem como orientar Y nos procedimentos
técnicos diários. E assim o faz, mesmo percebendo os vastos limites de Y.
E Y, por sua vez, pode
aproveitar tudo isso para seu desenvolvimento profissional e, até mesmo,
pessoal. Acontece que sendo Y um tipo de homem autoritário, ou seja, dono de um
duplo suposto saber, tanto sobre as mulheres quanto sobre seus conhecimentos
adquiridos em geral na ciência onde se graduou, sente-se ofendido por estar
justamente sendo orientado ou, em alguns casos, contestado por uma mulher, no
caso X1.
No laboratório, vemos Y
dar um soco na parede, rasgar formulários, ficar vermelho de raiva, gritar,
atirar longe o jaleco e sair pisando firme porta afora… Isso quando X1 se
aproxima dele avisando-o de que está cometendo um erro no procedimento.
No outro lado da cena,
vemos Y entrando no gabinete de X, após um de seus escândalos. Vemos Y ora de
cabeça baixa, ora de olhos fundos a choramingar que se sente chateado, opresso,
que é, afinal, um pobrezinho. X fica com pena de Y, afinal, ele está tão
magoado…
X, então, evidentemente
compadecida, vai até X1 dizendo:
— Pobrezinho de Y, ele
ficou tão magoado com o que você fez X1…
— Mas o que eu poderia fazer,
X? Precisava avisá-lo do erro, poderíamos perder dias de trabalho.
— Você tem que entender,
X1, que você está aqui há muito mais tempo, conhece todos os equipamentos do
laboratório. Você é brilhante, tem mestrado e doutorado, tem um desempenho fantástico.
— Ora, obrigada — disse X1
timidamente.
— Só que isso o assusta,
X1. Você tem que ajudar Y a lidar com isso.
— Eu?
— Claro, quem mais poderia
ajudá-lo?
X1 não entendeu muito bem.
Responsável que era, estava sempre atenta a seus próprios limites. Sabendo-se
bem jovem, X1 costumava estudar muito e tentar aprender com quem fosse mais
experiente do que ela, por exemplo X.
Deste modo, ficou pensando no que poderia
estar acontecendo entre eles: X, X1 e Y. E não encontrando explicação sugeriu o
seguinte:
— X, penso que esta seja
uma questão que Y deveria resolver conversando com a mãe dele ou fazendo
terapia. Não creio que os problemas emocionais de Y sejam problema meu. Não uso
meus atributos e títulos para me posicionar acima de Y. Não lhe trago meus
problemas pessoais, não penso que possa responsabilizar Y por algum que eu
venha a ter. Ao contrário, estamos no mesmo cargo, apesar de nossa formação
diferente, ensino-lhe tudo o que posso para que o trabalho flua da melhor
maneira.
— Y está com um problema
quanto à sua virilidade no trabalho, você, X1, o humilha ao ganhar mais do que
ele, ao saber mais do que ele, ao ser mais brilhante do que ele. Você tem que
ajudá-lo para que o trabalho não seja prejudicado — diz X, convencida do papel
de X1.
X1 permanece boquiaberta.
X se retira olhando para X1 com um pedido de condescendência, cheio de anseios
de compreensão, afinal que há um homem do tipo de Y naquele local de trabalho
em que a exigência de conhecimento técnico e racionalidade estão sempre em
xeque. E, no entanto, aquele homem do tipo de Y tem um problema emocional que
vem perturbando a paz coletiva.
X1, perplexa como não
poderia deixar de ser, percebe a inversão de valores exposta na percepção de X.
X exige de X1 não apenas que seja responsável pelo trabalho, pelo progresso
técnico de Y, mas também por suas emoções, como se Y fosse um bebê, uma
criança, ou, se quisermos usar um termo politicamente incorreto, mas carregado
de significado simbólico: uma mulherzinha.
Em frente ao espelho do
banheiro, nós que podemos ver as cenas todas, inclusive a cena por trás da
cena, vemos Y olhando em seus próprios olhos. Y chora e chora muito. Então,
como se apenas encenasse, Y para de chorar e exibe os músculos dos braços ao
espelho para seu próprio deleite. Y dá uma olhada no celular, vê quanto de
dinheiro tem na carteira, chupa a barriga pra dentro e, antes de deixar o
expediente — afinal o horário já se foi — treina um sorriso no mesmo espelho
onde cinco minutos antes, exibia suas lágrimas.
Nós, que observamos a cena
e gostamos muito de entender o que se passa, sabemos que Y é histérico. Sabemos
que a histeria não é só um problema feminino. Ao contrário, há muitos homens
histéricos. Mas os homens mesmos não gostam dessa ideia e, por isso, raramente
a ciência até então dominada pelos homens investigou o tema a fundo.
Há um problema com a
representação de gênero na questão da histeria. Isso relativamente ao fato de
escolher como se faz papel de homem e como se faz papel de mulher. Assim como
as famosas mulheres histéricas de que Freud tratou desejariam ser o homem que
lhes faltava, o homem histérico desejaria ser a mulher que lhe falta.
A falta, é claro, é
simbólica. Devemos saber que a histeria é fruto de um oco, de um vazio que o
histérico se esforça por esconder. Daí que ele faça cena para desviar a atenção
alheia. No caso de Y, trata-se de um vazio do conhecimento que é também um
vazio do poder. É bem óbvio que Y se sinta ofendido com X1, mais jovem que ele
e mais bem sucedida… Além de tudo, X1 rompe com a equação mulher + cerveja
demonstrando, de modo contundente, como Y não entendeu nada da vida. E ele quer
esconder isso tudo.
Há cada vez mais homens do
tipo de Y em nossa cultura, desde que as mulheres saíram de casa e foram
trabalhar, mostraram sua competência em todos os campos, do trabalho à ciência,
e cada vez mais em todas as áreas, da economia à política… Estes homens do tipo
de Y representam o novo sexo frágil, mas tentam mostrar forças e, quando
percebem que não vão conseguir, caem na mesma histeria que as mulheres de
antigamente impedidas de realizar-se em outra esfera que do casamento e da
maternidade.
O homem histérico do tipo de Y pode torcer para o Timão, ter
músculos imensos, pode beber todas, “pegar” todas, mas é sempre o
homem-mulherzinha dando provas de sua fragilidade, mostrando que o sistema
lógico não é tão lógico, que a harmonia não vale a pena. Um histérico gosta de
atrapalhar quando tudo parece estar bem. Problema é que, às vezes, a fraqueza
seja uma força e que, no extremo os covardes como são os histéricos, se tornem
violentos. Daí que nesses tempos a violência passional de homens contra
mulheres cresça tanto. O homem que bate e mata é tão histérico quanto o que tem
ataques dentro do laboratório ou em qualquer outro ambiente de trabalho ou de
casa.
Desejamos que X continue
preocupada com o que acontece em seu laboratório. Desejamos que X1 continue
sendo uma pessoa responsável e lúcida e siga com seu trabalho sem se deixar
enganar pelos falsos pobrezinhos. Nós a apoiamos na sua conduta moral e ética.
E desejamos que Y vá fazer uma terapia para poder ser a mulher que ele, como
histérico, deseja ser.
Como sempre digo para
minhas amigas, o problema nunca é um homem que quer você, mas um homem que quer
“ser”
você.
texto: Marcia Tiburi
post: Marcelo Ferla
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Deixe sua opinião.