Mulheres admiráveis.
MARCIA TIBURI - Saber e
sofrer
Dizer que o conhecimento
faz sofrer tornou-se habitual. O sofrimento foi ligado à filosofia e à
literatura a ponto de que não podemos imaginar um filósofo, ou alguém com cara
de sábio em meio a livros, pulando carnaval ou curtindo uma piscina. Isso é um
mito. Os filósofos e os escritores são ainda hoje constantemente vistos como
pessoas que sofrem por conhecerem a alma humana em sua profundidade inacessível
aos demais. Não quer dizer que conheçam a alma, nem que haja nela uma
profundidade inacessível.
Isto é apenas possível. É, sobretudo, uma crença
compartilhada e, como tal, organiza nossa visão de muitas coisas. Nunca
saberemos se os filósofos antigos eram todos sofredores, nem se conheciam a
alma humana. Sabemos apenas que deixaram seu testemunho, no qual confiamos e
com os quais devemos discutir hoje para entender o nosso tempo.
Muitos dos pensadores
contribuíram com esta imagem tratando o sofrimento como seu objeto de estudos,
como Schopenhauer no século XIX. Outros fizeram de seu próprio sofrimento o
objeto de suas filosofias, como Pascal no século XVII. Todos tentaram entender
a relação entre conhecimento e sofrimento. Dos antigos, Aristóteles, por
exemplo, usou um termo de Hipócrates, a melancolia, para explicar a relação do
saber com o sofrimento.
Tanto para o filósofo, quanto para o médico, a
melancolia era um temperamento que explicava, inclusive, a inclinação
intelectual de uma pessoa. Além de elucidar o pêndulo entre a loucura e
genialidade que caracterizava alguns indivíduos.
Os mais interessantes,
porém, são alguns dos padres filósofos da Idade Média que falavam de um certo
“demônio do meio dia” que assolava os monges como um fantasma obsedante. Antes
dos filósofos perderem a crença em entidades sobrenaturais devido ao longo
processo de secularização que levou ao modo de se viver no ocidente sempre a
crer em ciência e tecnologia, o dito demônio era considerado a causa da
dispersão na leitura, da insatisfação no convívio dentro do mosteiro, do
rancor, do torpor, da vontade de morrer, das fantasias de catástrofe, da
preguiça, da indolência, e também da culpa por viver no mesmo lugar sem capacidade
de agir e ajudar os outros, ao mesmo tempo que responsável por uma crítica
geral a tudo a todos que o cercavam em sua experiência monacal.
Era o misto de
maldade com desespero, de amor com ódio, de autocrítica com crítica dos outros
que caracterizava o quadro melancólico que tanto fazia com que o monge se
sentisse um inútil, quanto fazia com que ele se tornasse um escritor, um
artista envolvido em ilustrar os livros, um filósofo em busca das verdades
próximas ou distantes.
A
doença é o que cura
Na verdade, muitos
acreditavam que a doença não era ruim. Hugo de São Vítor, por exemplo, falava
em uma tristitia utilis, uma tristeza útil. Ela era necessária para a evolução
espiritual. Esta idéia pode parecer estranha, mas nos ensina algo para os nossos
tempos sombrios. Os monges acreditavam que a doença a que chamavam melancolia
carregava em si o seu contrário, uma forma de saúde. Ela era uma espécie de
cura.
Neste aspecto não somos
diferentes dos monges medievais, só perdemos a capacidade de olhar para o que
chamamos sofrimento como se ele fosse apenas um modo de ser e o preço pago
quando da descoberta da vida. Mas se o valorizássemos melhor (e não mais)
talvez pudéssemos aprender que a condição humana sempre foi a mesma, que não
somos diferentes e, portanto, a nossa dor não é diferente. Desde sempre, se nos
pensamos como espécie, sofremos. Quem tenta saber mais ou melhor sofre de um
novo jeito. Em vez de afundar no lodo da dor emocional, podemos descobrir o
potencial de transformação do conhecimento. Que o sofrimento não é o resultado
do conhecimento, mas seu ponto de partida... saber pode ser mais a cura e a
libertação da dor do que a dor.
Conhecer
para quê?
Que pensar nos faz sofrer
pode até ser verdade. Tanto quanto pode ser verdade que pensar pode ser um
prazer imenso. Quem se ocupa em conhecer a si mesmo e ao mundo sabe que fará a
experiência de prazer e desprazer nesta viagem. Os gregos tinham a idéia do
phármakon, remédio e veneno ao mesmo tempo, para explicar a dialética da vida.
Ela se aplica ao conhecimento. Podemos sofrer com ele e, do mesmo modo,
alegrarmo-nos.
A melancolia antiga é
ancestral direta da nossa depressão. O excesso de depressão nos dias de hoje
não deixa de ter relação com a sociedade do conhecimento e da informação em que
vivemos. Queremos resolver tudo pelo conhecimento, mas esquecemos de pensar que
o conhecimento é uma saída que deve servir a algo mais do que o mero progresso
da ciência.
O conhecimento como potencial de saída da infelicidade, mesmo que
tenha nascido dela. Se alguém busca conhecer a si é porque deve pretender com
isso ser feliz. Ser feliz é mais ético e mais bonito do que apenas buscar a si
mesmo como uma verdade absoluta. Sobre esta verdade de si ninguém tem garantia.
A verdade não deve ser uma ilusão da resposta, mas a busca.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Deixe sua opinião.