Mulheres admiráveis.
LYA LUFT - Arrumar sótãos
e porões
Quem acompanha o que penso
há décadas sabe que o centro de minhas perplexidades tem sido a família, esse
chão inaugural sobre o qual caminharemos pelo resto de nossa vida, mais sólido
ou mais esburacado, propiciando que se ande melhor ou se tropece mais.
Acontecimentos espantosos
mostrados na mídia nestes dias testemunham que precisamos ser menos românticos
e mais lúcidos para que se salve uma semente de humanidade ali onde a família
deixou de existir. Bandos de crianças e pré-adolescentes fazem arrastões em
hotéis ou lojas numa grande cidade. Alguns, presos, são devolvidos às mães.
Ouve-se claramente uma dessas pseudomães criticar a filha, não por ter roubado,
mas por ter "roubado no mesmo lugar, sua besta". Uma autoridade
insistia brandamente em que ainda se devia apostar na família. Sinto muito:
nesses casos extremos, não acredito nisso. Algumas famílias são a origem do mal
(e não só entre os mais desvalidos). Ali não existem colo, abraço, escuta ou
palavra: existem brutalidade. obscenidade e crueldade. Ali não se formam
pessoas, e é insensato devolver crianças ou pré-adolescentes a esse tipo de
mãe. É uma desesperada, dirão alguns, e pode ser. Mas ali o conceito
"família" não existe.
Nem acredito que essas
crianças enfurecidas, pequenos selvagens que apanhados destruíram,
literalmente, postos de polícia e salas de atendimento de menores infratores,
chutando policiais, atirando objetos longe, quebrando e rasgando o que chegava
ao alcance de sua violência, tenham possibilidade de melhoria, se devolvidas a
sua pseudofamília. Retomadas às ruas, são um perigo para si e para todos. A lei
deveria ser muito firme nesses casos, para socorrer esses fantasmas com carinha
de criança e alma de sombra, acalmando sua violência, incutindo-lhes o que seja
convívio, dignidade, respeito por si e pelo outro: longo caminho, longo
aprendizado, longo esforço da sociedade em compensar essas pessoinhas pelo
abandono em que as deixou.
Quando se fala em redimir
os miseráveis do país retirando-os desse contexto, deve-se incluir, de
imediato, o trio moradia, saúde e educação, sem o qual somos quase bichos.
Perdoem-me os ainda líricos, mas o que se viu mais de uma vez nessas crianças
foi violência nua e crua. Talvez estivessem drogadas.
Certamente não conhecem
outra coisa no ambiente insano no qual nasceram.
Mas precisam, por isso mesmo,
de contenção, limite, autoridade amorosa mas firme, orientação e, antes de
tudo, cuidados básicos consigo mesmas.
Onde a família virou
apenas um mito distante, mais essencial é a ideia da educação, que não se
restringe a caderno e lápis, mas começa com a tentativa de salvar essas
crianças do seu meio com um atendimento básico em saúde e higiene, conceitos
bem fundamentais de vida, afeto, respeito, o que, naturalmente, inclui limites,
disciplina, restrições e encaminhamento paulatino, paciente mas com autoridade,
a uma condição de vida mais humana. Educação começa aí, inclui essas coisas, é
muitíssimo maior do que isso que chamamos ensino, e é condição dele.
Erradicar a miséria onde
ainda se vive em condições inimagináveis é ainda mais urgente do que ordenar o
sótão da casa, procurando expulsar os ratos e os insetos daninhos ali
instalados, reestruturar funcionamentos, dar novo sentido, deixar entrar
claridade, botar em ação espanadores, panos, água limpa, enceradeiras e
ordenação dos objetos. Mas talvez as duas coisas sejam essenciais e não sejam
incompatíveis, embora exijam força e empenho quase sobre-humanos: o país olha
com alguma esperança para essa possibilidade.
Quem assistiu ao espetáculo
daquelas crianças ferozes aposta em se juntarem as duas pontas numa grande
arrumação de casa visando aos espectros do porão e aos ratos e lacraias do
sótão, custe o que custar, entretanto oposições, reclamações,. superando jogos
de poder e cobiça de cargos, encarando o principal: limpeza, luz, ordem,
eficiência, decência, fazendo funcionar melhor a dramática engrenagem social em
que nos debatemos.
texto: Lya Luft
post: Marcelo Ferla
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