Moradora da Capital que
sobreviveu a Auschwitz relembra os horrores do nazismo.
Aos
90 anos, num abrigo na zona norte de Porto Alegre, Sara Perelmuter ainda é
assombrada à noite por pesadelos que a levam de volta ao megacampo de
extermínio nazista desmantelado pelo Exército Vermelho em 27 de janeiro de 1945.
Por:
Jaqueline Sordi
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Sara
escolheu o Brasil para refazer vida destroçada
Foto:
Fernando Gomes / Agencia RBS
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Com a voz baixa, o olhar
por vezes atento, por outras, distante, Sara Perelmuter, 90 anos, anuncia que
se aproxima um dia comemorativo. Tentando se agarrar à memória, que hoje
insiste em falhar, sabe que é seu dever rememorar a importância da data, ainda
que as lembranças passeiem vagas por sua cabeça. Há exatos 70 anos, em 27 de
janeiro de 1945, os soldados soviéticos adentravam os portões do campo de
concentração de Auschwitz, na Polônia, libertando os 7 mil prisioneiros
remanescentes daquela que foi a maior fábrica de morte da história. Sara é uma
das sobreviventes.
– Vai ser o dia das
vítimas do Holocausto. Acho que sonhei nesta noite com isso – disse a
ex-prisioneira a Zero Hora no domingo.
A data marca o início do
retorno de milhares de judeus, deste e de outros campos de extermínio
espalhados pela Europa, à esperança de uma vida digna.
Entre eles, Sara
reencontrou, no auge dos seus 20 anos – e pesando apenas 25 quilos –, uma
chance de reconstruir sua história.
Uma das poucas sobreviventes de Auschwitz
vivendo no Rio Grande do Sul, ela relembra, com a ajuda do filho adotivo, Isac,
61 anos, um pouco dos dias em que se alimentou, literalmente, de sonhos:
– Assim que foi levada ao
campo de concentração, minha mãe sonhava todas as noites que jantava um farto
banquete ao lado da família. Acordava acreditando estar sem fome e dava a única
batata crua, que recebiam para comer por dia, para a tia dela, ajudando-a a
sobreviver – relatou o filho.
Foi aos 15 anos que Sara
viu pais e irmãos pela última vez. Natural da então Checoslováquia, ela viajara
à Hungria para cuidar de uma tia doente quando soube que seus parentes haviam
sido levados a um campo de concentração. Deles, nunca mais teve notícias.
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A
mãe e o irmão de Sara (Foto: arquivo pessoal)
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O ano era 1940, e a guerra
se alastrava pelo continente europeu. Não demorou muito para que a jovem e a
tia também fossem recolhidas pelos nazistas, em maio de 1941, e levadas a
Auschwitz, o maior campo de extermínio. Ao chegar ao local, elas e outras
centenas de prisioneiros foram postos em uma fila que se bifurcava em duas
levas. Os da direita iam para o trabalho.
Os da esquerda, para a morte. Os
últimos, segurando sabonetes, acreditavam estar a caminho do banho, mas, em vez
de água, eram expostos ao gás e morriam asfixiados.
– Todos nós víamos isso.
Eu ia ao banheiro no dia seguinte, e lá estavam os corpos socados no chão.
Eles
matavam os velhos, as crianças e os deficientes físicos – descreveu Sara há
alguns anos, em um relato destinado a guardar a memória do genocídio.
Durante os meses em que
permaneceu em Auschwitz, dormia em pequenos beliches com outras dezenas de
prisioneiros, em um espaço que não lhes permitia estender os pés. Obrigada a
ingerir venenos como parte de experimentos de métodos de esterilização em massa,
Sara não pôde ter filhos.
Recrutamento para fábrica
de Schindler foi breve alívio.
Trabalhando no setor de
armamentos do campo, ela relembra que as condições em que viviam eram
“semelhantes às de animais”.
Quando lhes era oferecida sopa para comer – o que
chamavam de sopa, na verdade era uma tigela aguada com alguns resquícios de
vegetais que se concentravam no fundo –, tinham de fracionar as porções em
pequenas quantidades e bebê-las com os dedos. Colher era artigo de luxo.
Ao
final de cada semana de trabalho, recebiam como pagamento sabonetes que,
depois, descobriu-se serem feitos com a gordura dos prisioneiros mortos. Outras
poucas vezes, a recompensa era geleia de maçã.
Durante os oito meses em
que ficou no campo, vivenciou a experiência recorrente de sentir a pele
queimada em carne viva pelas horas de exposição ao sol e aprendeu a conviver
com o esgotamento físico e mental e a ideia de morte iminente.
A primeira luz de
esperança para a jovem, então com 16 anos, veio do engenheiro alemão Oskar Schindler.
Em 1942, ele recrutou judeus prisioneiros para trabalhar em sua fábrica de
alumínio, fora do campo. Sara estava entre as 800 mulheres selecionadas.
Pouco
depois, entretanto, foi levada de volta a Auschwitz.
No dia da libertação, os
prisioneiros foram acordados por gritos: a guerra estava terminada.
– Nós chorávamos, nos
abraçávamos e não sabíamos o que fazer. Eles (a Cruz Vermelha) nos deram latas
de conserva de carne, sardinha, pão, e a gente jogava isso para dentro dos
vagões, para os homens que estavam muito fracos – relembra.
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Sara
Perelmuter foi prisioneira do regime nazista entre 1941 e 1945 (Foto arquivo
pessoal)
Quarenta quilos mais
magra, Sara foi levada por soldados americanos à Hungria, onde permaneceu por
pouco tempo. Depois de um período na Itália, optou por recomeçar a vida no
Brasil, onde desembarcou em 1947.
Desde 1956 escolheu o Rio Grande do Sul para
residir.
Vivendo em um asilo na zona norte de Porto Alegre, continua presa às
lembranças do campo. À noite, pesadelos insistem em levá-la a viajar pelas
memórias do terror:
– É algo que não desejo
para ninguém. A gente vai vivendo, se arrastando, as coisas vão passando, mas
não dá para esquecer.
post: Marcelo Ferla
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