V de
Vingança: uma bomba contra o sistema
Carloina Correia da Mota
|
Evey (Natalie Portman) e V (Hugo Weaving) |
Divulgação
A revista norte-americana Time questiona: "É possível
para um grande estúdio de Hollywood fazer um filme de U$ 50 milhões no qual o
herói é um terrorista? Um terrorista que aparece usando um colete de dinamite
de um homem-bomba, que adota como lema, debaixo de uma máscara de madeira que
ele nunca tira, que explodir um prédio pode mudar o mundo´?". A
resposta está nas telas e faz com que o filme
V de Vingança, que estreou nos cinemas
brasileiros em 7 de abril, seja uma agradável surpresa.
O filme se baseia nos quadrinhos de Alan Moore e David Lloyd
publicados em 1988. Baseado em sua insatisfação diante das adaptações de seus
outros trabalhos, como Constantine, Liga Extraordinária e Do inferno, Alan
Moore reprovou a realização do filme antes mesmo das filmagens. David Lloyd,
por sua vez, colaborou com a produção e deu declarações afirmando que o filme
seria, obrigatoriamente, algo diferente da história em quadrinhos original.
Mas, mesmo com a reprovação de Moore e com alterações na história que serão
sentidas por alguns fãs, o filme mantém o que há de essencial e subversivo dos
quadrinhos.
Roteirizado pelos irmãos Wachowski, da trilogia Matrix, e
dirigido pelo iniciante James Mcteigue, que trabalhou com eles na mesma
trilogia, V de Vingança é um blockbuster hollywoodiano que provavelmente terá
grandes platéias. Quem interpreta V é Hugo Weaving, que atuou em Matrix, na
pele do Agente Smith. O surpreendente é que a indústria do cinema não conseguiu
impedir que o filme fosse uma ácida crítica a George Bush e Tony Blair, nem que
tivesse como herói um mascarado explodindo prédios públicos.
O personagem principal, que quer ser chamado apenas pelo
codinome V, não tira sua máscara nem para fritar um ovo. O filme se passa numa
Inglaterra de 2020, que tem à frente um governo totalitário, eleito com o
discurso de que a população deve abrir mão de seus direitos e liberdades para
que o Estado a proteja da ameaça terrorista.
V planeja explodir o prédio do Parlamento no dia 5 de
novembro. A data se refere à história de Guy Fawkes, um soldado inglês,
católico, que, num ato contra o governo protestante da época, pretendia
destruir o prédio do Parlamento britânico. Ele foi preso em 5 de novembro de
1605 e enforcado alguns meses depois. A noite de 5 de novembro é lembrada até
hoje na Inglaterra com fogos, fogueiras e com a destruição de bonecos de Guy
Fawkes, algo como a malhação de Judas.
Dos quadrinhos para as telas
Os fãs dos quadrinhos notarão muitas diferenças entre a
graphic novel e o filme. Tais diferenças, entretanto, não devem desagradar a
maioria deles, pois o resultado é um grande filme, que preserva o melhor da
história e acrescenta aspectos importantes, inexistentes no papel. Além disso,
a versão cinematográfica deve levar muitos às bancas e livrarias em busca dos
quadrinhos, que foram relançados com a estréia.
A maioria das supressões são justificadas pelo tempo de
duração da história. Nos quadrinhos, a história é bastante complexa e dura
vários anos, algo complicado de se transpor para o cinema. Isso foi
determinante para o filme não poder mostrar a lenta transformação da personagem
Evey dos quadrinhos, que no início era uma garota assustada de 16 anos e depois
se torna a corajosa parceira de V. Nas telas, Evey (Natalie Portman, de Free
Zone e Closer) já surge como uma mulher decidida e questionadora.
O detetive Finch (Stephen Rea, de Entrevista com o Vampiro)
dos quadrinhos é muito mais perturbado, menos decidido, que seu correspondente
na adaptação. O filme também não mostra que sua compreensão sobre V aparece
durante uma visão que teve, durante uma viagem de LSD. Outra diferença é que,
nos quadrinhos, o personagem V faz discursos a favor da anarquia e da ausência
de líderes, o que desaparece no filme.
Esteticamente o filme é grandioso. Aproveita o contraste de
luz e sombra dos desenhos de Lloyd, que compunham um ambiente depressivo para a
sociedade totalitária do futuro. O filme acrescenta a esse clima imagens mais
impactantes, sem o espalhafato tecnólogico de Matrix. A escuridão é explorada
em todo o seu mistério. E a máscara de V, diante das diferentes cenas e
luminosidades, possui uma expressividade sem igual.
Indivíduo e coletivo
V é um personagem singular, cativante, expressivo, criativo
e teatral. Tais características são tão suas quanto seus planos de
transformação social e sua participação nesse processo.
Como os super-heróis da Marvel, ele usa máscaras e usa um
codinome em sua missão de salvar o mundo. No entanto, há uma grande diferença
entre V e Batman ou Super-homem, muito além do método de atentados.
Neste ponto o filme supera os quadrinhos. O V das grandes
telas defende a necessidade (e não é somente um detalhe) da ação das massas nas
transformações. V pretende explodir prédios, mas também incitar o povo a se
rebelar contra o governo tirano. Segundo ele, explodir um prédio como o
Parlamento é algo simbólico, mas um símbolo não vale nada se não tiver o povo
na rua. Mesmo que sua principal tática seja essa, por diversas vezes V mostra
que a ação isolada é insuficiente. Assim, o atentado proposto por V se
diferencia, por exemplo, dos atentados do 11 de setembro de 2001. Mesmo
acertando um importante símbolo do imperialismo, a morte de milhares de
pessoas, entre elas muitos imigrantes, não levou a uma mobilização dos
trabalhadores e deu mais fôlego a Bush e Blair.
E, apesar de todas as ações serem planejadas por V, não há
um heroísmo messiânico. A princípio é uma luta individual, uma vingança com
ações planejadas por ele, inclusive com um toque teatral. Entretanto, o
individual se quebra, em primeiro lugar, pela máscara e pelo codinome, que
escondem até o fim a identidade do personagem. Depois, essa individualidade se
dissolve por completo na multiplicação das máscaras na multidão, expressa ainda
melhor na fala de V, que, ao ser ameaçado com uma arma, afirma que "você
pode matar um homem, mas não um ideal". E a batalha deixa de ser uma
atitude isolada, fruto de uma vingança pessoal, que dá nome ao filme.
Além da liberdade
Há lacunas, frestas. Os fãs mais puristas poderão reclamar
das diferenças entre o filme e os quadrinhos. Outros poderão argumentar que os
discursos de V mais próximos ao anarquismo foram suprimidos na versão
cinematográfica. Uma cena de luta muito matrix´ também era dispensável.
Os problemas da sociedade que são destacados no filme e
combatidos pelo personagem principal se resumem à falta de liberdade numa
sociedade autoritária. Nem o filme nem os quadrinhos questionam a desigualdade
social, se há miséria, desemprego ou fome naquela realidade.
Entretanto, por mais divergências que se possa ter com os
métodos da luta isolada ou da guerrilha, com o anarquismo ou a ausência dele,
ou com o tom liberal do discurso, V de Vingança faz sua revolução nas telas.
Não se muda o mundo explodindo um prédio, mas nenhuma lacuna prejudica a
importância de este personagem mascarado estar em cinemas de todo o planeta com
falas como "ninguém devia temer seu governo. O governo é que deveria temer
seu povo".
Marcelo Ferla
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