Mulheres Admiráveis.
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Um pé preso na escada rolante, uma mulher que chora,
um aeroporto em que os aviões não conseguem voar.
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ELIANE BRUM - De passagem
Durou menos de um minuto.
Um homem velho prende o pé na escada rolante do aeroporto. Sua filha, um degrau
acima, impede que caia, abraçando o corpo do pai. Mas a escada continua seu
movimento de máquina, e ela sente que não conseguirá aguentar o peso do pai por
muito mais tempo naquela posição. “Alguém me ajude”, ela pede. Neste instante,
é como se a cena congelasse numa tela. O velho quase na horizontal, o rosto
contorcido pelo pânico, mas além da possibilidade de gritar.
A filha prestes a
soltá-lo por absoluta falta de forças para continuar a sustentá-lo. Então, a
cena descongela. Um homem mais jovem corre até eles, galgando degraus, e segura
o velho. O pé é destravado, e os três sobem. Logo atrás, a mulher do velho
homem, que até então estivera fora da cena, sente as pernas falharem. Ela
começa a cair, mas alguém atrás dela a segura. Agarrada a um estranho, ela sobe
a escada rolante e desaparece no andar de cima.
Embaixo, uma mulher ainda
jovem começa a chorar. Ela está na fila para fazer o check-in nas máquinas. É
sexta-feira, 24 de agosto, e o aeroporto está fechado pela neblina. Como de
hábito, a Infraero e as companhias aéreas comportam-se como se esta fosse uma
novidade para a qual elas não precisassem estar preparadas. Os passageiros
tropeçam em raiva e irritação a cada passo. Foram interrompidos – e estão
acuados.
A mulher chora na fila.
Deslocada. Está sozinha e puxa uma mala de rodinhas da Disney. A cena da escada
rolante terminou, mas ela não a esquece. O que ela viu que não pode esquecer? A
compreensão do velho de que as pernas já não o sustentam. O pavor ao perceber
que desta vez fora salvo, mas que a queda continua esperando-o logo ali. A
mulher que viu seu homem falhar, a fragilidade exposta justo agora que ela
tanto precisa dele. A certeza de que ele já não pode mais protegê-la. A
percepção de que ela o segue em mais de um sentido – e não apenas na escada
rolante. A filha que não tem forças para impedir a queda do pai e não sabe como
viver com essa descoberta.
A mulher na fila agora
soluça. Ela vasculha a bolsa com mãos nervosas. Depois de algum tempo tira de
lá os óculos escuros. Enfia os óculos no rosto, mas é tarde demais. Ao seu
redor, já a descobriram. E por um momento os passageiros esquecem-se de que
perderam o controle sobre os voos e sobre as horas, que gostariam de bater no
primeiro funcionário da companhia aérea que passasse porque compromissos teriam
de ser adiados, telefonemas precisariam ser completados, a cuidadosa
programação do dia arruinara-se.
Esquecem-se de tudo isso
por um instante. A mulher que chora por causa da cena da escada rolante, por
causa de seus velhos, talvez por causa dela mesma, dá a eles algo ao qual se
agarram com as unhas: devolve a eles a ilusão de que ainda estão no controle.
Eles movem-se ao redor dela como um bando de hienas em um documentário da
National Geographic. “Você quer um copo d’água?”, pergunta uma mulher de nariz
comprido. A boca é preocupada, mas os olhos a desmentem. É curiosidade o que há
neles, ela quer saber mais.
A mulher que chora apenas nega com a cabeça. “Essa
aí está despreparada para a vida”, comenta um casal de velhos um pouco alto
demais. Velhos que ainda não caíram na escada rolante. “Deve estar na TPM”,
ironiza um homem de uns 30 anos, camiseta apertada para mostrar os bíceps e
tríceps. Seu amigo, marombado também, ri. “Mulher intensa demais não dá pra
aguentar nem na cama.” Há uma beleza subjetiva em um corpo malhado, na
tentativa pungente de criar uma armadura de músculos para se proteger daquilo
para o qual não existe proteção. Os velhos da escada rolante sabem que não há
armadura capaz de salvá-los, os jovens musculosos não. Não ainda.
A mulher continua
chorando, mas agora menos. Logo será preciso recomeçar a falar sobre o “caos
aéreo”. E as frases-boia voltarão: “Imagina como será na Copa do Mundo”... Por
enquanto, há alguns segundos a mais nos quais se sentirão seguros. A mulher que
chora lhes deu a satisfação da superioridade.
Diante dela, sentem-se fortes por
serem mais capazes que ela de esconder seu medo. É para isso que servem as
pessoas que choram diante de cenas como as de um velho com o pé preso na escada
rolante, as pessoas que andam por aí em carne viva. Para acalmar todas as
outras.
Então acaba. A mulher
consegue fazer o seu check-in e parte arrastando sua mala da Disney, com os
óculos escuros que não a protegeram. O momento se desfaz. Cinco minutos depois
vozes alteradas são ouvidas em outro ponto do saguão. Mais um espasmo. Um
passageiro berra com o funcionário de uma companhia aérea que tenta convencê-lo
a aceitar o atraso do voo. Ele quase encosta seu rosto para onde o sangue
afluiu no rosto do homem protegido por um crachá. Ele não é intenso demais.
Pelo menos ninguém comenta algo assim. Ele está certo, dizem, está
reivindicando seus direitos.
O direito do passageiro de
passar. De não ser interrompido, de não ser parado. De não se lembrar, talvez,
de que não controla nem mesmo sua agenda.
Em algum momento, mais
tarde do que cedo, todos eles embarcam. Seguem andando. Voando. Alguns
agarrados a amuletos porque temem cair lá de cima.
Os velhos da escada rolante
carregando em passos trôpegos o peso da sua fragilidade, da vida que jamais
voltará a ser a mesma depois da quase queda. A mulher arrastando a mala de rodinhas
da Disney com seus óculos escuros descobrindo o rosto, quando tentava
encobri-lo. Os jovens malhados com sua armadura quase terna, mais desprotegidos
do que todos os outros. O homem que ameaçou machucar o funcionário com crachá
com uma história de potência para contar em casa. Embarcam. Seguem. Passam.
Alcançaram seu destino
ainda na sexta-feira. Preencherão muitas vezes o formulário do bilhete aéreo,
esquecendo-se do quanto é enganadora a pergunta sobre a escolha do destino. No
dia seguinte, sábado, a maioria deve ter lido na internet ou visto na TV que
que Neil Armstrong morreu. Ele havia voado também. A distâncias mais largas do
que a maioria sonhou. Um dos primeiros a ver-se de fora, a contemplar a
insignificância do planeta de sua espécie em meio à vastidão do universo. “É um
pequeno passo para o homem, um grande salto para a humanidade”, anunciou. Neil
Armstrong alcançou a Lua e descobriu, no sábado, que o mais sobre-humano entre
todos os homens era impotente para escapar da condição humana.
Que não havia
mais como saltar, não havia nem mesmo passos pequenos. Um dia antes, o velho
homem da escada rolante – quem será ele? – libertara o pé e superara o homem da
Lua.
texto:Eliane Brum
post: Marcelo Ferla
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