O corajoso texto de uma
judia brasileira sobre Israel e Gaza.
O
belíssimo texto de uma socióloga e judia brasileira que assume a crítica aos
crimes historicamente cometidos pelo Estado de Israel contra o povo da
Palestina.
Texto publicado em 6 de
Agosto.
“Sou judia e Israel não me
representa”
Hoje, dia 6 de agosto, um
pequeno grupo de judeus foi em frente ao consulado israelense em São Paulo e
manifestou seu desgosto com relação às políticas israelenses por meio de
cartazes e palavras de ordem.
Àquelas pessoas que
pensavam não existirem judeus brasileiros contrários às ações etnocráticas e
opressoras perpetradas pelo estado de Israel, este grupo respondeu com firmeza:
existimos.
Gritamos em alto e bom som
que não aceitamos que Israel promova segregação e massacre em nosso nome – não
só o massacre das últimas semanas, cuja comunidade internacional acompanhou com
mais atenção, mas o massacre diário sofrido pela sociedade palestina.
Quando o primeiro judeu
veio discutir com o grupo (“Vocês não têm vergonha?”), nos lembramos da
responsabilidade que temos em lembrar ao mundo de que a vergonha deve vir de
quem legitima a opressão.
Soubemos que estávamos no caminho certo.
O ato de hoje foi pontual
mas, ainda que não represente um grupo grande, homogêneo e consolidado, indica
algo muito significativo: vozes de judeus que publicamente criticam Israel.
Somos judeus que nunca
encontraram o espaço ideal para nos manifestar dentro ou fora da comunidade
judaica: dentro, mesmo os mais progressistas resistem em admitir a
responsabilidade de Israel no massacre em curso; fora, os discursos não raro
desembocam em antissemitismo.
Foi necessário que cada um
de nós passasse por processos similares de amadurecimento político e pessoal
para que nos sentíssemos compelidos a enfrentar os riscos de sermos vistos como
“traidores”, “self-hating jews” ou “apoiadores de terroristas” para expressar
nossa indignação.
Desconstrução
Faz parte do
amadurecimento perceber com mais clareza a influência que fatores como família,
escola e amigos tiveram na nossa formação.
Não há como fugir da
pressão que os familiares e os pares exercem sobre nós. Qualquer característica
considerada um desvio da normatividade esperada – sexualidade, posição política
ou até preferência futebolística – é rapidamente hostilizada.
Até aí, nenhuma novidade.
Dentro da comunidade
judaica não é diferente. Mesmo as pessoas judias mais distantes dela já se
depararam com o esforço das lideranças judaicas em reproduzir o sionismo seja
nas escolas, nos movimentos juvenis, nos clubes, nas sinagogas ou em outros
ambientes de socialização.
As fotografias de infância
de muitos de nós têm no fundo uma bandeira de Israel – às vezes ao lado de uma
bandeira brasileira, mas nem sempre. Aprendemos a brincar de soldados de uma
forma menos ingênua do que institucionalizada.
Aprendemos que a trágica
história de perseguição contada pelos nossos avós não é um relato só do passado
mas também um alerta.
Aprendemos nas aulas de
história judaica que o nosso povo não tinha para onde ir e, ao encontrar uma
terra deserta e desenvolver tecnologia para trabalhá-la, atraiu a inveja dos
vizinhos árabes. Aprendemos que o judaísmo – ou seria o sionismo? – é parte
integral da nossa identidade.
Aprendemos a ter medo.
Aprendemos a nos orgulhar das conquistas israelenses como se fossem nossas.
Aprendemos que o único
lugar seguro no mundo para nós, judeus potencialmente alvos de perseguição, é
Israel (ainda que lá seja provavelmente um dos lugares mais perigosos para se
estar).
Aprendemos que usufruir
daquela terra é direito divino nosso. Aprendemos a considerar os palestinos
como inferiores, terroristas e, no limite, selvagens.
Pois bem. Chega uma hora
em que, sem grande esforço, as coisas deixam de se encaixar tão perfeitamente.
A situação dos refugiados
não bate com o mito sionista da “terra sem povo para povo sem terra”. Os
documentos israelenses abertos a público na década de 1980 contam uma história
diferente.
A concessão de cidadania
israelense a quem nunca esteve lá chama atenção se comparada ao status de
refugiado de quem sempre esteve.
A população pobre,
desamparada e cercada nos territórios palestinos não parece representar um
agente ativo tão significativo nessa dita guerra.
As viagens patrocinadas
pela comunidade à Israel não mostram o que há do outro lado do muro. O excesso
de propaganda sionista (“hasbará”) começa a incomodar.
Aqueles parentes que
defendem, na política brasileira, a direita mais caricata também defendem
Israel. Pior: os que defendem a esquerda tradicional brasileira também defendem
Israel.
Não é fácil desconstruir
algo que diz respeito a quem você é, principalmente quando há tanta pressão
para que você continue se identificando com uma relação que, por mais afetiva
que pareça, é política: a relação dos judeus do mundo com Israel.
Muitos de nós tiveram
problemas familiares sérios a partir da menor demonstração de desalinhamento
com as verdades professadas.
Amigos de muitos anos se
ofenderam e interromperam a amizade. Algumas relações profissionais foram
seriamente abaladas.
Sem falar nas ameaças –
das mais sutis às mais diretas. As pessoas que, por entenderem o judaísmo como
equivalente ao sionismo e este como equivalente ao apoio incondicional às
políticas israelenses se sentem pessoalmente atacadas com críticas políticas.
É preciso ser ao mesmo
tempo compreensivo e intolerante com o que elas pensam e ajudar no processo de
questionamento por que passam.
É preciso dizer não à
opressão.
post: Marcelo Ferla
fonte: Pragmatismo político
texto: Elena Judensnaider Knijnik
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