As incertezas geradas pela globalização do mercado de trabalho nos países desenvolvidos (pondo em risco a antiga política do welfare state); a inclusão na economia de mercado de nações até há pouco tempo dependentes de regimes totalitários (como no Leste europeu); a onda de regimes democráticos surgidos na América Latina nos últimos vinte anos e que não conseguiram responder a contento aos reptos crescentes das suas sociedades; as reformas de inspiração liberal, feitas nas economias dos países sub-desenvolvidos, ao longo das últimas décadas, à luz do “Consenso de Washington”, reformas que, se bem reduziram a inflação de modo geral, no entanto não tiveram os resultados esperados do ângulo da produtividade, ainda muito sufocada pelas tradições estatizantes e familísticas na gestão da coisa pública; a democratização sui generis (com forte presença de uma liderança tradicional e carismática), em países do mundo islâmico (Síria, Líbia, Irã); a entrada das nações africanas no período pós-colonial (ao longo da segunda metade do século passado) no caminho da regularização da vida democrática, (num contexto ainda marcado fortemente pelo tribalismo); a desaceleração da economia estadunidense e os freios que esse fenômeno está a produzir em outras economias, particularmente no nosso Continente, essas seriam algumas das variáveis que têm contribuído para o surgimento do populismo, que pode ser considerado como uma espécie de doença que afeta às democracias no momento em que se encontram em crise (de crescimento ou de desgaste).
Na Itália, às voltas com a dramática redução do crescimento econômico nos últimos dez anos e com a endêmica instabilidade parlamentar, vemos ressurgir o populista Berlusconi como novo chefe do governo.
A própria campanha para indicação dos candidatos democratas à sucessão estadunidense não tem estado vazia de aspectos de coloração populista, presentes nos discursos dos dois aspirantes desse segmento político, na disputa por um eleitorado insatisfeito com os rumos tomados pela superpotência americana.
Na América Latina, é rica a plêiade de líderes populistas que chegaram ao poder nos últimos anos: o casal Kirschner na Argentina, o coronel Chávez na Venezuela, o presidente Correa no Equador, Evo Morales na Bolívia e, nas últimas semanas, o bispo Lugo no Paraguai.
No Brasil, o populismo carismático de Lula, já está na sua segunda rodada e ameaça com se prolongar num messiânico “terceiro mandato”, que é insinuado ao ensejo de pesquisas de opinião favoráveis ao governo e encomendadas por sindicatos com forte presença estatal.
Não me deterei numa caracterização do Populismo, nas suas várias manifestações ao longo do século XX. Isso exigiria um trabalho de mais fôlego, só para dar conta de populismos tradicionais como o varguista, no Brasil, o peronista, na Argentina, o gaitanista (seguido, depois, pelo rojas-pinillista ou anapista), na Colômbia, ou o encarnado por ditadores militares como Juan Vicente Gómez ou Pérez Jiménez, na Venezuela.
Fixarei a atenção no denominado neopopulismo, que acompanha as reações das sociedades hodiernas perante a globalização econômica.
Tratarei, portanto, de fenômeno atual, que se circunscreve às duas últimas décadas do século passado e que abarca, obviamente, os anos transcorridos do presente século XXI.
Pretendo, neste artigo, desenvolver dois aspectos:
I) o conceito de neopopulismo;
II) de que forma esse fenômeno afeta a vida democrática da América do Sul, atualmente e no futuro próximo?
Para este autor, “o populismo, oscilando entre o autoritarismo e o hiper-democratismo, bem como entre o conservadorismo e o progressismo reformista – não poderia ser considerado nem como uma ideologia política, nem como um tipo de regime, mas como um estilo político, alicerçado no recurso sistemático à retórica de apelo ao povo e à posta em marcha de um modelo de legitimação de tipo carismático, o mais adequado para valorizar a mudança.
É justamente porque se trata de um estilo, uma forma vazia preenchida do seu jeito por cada líder, que o populismo pode ser posto ao serviço de objetivos antidemocráticos, bem como de uma vontade de democratização” [Taguieff, 2007: 9].
Dois estudiosos brasileiros, Alberto Oliva e Mário Guerreiro [2007: 7], fazem uma caracterização semelhante:
“Longe de ser uma doutrina, o populismo é um modo de fazer política e de exercer o poder”.
Alicerçar-me-ei, na identificação dessas características, também nos estudos desenvolvidos por outros estudiosos entre os que se contam Alan Greenspan, Horacio Vasquez-Rial, Simon Schwartzman, Alberto Oliva, Mário Guerreiro, Alvaro Vargas Llosa, Francisco Wefort, Guillermo O´ Donnell, etc.
O estilo político do neopopulismo se encarna na figura do salvador do povo, quando se juntam os aspectos da retórica fácil com os relativos à modalidade de legitimação que Max Weber [1977: 847-888] identificava como carismática.
A respeito, frisa Taguieff [2007: 10]: “a combinação do populismo-retórico com o populismo-legitimação carismática encarna-se na figura do demagogo ou do tribuno do povo, personagem que é, ao mesmo tempo, expressão, guia e salvador do povo, e que se apresenta como homem providencial e realizador de milagres – ou de um porvir maravilhoso”.
O povo, para o líder populista, é uma entidade mítica afinada misteriosamente com o seu carisma pessoal.
Essa feição arcaica do populismo é assim destacada por Taguieff [2007: 31-32]:
“É necessário não desconhecer a dimensão mitológica de todo populismo, que reside na tese, sempre pressuposta, de que o povo existe e de que ele é dotado de uma unidade que lhe confere a sua identidade (ou a unicidade de sua figura), em face das elites ou das potências ameaçadoras, ou contra elas”.
O líder populista trabalha somente para a sua causa pessoal e, para isso, elabora um discurso em que esta aparece identificada com a causa do povo, dando ensejo, assim, a uma deformação do princípio da soberania; ele é um demagogo cínico.
A respeito da alteração que o princípio da soberania sofre nas mãos do líder populista, escreve Taguieff [2007: 10-11]:
“O princípio democrático da soberania, isolado e privilegiado em relação aos princípios liberais da separação e limitação dos poderes, pode ser objeto de interpretações diversas e inspirar múltiplas práticas, para as quais ele serve de modo de legitimação.
Nesse sentido, o populismo é definível como a demagogia da época democrática, ou como a forma mínima assumida pela demagogia, quando o povo é tratado como uma categoria que pertence ao domínio do sagrado e fazendo parte de um culto”.
A propósito, os mencionados estudiosos destacam o seguinte:
“O fato de povo ser uma entidade de difícil caracterização permite aos populistas se apresentarem como seus porta-vozes.
A nebulosidade do conceito de povo propicia as mais diferentes formas de retórica engabeladora.
É da ambigüidade que se nutre o populismo.
A busca de um contato direto com as massas tem geralmente por objetivo manipular tanto seu imaginário quanto suas carências.
A despeito de todas as sublimações, o sonho dos populistas é exercer o poder da forma a mais concentrada possível” [guerreiro – Oliva, 2007: 7].
O líder neopopulista é um demagogo que explora sistematicamente, no seu discurso, o ressentimento das massas contra as elites.
Esse ressentimento alicerça-se, no caso latino-americano, como frisa Álvaro Vargas Llosa [2007: 19], no fato de que “temos uma cultura de pedintes, em lugar de uma cultura de criadores de riqueza”.
A respeito desse artifício, escreve Taguieff: “Supõe-se, de início, que um líder é populista, quando se esforça por fazer crer para fazer agir, se dirigindo diretamente ao povo para melhor manipulá-lo e utilizá-lo.
O que vem a conferir ao termo populismo o sentido do velho termo demagogia é ou bem o ato de agradar ao povo, e mais particularmente, a parte baixa do povo, para fazê-lo agir ou aceitar alguma coisa, sob a condição de que esse discurso agradável implique uma denúncia dos supostos responsáveis pelos males que são deplorados – no caso, as elites.
É por isso que numerosos intérpretes do fenômeno populista insistem na exploração cínica, pelo líder, do ressentimento das massas contra as elites.
O que leva a reduzir o populismo a alguma coisa como a patologia da democracia liberal/pluralista” [Taguieff, 2007: 11/12].
Modalidade de democratismo que termina sepultando as possibilidades de construção de uma democracia pluralista verdadeiramente moderna.
A propósito, escreve Taguieff [2007: 29], enfatizando a ambigüidade do fenômeno populista, que oscila “entre um hiper-democratismo (realização do sonho da transparência veiculada pelo ideal da democracia direta) e um antidemocratismo alimentado por pulsões ou pretensões autoritárias.
Este é um aspecto essencial daquilo que pode ser caracterizado como a ambigüidade do populismo.
Mas podemos entender também, por populismo, alguma coisa como um democratismo abusivo, uma demissão das elites da inteligência e do saber em face da massa, cujo poder funciona, desde logo, como poder de decisão.
O triunfo da doxa constitui uma figura da tirania do maior número, índice do reino da quantidade.
O povo sempre teria razão contra aqueles que o contradizem, tidos como rivais ou inimigos”.
É uma versão atual e bem latino-americana da tirania da maioria, que Tocqueville [1992: 300-318] identificava como um dos riscos da democracia.
O líder neopopulista é um sedutor das massas populares, utilizando, para isso, a mídia e as pesquisas de opinião.
“Nas democracias representativas modernas – frisa Taguieff [2007: 12] -, que se inclinam em direção à democracia de opinião, trata-se, para todo populista, de induzir o maior número possível de cidadãos a votarem no sedutor que ele encarna, notadamente no meio de uma popularidade construída, legitimada e medida pelas pesquisas de opinião.
Trata-se de levá-los a confiar no líder, se esforçando por seduzir, por todos os meios disponíveis, o maior número possível de eleitores”.
Confiem em mim!
Essa seria a palavra de ordem.
Modalidade ampla de paternalismo, que convive muito bem com as antigas formas de patrimonialismo, nos contextos em que se preservaram tais formas de dominação, alheias ao contratualismo europeu-ocidental.
A propósito, Taguieff escreve:
“Ora, a análise das formações populistas permite estabelecer que o fenômeno neopopulista, na Europa, não pressupõe a existência de uma coerência doutrinária, que conferiria identidade a uma ideologia populista.
Isso vale, também, para as formas neopopulistas que surgem com as novas democracias pós-ditatoriais ou pós-totalitárias, democracias frágeis, que se observam notadamente na América Latina ou na Europa do Leste.
A mensagem neopopulista se reduz a um confiem em mim!
Ou sigam-me!
Slogans pronunciados por demagogos expertos na exploração dos recursos mediáticos.
A bem da verdade, não há ideologia populista, somente havendo sínteses entre protestas populistas e tal ou qual construção ideológica.
O populismo constitui um estilo político alicerçado na convocação ao povo, bem como sobre o culto da defesa do povo, compatível, em princípio, com todas as grandes ideologias políticas (liberalismo, nacionalismo, socialismo, fascismo, anarquismo, etc.)”.
O neopopulismo contemporâneo parece emergir do desgaste das democracias representativas, a fim de apresentar uma alternativa democrática, de caráter contestatório.
Na América Latina, como destaca O´ Donnell [1986: II, 935] tal fenômeno ocorre como reação contra “formas tradicionais de dominação autoritária” que conduziram a “democracias de participação restrita”.
Seja como for, o populismo é uma resposta diante de práticas políticas insatisfatórias e que não representam os interesses da sociedade.
A propósito deste ponto, escreve Taguieff [2007: 15]:
“A crise da representação, interpretada nos anos 1990 como crise de confiança nas democracias pluralistas, parece ter feito surgir condutas ou atitudes de desconfiança que, pela sua normalização social, tendem a desenhar a figura de uma antidemocracia de caráter contestatório”.
Nos hodiernos populismos telúricos latino-americanos (chavista, zapatista, “moralista”, etc.), os líderes aparecem como iconoclastas dos sistemas tradicionais de governo.
Tudo deve ir por água abaixo: leis, decisões judiciais, instituições das denominadas democracias burguesas, dando a impressão de que se colocou em marcha uma verdadeira tsunami que levará tudo para o fundo, só restando o líder populista e o povo.
Essa iconoclastia aparece como operação de limpeza a ser efetivada, à maneira rousseauniana, pelos “puros” (o líder e os seus asseclas).
“Enfim, o apelo direto ao povo contra os de cima ou contra os do outro lado orienta-se pela dupla prescrição de romper com o sistema político existente e de mudá-lo: acabar com a burocracia, a partidocracia, a plutocracia, etc.
Apelo à mudança, que amiúde assume a forma de um varrer a sujeira ou de uma grande operação de limpeza.
Quando prevalece a função tribunícia que expressa politicamente a protesta social, o populismo pode ser chamado de contestatório”.
O líder neopopulista apela para a vinculação direta entre ele e o povo, dispensadas mediações institucionais, como as que dizem relação ao governo representativo.
É uma espécie de ação direta do líder carismático sobre as massas, em que, certamente, são utilizadas as novas tecnologias como a comunicação on line, via chats, blogs ou foros de debate.
A propósito, escreve Taguieff: [2007: 16]:
“Enquanto que, nas democracias pluralistas instaladas e tranqüilas, a política supõe mediações e contemporizações – sendo que os debates e as deliberações requerem tempo, bem como mediadores e lugares de mediação -, o imaginário antipolítico do populismo centra-se totalmente na rejeição das mediações, consideradas inúteis ou nocivas.
Os líderes populistas propõem-se a derrubar a barreira ou a distância, ou seja, qualquer diferença entre governantes e governados, representantes e representados, ou bem sugerem que eles possuem o poder para abolir qualquer distância entre os desejos e a sua satisfação, de suspender este aspecto do princípio da realidade que é constituído pela inserção na duração, pelo respeito aos prazos, pela contemporização”.
O líder-salvador tem o poder extraordinário de satisfazer instantaneamente os desejos das massas, só com a dinâmica onipotente de sua vontade, e sem que intermedeiem outras instâncias pessoais ou institucionais.
O líder-salvador pode encarnar uma tradição ancestral de antigas civilizações, como é o caso de Evo Morales, identificado e coroado por um grupo de intelectuais bolivianos na qualidade de “líder supremo dos indígenas do Continente Americano” [Carranza – Ustariz, 2006: 9], antes de ser aclamado como tal pelo povo camponês, quando da sua eleição para a presidência de seu país.
Essa relação direta entre líder populista e povo se expressa, no mundo contemporâneo, pela utilização freqüente da consulta direta via referendum ou plebiscito, promovida pelo líder a fim de firmar a sua vontade sobre quaisquer procedimentos institucionais alheios aos seus propósitos.
É a prática que um neopopulista como Chávez sabe utilizar, de maneira perfeita.
Apela-se, no contexto do populismo contemporâneo, para restabelecer uma relação de semelhança entre o líder e o povo.
As antigas elites são desprezadas, na medida em que não se assemelham à massa popular, não possuem a sua alma.
O governo, para ser legítimo, tem de estar presidido por alguém que tenha a cara e a alma do povão.
Essa tese da ausência de semelhança entre líderes e liderados e da necessidade de restabelecê-la é antiga e se remonta a fontes diversas: Rousseau, Robespierre e Stuart Mill. [Cf. Taguieff, 2007: 17].
Essas elites não retratam a cara dos seus povos respectivos.
A respeito, o Taguieff escreve:
“O que chama a atenção do leitor, à primeira vista, em relação aos discursos nacional-populistas contemporâneos é, de um lado, a oposição à construção européia (indo do euro-ceticismo até a pura e simples rejeição), e, de outro lado, a denúncia virulenta contra a globalização.
O antieuropeismo não é aqui mais do que uma variável do antielitismo: se a União européia é objeto de críticas, é porque ela seria construída e dirigida por elites separadas do povo e convertidas em estrangeiras em face dos povos europeus.
Quanto aos atores sociais mobilizados pelos partidos populistas, podem ser caracterizados, genericamente, como perdedores da globalização.
Na retórica do novo populismo, à denúncia do sistema político vigente se junta, pois, a de que se trata de uma realidade mundialista, interpretada como um complô contra os povos e as nações.
O antielitismo e a antiglobalização formam um círculo vicioso que se alimenta do imaginário conspiratório [Taguieff, 2007: 28]”.
8) Ampla fenotipia.
Sendo o neopopulismo um estilo propriamente dito, o seu formato pode informar diversos conteúdos.
Três são, segundo Taguieff, as principais manifestações do fenômeno: populismo político, agrário e cultural.
Eis a caracterização que deles traça o mencionado autor:
“Os populismos políticos apresentam-se como mobilizações ou como regimes compatíveis com qualquer ideologia (socialismo, comunismo, nacionalismo, fascismo anarquismo liberalismo, etc.).
Assim, os cesarismos populistas latino-americanos são formas de nacionalismo; há populismos que são reacionários, até mesmo racistas, mas não se lhes pode desconhecer nem as realizações parciais da democracia populista (na Suíça, por exemplo), nem o populismo dos políticos, que pode ser definido, segundo Margaret Canovan, como o apelo à reunião do povo para além das diferenças ideológicas.
Os populismos agrários, alicerçados na idealização do povo-camponês, ou na estrita defesa dos seus interesses, podem estar ligados a uma forma de messianismo (o populismo russo), a uma reação antiurbana e antiestatizante (o radicalismo dos proprietários rurais de certos Estados norte-americanos) ou a uma variante do nacionalismo étnico (Polônia, Romênia).
Quanto ao populismo cultural, manifesta-se na literatura, na pintura ou no cinema, todas as vezes que, nessas manifestações artísticas, predominam temas referidos à vida do povo comum, do povinho ou da gente do lugar, como se dizia antigamente ou, como se diz hoje, das massas ou dos de baixo”. [Taguieff, 2007: 20-21].
O estilo neopopulista de fazer política está acompanhado, quase sempre, de uma variante da mídia: a imprensa que denuncia, de forma sistemática, os males sociais como provenientes das artimanhas dos de cima contra os de baixo.
“A sensibilidade populista confunde-se amiúde com a sensibilidade em face da miséria, e o estilo populista com o estilo proletário ou plebeu.
O seu postulado ideológico é que os Grandes ou Os de cima mentem e se enriquecem às expensas das pessoas comuns, descritas como vítimas que sofrem.
Essa sensibilidade que mistura sentimentos de revolta e compaixão se expressa, encenada e instrumentalizada com fins comerciais, em numerosos diários e semanários que rivalizam em matéria de denúncia contra as elites, mediante a revelação de escândalos que as inculpam.
É nesse sentido que se pode dizer que há uma imprensa populista (…)” [Taguieff, 2007: 21].
10) Feição antipolítica.
Estilo eminentemente individual de relacionamento entre o líder carismático e o povo, o neopopulismo é, paradoxalmente, antipolítico, na medida em que rejeita qualquer institucionalização no exercício do poder; o líder populista aproxima-se, destarte, do ideal do mínimo institucional, com a finalidade de manter incólume a sua relação de prestígio pessoal em face do povo.
García Márquez [2005: 41], em O Outono do Patriarca, deixou clara esta característica, ao mostrar a despreocupação do líder – Juan Vicente Gómez, encarnado no Autocrata solitário – para com a estrutura do Estado, reduzido aos limites da sua casa.
Qualquer mediação que escape ao seu poder pessoal incomoda.
Qualquer liderança que apague a sua presença deve ser banida. Taguieff [2007: 22] completa, da seguinte forma, a descrição desta característica do populismo contemporâneo:
“As novas formas de populismo, na Europa especialmente, caracterizam-se pela sua orientação antipolítica, que se revela na aparição de paradoxais partidos anti-partidistas nos contextos marcados pela crise da representação política, até mesmo pela crise de confiança nas democracias representativas.
Daí provém a rejeição à classe política, que implica, por sua vez, na negação das diferenças político-ideológicas institucionalizadas e dos próprios partidos”.
Os novos governantes devem surgir diretamente do seio do povo, sem mediações partidárias ou institucionais.
Apela-se, aqui, para o antigo sentimento jacobino da pureza ou da virtude.
Somente é puro ou virtuoso aquele que provém das entranhas populares.
“O eco que encontram os líderes populistas depende, notadamente, de um fator circunstancial: o sentimento, fortemente espalhado, de que a classe política, afastada, até mesmo segregada do povo é toda ela corrupta, não reformável.
Através da tomada de consciência dessa crise profunda de legitimidade, desenvolve-se a convicção de que é necessário, em conseqüência, mudar as elites dirigentes, fazê-las surgir do povo, a fim de que os governantes se assemelhem aos governados, que os representantes se aproximem, portanto, dos representados.
Essa exigência democrática de similitude é lembrada, entre outros, por John Stuart Mill.
O ideal consiste no seguinte: os governantes devem ser, de modo insofismável, filhos do povo.
É isso precisamente que Platão recusava no regime democrático, em que os governantes se assemelham aos governados e os governados aos governantes, fazendo da democracia um tipo de governo intrinsecamente contingente.
Esse é, também, um velho sonho dirigido especialmente, na modernidade européia, contra o quase-racismo existente no Antigo Regime entre as classes superiores e as inferiores, dos de cima (de sangue claro e puro) e dos de baixo (de sangue vil e abjeto).
Trata-se, pois, de democratizar o elo representativo pela aproximação e a maximização da semelhança entre representantes e representados.
Lucien Jaume destaca criteriosamente que o clube dos Jacobinos assimilou, de Rousseau, aquilo que o poderia legitimar, a saber: a tese normativa de que somente delegados ou mandatários virtuosos (à imagem de um povo virtuoso) poderiam reconciliar a soberania do povo com a sua representação, ou ainda que, para falar como Robespierre, se o corpo representativo não é puro e quase identificado com o povo, a liberdade se perde”.
A respeito desse fenômeno, Guerreiro e Oliva [2007: 9] destacam o seguinte, adotando, nesse ponto, os arrazoados do cientista político Torquato di Tella:
“O fato é que existe uma forma subdesenvolvida de se fazer política, de se administrar e prover serviços públicos essenciais.
A maioria dos países da América do Sul não consegue encaminhar soluções objetivas para seus problemas e dilemas sóciopolítico-econômicos.
Talvez por isso muitos de seus governantes sejam aprendizes de ditadores e recorram à retórica escapista de que só a revolução dá jeito”.
Os hodiernos populismos possuem uma enorme carga de ressentimento em face das dificuldades que enfrentam os países em vias de desenvolvimento.
Os problemas sociais são atribuídos, de forma maniquéia, à presença, no cenário internacional do mundo globalizado, de nações líderes ou poderosas.
Esse sentimento ganha destaque em face dos Estados Unidos (especialmente nos casos latino-americano e árabe), ou de Israel (no caso palestino).
Taguieff [2007: 23] detalha, da seguinte forma, esta característica:
“Quanto ao antiamericanismo que, depois do início dos anos 90, revela-se, via de regra, associado a um anti-sionismo virulento, aparece em todas as formas, de esquerda e de direita, do novo populismo.
O antielitismo assume ali, corriqueiramente, a forma clássica da teoria do complô:
(Dizem-nos mentiras; somos enganados; somos passados para trás), sobre a base da convicção de que o povo é vítima de um complô organizado contra ele pelos de cima ou pelos de fora ou pelos de lugar nenhum, identificados com as elites transnacionais ou cosmopolitas (os novos donos do mundo), que encarnam o mal político.
O antielitismo deriva, amiúde, em conspiracionismo: a globalização é imaginada como a fonte de todos os males da humanidade”.
No caso do neopopulismo brasileiro, é de se destacar o antiamericanismo que inspira a política externa do governo Lula.
No plano internacional, o governo brasileiro preferiu se distanciar dos Estados Unidos e se alinhar com a França, sem levar em consideração que, como frisam Viola e Leis [2007: 121], este país “é o que mais fortemente se contrapõe à agenda econômica brasileira”.
De um modo paradoxal, os neopopulismos telúricos latino-americanos (Chávez, Correa, Morales, Lugo) partem para um acirramento da onda estatizante, a fim de reagir contra as privatizações efetivadas pelas elites liberal-conservadoras nos momentos anteriores.
Elas teriam traído a causa do povo ao entregar às multinacionais a riqueza do país.
Sem que tal processo signifique uma racionalização do Estado, os novos messias partem para estatizar em nome do povo, politizando, nos casos mais moderados (como no populismo petista) as agências reguladoras, que são tiradas do domínio dos técnicos e entregues às lideranças sindicais, essas sim representativas do povão.
No contexto dessa nacionalização, emerge uma espécie de mágica econômica, que produz resultados alvissareiros.
É o denominado por Alan Greenspan de “populismo econômico”, caracterizado da seguinte forma:
“O populismo econômico imagina um mundo mais simples e direto, no qual as estruturas teóricas não passam de dispersões em relação às necessidades evidentes e prementes.
Seus princípios sãos simples.
Se há desemprego, o governo deve contratar os desempregados.
Se o dinheiro está escasso e as taxas de juros, em conseqüência, estão altas, o governo deve impor limites artificiais ou, então, imprimir mais dinheiro.
Se as importações estão ameaçando empregos, proíba as importações” [Greenspan, 2008: 326].
Nele, as oportunidades de trabalho devem ser preservadas, exclusivamente, para os representantes da autêntica nação (francesa, alemã, austríaca, etc.).
A propósito, Taguieff [2007: 26] escreve:
“A segunda vaga populista tem-se caracterizado pela geminação da dimensão contestatória e a de origem nacionalista, privilegiando o motivo da identidade – essencialmente definido contra a ameaça da imigração-invasão.
Essa tendência irrompeu na França, onde a entrada em cena política do Front national (FN) produziu-se em 1983-1984, ao mesmo tempo em que se impunha a figura emblemática de Jean-Marie Le Pen, o seu líder carismático.
Essa onda em seguida tocou a Áustria, com o avanço do Partido da liberdade (FPÖ), encarnado em Jörg Haider a partir de 1986.
A evolução dessas duas formações políticas ilustra a oscilação do novo populismo entre um pólo contestatório e um pólo de identidade: enquanto predomina o exercício da função tribunícia (expressão política do mal-estar social, da raiva de grupos ameaçados ou excluídos), o populismo é de tipo contestatório; já quando prevalecem as preocupações com a identidade (defesa da identidade nacional, rejeição à imigração) apresenta-se como um nacional-populismo”.
Efetivamente, no patrimonialismo encontramos a privatização da iniciativa política por parte dos denominados “donos do poder”.
A sociedade é fraca.
O Estado é mais forte do que a sociedade.
E, no interior deste, a ação do líder é mais forte do que as iniciativas dos membros da sociedade.
Para que as políticas públicas formuladas correspondessem, de fato, aos interesses nacionais, tornar-se-ia necessária a presença atuante dos respectivos Congressos.
No entanto, o que se observa é que em todos os países mencionados, o Poder Executivo entrou em atrito com os outros poderes, tendo havido uma evidente hipertrofia daquele.
Quando não houve confronto declarado com o Legislativo e o Judiciário, registrou-se amplo processo de cooptação por parte do Executivo (com as conseqüentes práticas corruptas de mensalões e outras modalidades cooptativas).
Os Presidentes, via de regra, terminaram assumindo um papel crucial e hipertrofiado no comando do Estado, a partir de reformas constitucionais, como as efetivadas na Venezuela, no Equador e na Bolívia. Formuladas a partir dos pontos de vista particulares de cada um desses mandatários, as políticas públicas terminam-se chocando com os interesses diversificados das suas respectivas sociedades, tendo dado ensejo a profundos conflitos que, como o que está acontecendo na Bolívia, põem em tela de juízo o excessivo centralismo do governo nacional.
Aqueles setores populares que recebem generosamente as verbas oficiais, través de inúmeros programas assistencialistas financiados com os petrodólares, têm dado o seu apoio incondicional ao Chefe do Estado, sendo que nos últimos meses, em decorrência dos problemas de desabastecimento produzidos pela descoordenada ação governamental, esse apoio tem arrefecido.
De qualquer forma, a aliança do chefe do Estado “con los de abajo”, típica do neopopulismo, tem sido uma das notas características do regime venezuelano, bem como a sua política de “mano dura” para com as classes médias, os intelectuais, os empresários (ameaçados volta e meia com a estatização do respectivo setor produtivo) e a imprensa.
Sem mencionar os recentes acontecimentos que, no terreno internacional, involucraram o excêntrico presidente venezuelano (um ator marxista-narcisista, como diz o jornalista Andrés Oppenheimer), com as FARC, ao redor do problema dos reféns da narcoguerrilha colombiana e de obscuras transações ligadas aos lucros desse grupo armado.
Na alça da mira da política exterior bolivariana de Chávez estão, de início, dois países sul-americanos: Bolívia e Equador, possuidores de riquezas petrolíferas e de gás natural.
Notadamente é grande o interesse de Chávez pela Bolívia, situada no coração da América do Sul, a partir de cujo território poderia expandir, de forma mais fácil, a sua “revolução” pelo cone sul do Continente.
Problemas de desabastecimento, de carência de créditos externos para a exploração petroleira e de ordem pública estão a ocorrer na Bolívia, com a queda correspondente nos índices de crescimento econômico e os problemas sociais conhecidos de todos.
Mas que, com certeza, estão a pagar a conta da elevação dos preços dos alimentos e dos combustíveis.
Poder-se-ia falar, no caso boliviano, da “utopía arcaica” (que puxa o fio da história para trás), de que falava Vargas Llosa [1996] ao analisar a obra de um dos grandes autores do gênero indigenista, José Maria Arguedas, autor do clássico romance intitulado Los ríos profundos.
É uma utopia situada no passado longínquo do império incaico, impossível de ser revivido.
Após vários governos que foram colocados em questão pelos movimentos indígenas, o atual mandatário, formado em reconhecida universidade estadunidense, elaborou ampla proposta de reformas que fortaleceram o executivo sobre os demais poderes.
Ampla ação legislativa em benefício das comunidades indígenas foi deflagrada pelo atual presidente equatoriano, ao passo que denunciava o tratado que o Equador tinha com os Estados Unidos para a manutenção da Base de Manta, e negociava a mesma com os chineses.
Amplamente apoiado pelo presidente Chávez, Correa partiu para uma agressiva política de confronto com o governo da Colômbia, a partir da morte do segundo homem das FARC em território equatoriano, pelas forças armadas colombianas.
Parece que, tanto no caso equatoriano quanto no boliviano, os petrodólares do presidente Chávez são um argumento forte para apoiar a “revolução bolivariana”, que busca integrar os países da América do Sul ao redor da Venezuela, e em confronto com os Estados Unidos.
É clara a simpatia – e a dependência em matéria de petrodólares para as passadas eleições – do atual governo argentino em face do presidente Chávez.
O recente confronto com os tradicionais produtores rurais deixa clara a aliança “con los de abajo”, mas aumentará, com certeza, os problemas de desabastecimento, comprometendo, de outro lado, a capacidade exportadora do país.
Movimento dos Sem Terra, Movimento dos Afetados por Barragens, Movimento dos Quilombolas, Movimento dos Indígenas, Movimento dos Sem Teto, etc., são inúmeras as entidades contempladas pelos generosos recursos oficiais, distribuídos à torta e à direita por centenas de Ongs, cuja gestão fugiu ao controle do governo brasileiro. Isso para não falar do programa “Bolsa Família”, que se tornou verdadeira festança assistencialista, devido ao fato de que não há seguimento significativo do Estado em face desses benefícios, que em muito fizeram crescer os gastos públicos.
(Fica evidente, aqui, a presença do modelo ético pombalino do “Estado Empresário que garante a riqueza da nação”).
É clara a tolerância oficial em face dos desmandos de movimentos como o MST, cujos ativistas peitam autoridades locais, destroem patrimônio público, invadem propriedades produtivas, desconhecem sumariamente decisões da justiça, aniquilam centros de pesquisa agropecuária, tudo em aliança com grupos internacionais como Via Campesina e contando com a complacência do ministério da Reforma Agrária [Cf. Vélez-Rodríguez, 2005].
Tudo sob as bênçãos estapafúrdias da Comissão da Pastoral da Terra y do Conselho Indigenista Missionário da CNBB.
Políticas atentatórias contra a soberania nacional são postas irresponsavelmente sobre o tapete, com assinatura de documentos e declarações em foros internacionais que, se forem levados à prática, conduzirão a sérios riscos para a manutenção da unidade nacional em terras indígenas, como está acontecendo na criação da reserva “Raposa Serra do Sol”, em Roraima, seriamente questionada por juristas, intelectuais, empresários e militares.
Lula situa-se, nos palanques, do lado dos humildes, dos descamisados, dos pretos, índios e quilombolas.
Mas, de outro lado, preserva as linhas mestras da política macroeconômica herdada dos governos anteriores, o que lhe tem possibilitado atrair as inversões externas e a entrada de divisas necessárias para manter o crescimento econômico, em que pese o absurdo aumento do gasto público e o calote do governo à dívida interna, que mais do que triplicou ao longo dos últimos sete anos e que força a manutenção de juros estratosféricos (para alegria dos banqueiros) e a aplicação de uma iníqua política tributária que pune brutalmente quem trabalha e quem produz.
É clara a simpatia do presidente Lula pelo seu homólogo venezuelano a quem deu apoio estratégico num momento decisivo para a permanência de Chávez no poder, enviando um navio da Petrobrás a fim de garantir o abastecimento, ameaçado pela greve geral em 2003.
O populismo do carismático Lula coexiste perfeitamente com a estrutura patrimonial do Estado, que levou o partido do governo a gerir a coisa pública como propriedade privada, com os desmandos de corrupção generalizada que mancharam a memória do outrora moralizante grupo de petistas alçados ao poder em 2002.
Populismo e tradição patrimonialista fundiram-se, certamente, em macunaímico carnaval que deitou por terra a moral pública e que entronizou o cinismo do bateu-levou ou da ética totalitária gramsciana, que visa à hegemonia do proletariado (leia-se: do novo peleguismo sindical, que escapa aos controles do Tribunal de Contas da União).
Está consolidado, no Brasil, novo modelo de neopopulismo de esquerda, de tipo peleguista e estatizante.
Compadrio, corrupção, autoritarismo, falta de transparência, desaguarão em enfraquecimento progressivo da democracia e perda da capacidade competitiva, num mundo em que este fator é fundamental para garantir a sobrevivência em meio a países que, como a China e a Índia, crescem de forma continuada e agressiva.
O neopopulismo traduz-se, assim, em fator de atraso para os nossos países.
É bem verdade que a atual onda neopopulista encontrou os nossos países com uma boa situação econômica, em parte decorrente das medidas saneadoras realizadas ao longo dos anos 90 do século passado, no terreno do controle sobre a inflação e em parte, também, em virtude da valorização das commodities produzidas na região, no mercado internacional.
Assim, como frisa Álvaro Vargas Llosa, [2007: 19], “o que está ocorrendo agora é que os populistas têm muito dinheiro à sua disposição, desde Hugo Chávez até Nestor Kirschner”.
Mas a situação, não podemos negar, tende a mudar fortemente nos próximas anos, sendo que já se anunciam dificuldades decorrentes da instabilidade dos mercados internacionais, causada basicamente pela desaceleração da economia americana.
Em face das incertezas que começam a aparecer, os mandatários populistas ainda assumem posições de palanque.
Preocupa notadamente o fato, observado em todos os casos analisados, da tentativa dos Executivos hipertrofiados pretenderem se vincular diretamente às massas – ao povão que dizem representar – deixando de lado as instituições do governo representativo.
Isso, num mundo cada vez mais complexo e com sociedades cada vez mais informadas e diferenciadas em grupos ascendentes, traduzir-se-á em conflitos violentos, que somente poderão ser desmontados e equacionados com a prática da representação de interesses nos correspondentes Parlamentos.
O que está acontecendo nas últimas semanas na Bolívia é uma prova disso, bem como a insatisfação crescente que os observadores auscultam na sociedade venezuelana. Na medida em que a representação – e os Partidos que a alimentam – falha, falham também os caminhos para o equacionamento dos problemas.
Pretender substituir a representação política pela política de participação direta do povo em praça pública, é uma infantilidade que sempre sai cara.
Nas sociedades de massas, a deliberação da democracia participativa pressupõe e complementa, não substitui, a democracia representativa.
Essa vã tentativa escora-se num pressuposto falso, decorrente do democratismo rousseauniano: a legitimidade de quem é eleito pelo voto direto confere-lhe uma soberania total, sendo que o mandato conferido em eleições refere-se a aspectos limitados que não abarcam a totalidade da vida social.
Presidentes eleitos são legítimos para agirem dentro dos marcos da soberania limitada assinalada pela Constituição, não para exercerem um poder discricionário.
Esta crítica já tinha sido feita, no início do século XIX, por Benjamin Constant de Rebecque, nos seus Princípios de política.
A nossa tradição patrimonialista simplesmente passou uma borracha sobre estes ensinamentos do liberalismo doutrinário.
Somente uma crítica continuada acerca dos mecanismos de ensimesmamento, de autoritarismo e de espírito antiliberal presentes nos vários neopopulismos na América Latina, afastar-nos-á da cilada da utopia arcaica que ameaça nos levar de volta ao passado.
grifo nosso no texto
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